Inciso XVII – Liberdade de associação
Você provavelmente sabe que existem várias liberdades garantidas constitucionalmente, como a religiosa, de expressão e a de ir e vir. Mas você conhece a Liberdade de Associação? Menos comentada que outras normas jurídicas, ela é uma das mais perceptíveis em nosso cotidiano.
A liberdade de associação é garantida no inciso XVII do Artigo 5º da Constituição, que determina que somos livres para criar ou participar de associações desde que seus fins sejam lícitos e que não tenham caráter paramilitar.
Esse texto surgiu da parceria entre o Instituto Mattos Filho, a Civicus e a Politize!, que criaram uma série de materiais sobre o Artigo 5º da Constituição de 1988, que trata dos direitos fundamentais, com o objetivo de assegurar uma vida digna, livre e igualitária a todos os cidadãos do país.
O que o inciso XVII diz sobre liberdade de associação?
O artigo 5º, em seu inciso XVII, afirma que:
XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
A liberdade de associação é garantida no inciso XVII do artigo 5º da Constituição, que determina que somos livres para criar ou participar de associações desde que seus fins sejam lícitos e que elas não tenham caráter paramilitar.
Por definição, associações são grupos de indivíduos que se juntam para desenvolver atividades em conjunto ou para unir esforços com um objetivo comum.
Para a organização ser lícita, suas ações não podem ir contra as leis. Além disso, associações com caráter paramilitar são vedadas porque, no Brasil, o monopólio do uso da força, por meio das forças armadas e das polícias, pertence ao Estado.
Logo, se preencherem tais requisitos, as associações são livres e o Estado, de acordo com os incisos seguintes do artigo 5º, não poderá: interferir na criação delas (inciso XVIII) ou no seu funcionamento (inciso XIX), nem obrigar a permanência/saída de qualquer pessoa dessas organizações (inciso XX).
O direito de associação está intimamente relacionado à liberdade de expressão, à autonomia da vontade e ao sistema democrático, já que é um instrumento para o livre desenvolvimento de projetos pessoais e coletivos e para a efetiva participação na vida pública, com livre expressão de ideias e reivindicações.
A liberdade de associação no dia a dia
A liberdade de associação permite que você e outras pessoas se unam em prol de um objetivo comum e desenvolvam atividades para atingi-lo. Existem variados exemplos dessas atividades em nosso cotidiano, mas muitos passam despercebidos por nós. Vejamos alguns deles:
- Associação de moradores do bairro: formada por alguns moradores da região, costuma oferecer atividades esportivas, artísticas e locação para festas comemorativas da comunidade, como Dia das Crianças e Festa Junina. Ela também monitora os serviços públicos e a infraestrutura do bairro, podendo representar os moradores perante a prefeitura e a câmara dos vereadores do Município (artigo 5º, inciso XXI, da Constituição) caso existam problemas, por exemplo, na saúde, na educação ou na segurança da região.
- Associação de pais e mestres: seu objetivo principal é contribuir para a melhoria das condições de ensino, promovendo a interação entre a comunidade e a equipe de professores de escolas, podendo também sanar questões logísticas e práticas da escola, como oferta de merendas e de uniformes, por meio de atuação na prefeitura, arrecadações ou até mesmo produção própria de alimentos/roupas.
- Sindicatos: são representações de pessoas de uma mesma categoria econômica ou profissional e têm como principal objetivo defender os seus interesses políticos, sociais e econômicos.
Quais os limites do inciso XVII?
Como previsto no próprio inciso, a liberdade de associação está garantida desde que seja lícita. Como bem sabemos, vivemos em um país regido por leis e elas têm o objetivo de garantir uma convivência harmônica entre todos os membros da sociedade.
Ao determinar que as associações sejam lícitas, o legislador quis dizer que o objetivo e a forma de atuação dessas organizações devem ser legais, ou seja, não podem desrespeitar nosso conjunto de leis. Não se admite, por exemplo, que as pessoas se associem com o objetivo de cometer crimes.
Outro limite é a impossibilidade de associações de caráter paramilitar, que, por definição, é quando há uma união de pessoas que são conduzidas a utilizar armas e que se submetem a regras rígidas de hierarquia, aproximando-se de uma facção militar.
Exemplos de grupos paramilitares
Um dos mais famosos grupos paramilitares do mundo foi o Exército Republicano Irlandês (IRA). Fundado em 1919 na Irlanda do Norte, seu foco era separar seu país do Reino Unido e reanexá-lo à República da Irlanda. Esse grupo atuava de maneira violenta, com utilização de armas de fogo e ataques de bombas. Foi oficialmente extinto em 2005, após uma política de desarmamento.
Outro exemplo de grupo paramilitar é a SS nazista (“Schutzstaffel” – ou, em português, Tropa de Proteção), que surgiu na década de 1920 na Alemanha para fazer a guarda pessoal de Adolf Hitler. Seu crescimento foi tão grande que, em 1939, tornou-se um exército independente do exército alemão e, dado seu poder, absorveu outras organizações de segurança na Alemanha. A SS foi responsável por comandar a aniquilação de milhares de crianças, mulheres e homens nos campos de concentração durante o Holocausto.
Por fim, na América Latina, destacam-se grupos paramilitares de direita na Colômbia, como as AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia), que se estima terem sido responsáveis por pelo menos 70% dos assassinatos políticos do país, além de diversas violações de direitos humanos no conflito armado colombiano. O principal alvo da violência paramilitar são sindicalistas, ativistas de direitos humanos, professores, camponeses, indígenas e ativistas políticos de esquerda.
Além desses grupos de direita, também se destacam paramilitares de esquerda, ainda que em menor quantidade, como as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo), uma guerrilha revolucionária marxista-leninista que reivindicava a implantação do socialismo no país.
A importância da liberdade de associação?
A liberdade de associação é um avanço das liberdades e das garantias fundamentais em contraposição ao poder do Estado. Logo, a participação em associações tem uma dimensão política bastante importante em uma sociedade democrática.
Imagine uma comunidade localizada em uma região afastada do centro da cidade. Ela sofre com a falta de serviços públicos de qualidade, seja no transporte, na saúde ou na educação. Como todos os indivíduos da região compartilham das mesmas dificuldades, eles podem se unir para que, juntos, conquistem um poder maior de reivindicação.
Agora uma associação, as centenas de moradores podem exercer uma pressão consistente e organizada nos órgãos públicos para que suas demandas sejam atendidas, bem como levar questões ao judiciário, de forma legítima. Se apenas um indivíduo tentasse conversar com a prefeitura, seria muito mais difícil. Como diz o velho ditado: “a união faz a força”.
A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), presente em mais de dois mil municípios do Brasil, é um exemplo de associação de enorme sucesso. Criada na década de 1950, tem como objetivo “promover a atenção integral à pessoa com deficiência intelectual múltipla”.
Dentre as reivindicações mais notórias alcançadas por sua atuação, estão a incorporação do Teste do Pezinho na rede pública de saúde e a regularização da prática de esportes e atividades artísticas como instrumento pedagógico às pessoas com deficiência.
Além disso, as associações também têm um papel judicial importante, já que podem protocolar ações civis públicas na justiça para que sejam apreciadas e julgadas por um juiz. Essas ações são fundamentadas no interesse coletivo, por exemplo, a ação civil pública promovida por uma associação de direitos dos animais, o Coletivo Contra a Farra do Boi, isto é, contra a morte por abate de dois bois em Santa Catarina.
Vale lembrar que, as associações devem respeitar a democracia e o Estado de Direito, sendo transparentes com a comunidade/grupo que representam e agindo de acordo com a lei. Caso existam irregularidades, como desvio de recursos para desenvolver atividades ilícitas, o Estado pode intervir – e até mesmo extinguir – a associação (artigo 5º, inciso XIX, da Constituição).
Liberdade de associação nas Constituições anteriores
A Constituição de 1891, republicana, foi a primeira a tratar expressamente da liberdade de associação no Brasil. A partir de então, todas as Constituições previram a liberdade de associação, mas, nos momentos ditatoriais da história brasileira, houve mecanismos para limitar esse direito.
No período ditatorial do Estado Novo, a Constituição de 1937 permitia a liberdade de associação desde que sua finalidade não fosse contrária à lei penal nem aos bons costumes. Como “bons costumes” é um conceito subjetivo, esse direito poderia ser limitado com facilidade pelo governo.
Já durante a ditadura militar, apesar de a Constituição de 1967 prever a liberdade de associação, estava instituída a doutrina da segurança nacional, que dava ao poder executivo força abusiva sobre a população, que poderia ter sua liberdade de associação suprimida pelo Estado a qualquer momento a depender de sua interpretação sobre quais fins associativos seriam lícitos ou não. A situação tornou-se ainda mais grave após a instituição do Ato Institucional n. 5 (AI-5).
Foi somente depois da abertura política do país e da promulgação da Constituição de 1988 que tivemos a plena retomada dos direitos e das liberdades individuais. A nova Constituição garantiu amplamente o direito de associação, com regras e limites claros.
Liberdade de associação pelo mundo
O maior marco internacional de reconhecimento da liberdade de associação é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que a prevê em seu artigo 20:
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Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas.
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Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
Há também o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, internalizado pelo Brasil em 1992, que prevê a liberdade de associação em seu artigo 22.1: “Toda pessoa terá o direito de associar-se livremente a outras, inclusive o direito de construir sindicatos e de a eles filiar-se, para a proteção de seus interesses”.
Traz, ainda, ressalva sobre a Convenção de 1948 da Organização Internacional do Trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical, impedindo a adoção de medidas legislativas que restrinjam (ou a aplicação da lei de maneira a restringir) as garantias previstas na referida Convenção.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, internalizada pelo Brasil em 1992, trata do assunto em seu artigo 16.1: “Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza”, com a mesma previsão de restrições apenas por força de lei e formuladas no âmbito da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas, permitindo-se, ainda, a privação do exercício do direito de associação aos membros das forças armadas e da polícia.
Associar-se: o direito de unir esforços
Neste texto , aprendemos o que é a liberdade de associação e por que ela é tão importante. Concluímos que se associar é unir forças para conquistar objetivos que seriam muito mais difíceis – ou até mesmo impossíveis – se cada indivíduo estivesse sozinho. A associação fortalece a participação social e, portanto, contribui para a democracia.
Porém, existem limites ao seu alcance: deve ter uma finalidade lícita, permanecendo dentro das leis que regem o país, e é expressamente vedada para fins paramilitares, já que o Estado detém o monopólio da força e a obrigação de garantia da paz.
A liberdade de associação busca, então, satisfazer às necessidades das pessoas e, por isso, está vinculada à proteção da dignidade humana e aos princípios da livre iniciativa, da autonomia da vontade e da liberdade de expressão. Logo, estar em uma democracia pressupõe a existência da liberdade de associação.
Esse conteúdo foi publicado originalmente em setembro/2019 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Autoras:
- Adriana Mattos
- Mariana Mativi
- Talita de Carvalho
Fontes:
Flávia de Campos Pinheiro. O conteúdo constitucional da liberdade de associação. Dissertação PUC-SP.
Conteúdo Jurídico – Direito Fundamental à Livre Associação
Infoescola – SS – Schutzstaffel
UOL – Conheça grupos guerrilheiros antigos e novos ao redor do mundo
Lex Juris – Artigo 5º todo dia
Editora Atualizar – CF88 – Art. 5º, XVII (Liberdade de Associação)
Enciclopédia jurídica da PUCSP – Liberdade de Associação
Sebrae – Conheça os tipos de associações existentes no Brasil
Wikipedia – Paramilitarismo na Colômbia
https://www.filantropia.ong/informacao/2427-qual_o_conceito_de_entidade_filantropica