REQUISIÇÃO ADMINISTRATIVA: O USO DA PROPRIEDADE PELO PODER PÚBLICO
Você certamente já viu um filme em que uma autoridade policial, em meio a uma perseguição, solicita o veículo de algum cidadão que passava pelo local. Quando isso aconteceu, você deve ter se perguntado algo como: “isso é possível na vida real?”. Não só é possível, como está previsto no Artigo 5°, inciso XXV da Constituição de 1988. Trata-se da requisição administrativa ou, mais especificamente, do direito de o poder público se utilizar de propriedades particulares em caso de perigos iminentes.
Quer entender mais sobre como esse direito funciona, onde surgiu e alguns casos práticos de aplicação dele no Brasil? Nesse texto, trazemos isso e muito mais para você.
Para conhecer outros direitos, confira a página do Artigo Quinto, um projeto desenvolvido pelo Instituto Mattos Filho em parceria com a Civicus e a Politize! para esclarecer o artigo 5º, um dos mais importantes da Constituição de 1988.
Nele estão previstos os direitos fundamentais, com objetivo de assegurar uma vida digna, livre e igualitária a todos os cidadãos do país.
O DIREITO À REQUISIÇÃO ADMINISTRATIVA
O artigo 5º, em seu inciso XXV, afirma que:
“no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;”
Já explicamos o direito à propriedade, previsto no inciso XXII. Na prática, esse direito garante a todas as pessoas a possibilidade de uso (direito de usufruir, emprestar ou alugar), gozo (direitos sobre os rendimentos) e disposição (domínio para vendê-lo, doá-lo ou trocá-lo) dos seus bens.
O inciso XXV, por sua vez, traz uma exceção ao direito de propriedade. Trata-se da requisição administrativa, o direito de o governo utilizar uma propriedade particular em caso de necessidade iminente, ou seja, por conta de algum risco público que coloque em perigo o bem-estar da comunidade. Esse risco pode ser causado por calamidade, guerra, epidemia, inundação, entre outras coisas.
Para o cidadão comum, o inciso XXV é mais um dever que um direito. O cidadão deve, quando necessário, ceder a sua propriedade, seja ela móvel (bens que podem ser transportados: carros, móveis etc.); imóvel (bens que não podem ser transportados: uma casa, um terreno etc.); ou um serviço (prestado por entidades particulares, sem relação com o governo: um hospital ou uma escola particular, por exemplo).
Contudo, a requisição administrativa não implica a transferência da propriedade. Ela tem caráter temporário, enquanto durar a necessidade iminente.
Imaginemos que um prédio esteja pegando fogo e que os bombeiros necessitam adentrar uma propriedade particular vizinha para apagar as chamas e salvar os feridos. Neste caso, o Estado e seus agentes têm o direito de requerer o uso da propriedade enquanto perdurar o perigo. Uma vez restabelecida a segurança no local, a propriedade deve ser restituída e o eventual dano causado pelos esforços estatais deve ser indenizado.
INDENIZAÇÃO
A indenização ao proprietário está garantida no inciso XXV apenas para casos de perdas e danos causados pela requisição administrativa. Ou seja, para utilizar a propriedade, o Estado não precisa desembolsar nenhum valor.
Contudo, se houver danos ou perda de valor à propriedade, durante o tempo de utilização, mesmo que derivados da simples privação do acesso ao bem, o proprietário tem o direito a uma indenização. O prazo para isso é de até cinco anos contados do ato da requisição administrativa, conforme aponta o artigo 10, parágrafo único, do Decreto-Lei n. 3.365/1941.
Portanto, no exemplo da ocupação de propriedade vizinha ao prédio em chamas, se o acesso de veículos ou o uso de escadas e mangueiras acabar quebrando portas e janelas ou então danificando móveis, o proprietário tem direito a uma indenização, assegurada pelo inciso XXV do artigo 5º da Constituição.
É importante lembrar que, mesmo que não haja destruição ou modificação do bem requisitado, pode haver direito à indenização se a privação temporária da propriedade gerar dano ao proprietário. Por exemplo, se a requisição administrativa privar o proprietário de um instrumento necessário a suas atividades profissionais, gerando perda comprovada de remuneração, ele terá direito à indenização.
EM QUE SE SUSTENTA O INCISO XXV?
A restrição do inciso XXV do artigo 5º da Constituição ao direito de propriedade fundamenta-se no princípio da finalidade. Segundo esse princípio, todos os atos do Estado são (ou devem ser) pautados pelo interesse público, isto é, pelo interesse da sociedade como um todo.
Desse conceito decorre o princípio da supremacia do interesse público, que permite, em certos casos, subordinar os interesses individuais aos coletivos. Daí a expressão “supremacia” do interesse público.
Nesse sentido, conforme o inciso XXV, por mais que alguém não queira ceder a sua propriedade, terá de fazê-lo se, em circunstâncias especiais, for fundamental para a maioria das pessoas que aquela propriedade seja cedida. Em outras palavras, se houver conflito entre os interesses público e privado, deve-se, em regra, prestigiar o interesse público, respeitando-se, é claro, os direitos e as garantias individuais previstos na Constituição.
Por fim, a requisição administrativa só se aplica a bens privados. Em regra, a requisição administrativa não pode incidir sobre o próprio Estado, diante do risco de que os diferentes entes da federação avancem sobre os bens uns dos outros, causando conflitos federativos.
Para que bens públicos — sejam de uso do poder público em si (insumos da rede pública de saúde, sedes de ministérios, prefeituras, palácios de governo etc.), sejam de uso coletivo (praças, praias, ruas, estradas, etc.) — possam ser utilizados, é necessária a decretação de estado de defesa ou estado de sítio.
A HISTÓRIA DO DIREITO DE REQUISIÇÃO ADMINISTRATIVA
A requisição administrativa, nos moldes atuais, foi construída ao longo do século XX, tanto por meio das Constituições quanto por decretos e leis.
Na Constituição de 1891, por exemplo, não havia menção a um “perigo iminente”. Havia apenas a possibilidade de utilização da propriedade particular por “necessidade, ou utilidade pública”, com indenização prévia, ou seja, anterior ao uso da propriedade. Isso pode ser constatado no artigo 72:
Art 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 17. O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade, ou utilidade pública, mediante indenização prévia.
Na Constituição de 1934, por sua vez, a requisição administrativa passou a ser admitida mais claramente. Ali, ela é prevista “até onde o bem público exija”, mas limitada a casos de “guerra” ou de “comoção intensa grave” (perturbação grave à ordem pública). A ideia da indenização para esses casos já passa a ter caráter ulterior (posterior). Assim podemos notar no artigo 113, inciso 17:
A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.
Requisição administrativa em tempos de paz
As requisições administrativas em tempos de paz passam a ser admitidas a partir de 1962, com a Lei Delegada n. 4/1962, regulamentada pelo Decreto n. 51.644-A/1962, que tratava de requisições de bens e serviços.
A Lei Delegada n. 4/1962 dispunha sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo. Desse modo, em seu artigo 2º, inciso III, ficava previsto que essa intervenção do Estado poderia se dar: “na desapropriação de bens, por interesse social; ou na requisição de serviços, necessários à realização dos objetivos previstos nesta lei”.
Nesse sentido, conforme os artigos 20 e 22 do Decreto n. 51.644-A/1962, as decisões de desapropriação e de requisição seriam tomadas pelo Conselho Deliberativo da Superintendência Nacional do Abastecimento (SUNAB).
Em 1966, tivemos outro decreto importante nesse sentido. Foi o Decreto-Lei n. 2/1966, regulamentado pelo Decreto n. 57.844/1966, referente às requisições de bens e serviços essenciais ao abastecimento da população. Nele, novamente, já no artigo 1º, fica ressaltado o papel da SUNAB. Ficavam previstas nesses casos, contudo, indenizações em dinheiro aos proprietários:
A Superintendência Nacional do Abastecimento (SUNAB), na qualidade de órgão incumbido de aplicar a legislação de intervenção do Estado no domínio econômico, poderá, quando assim exigir o interesse público, requisitar bens ou serviços essenciais ao abastecimento da população.
Da mesma forma, na Lei n. 6.439/1977, que instituiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), também havia uma previsão de requisição, no artigo 25:
Em caso de calamidade pública, perigo público iminente ou ameaça de paralisação das atividades de interesse da população a cargo das entidades do SINPAS (Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social), o Poder Executivo poderá requisitar os bens e serviços essenciais à sua continuidade, assegurada ao proprietário indenização ulterior.
Constituição de 1988
A Constituição de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, é atualmente o principal dispositivo que sustenta a requisição administrativa de bens particulares, em caso de iminente perigo público.
Os demais tipos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, estão previstos no inciso XXIV da Constituição, explicado pelo post anterior.
QUAL A RELEVÂNCIA DA REQUISIÇÃO ADMINISTRATIVA?
O inciso XXV nos leva a refletir sobre as atribuições do Estado, que se concretizam em prerrogativas e deveres, como o de garantir nossos direitos fundamentais, previstos no artigo 5º da Constituição. Assim, se houver uma ameaça, é dever do Estado atuar sobre ela, mesmo que isso possa restringir interesses individuais.
Desse modo, o inciso XXV é relevante porque coloca na Constituição a previsão de atuação do Estado nos casos de iminente perigo público, ou seja, de ameaças aos direitos fundamentais da população. Sem essa previsão, o Estado teria dificuldades em legitimar a utilização da propriedade, ficando impedido de colocar interesses coletivos acima de interesses individuais para garantir maior proteção à coletividade.
A REQUISIÇÃO ADMINISTRATIVA NA PRÁTICA
Agora que você já entendeu o que é a requisição administrativa, podemos citar alguns exemplos de como ela é aplicada na prática.
Lei do SUS
Na própria formulação da Lei do Sistema Único de Saúde (SUS) – Lei n. 8.080/1990 – existem traços da incorporação prática da lógica de requisição administrativa prevista no inciso XXV do artigo 5º da Constituição. No artigo 24 daquela lei, fica previsto que “Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada”. Ou seja, havendo a necessidade iminente, o SUS pode utilizar de requisição administrativa para atuar em hospitais privados.
Lei de Greve
De modo similar, a Lei de Greve (Lei n. 7.783/1989), promulgada um ano após a Constituição de 1988, também prevê a possibilidade de requisição administrativa, no caso de a greve afetar serviços essenciais:
Art. 11. Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Parágrafo único. São necessidades inadiáveis da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
Art. 12. No caso de inobservância do disposto no artigo anterior, o Poder Público assegurará a prestação dos serviços indispensáveis (grifos nossos).
Greve dos caminhoneiros
Em 2018, frente à greve de caminhoneiros que parou o país, o então presidente Michel Temer, entendendo que ela gerava caos público (obstrução de vias e desabastecimento de produtos), lançou o Decreto n. 9.382.
Com esse decreto, as forças armadas tiveram autorização para realizar a requisição administrativa dos caminhões, com o objetivo de:
- remover veículos que estivessem obstruindo vias públicas;
- escoltar veículos que prestassem serviços essenciais ou transportassem produtos essenciais; e
- garantir acesso a locais de produção ou distribuição de produtos considerados essenciais.
Não causando danos à propriedade (aos caminhões), não haveria danos indenizáveis aos caminhoneiros.
O USO DA PROPRIEDADE PELO PODER PÚBLICO
Como você pôde perceber, a requisição administrativa está relacionada à própria essência do Estado e o permite utilizar bens e serviços para garantir os direitos fundamentais da população. Essa premissa está presente em uma série de leis e decretos no Brasil, como a Lei de Greve e a Lei do SUS. Graças à requisição administrativa, é possível ao Estado garantir o funcionamento de serviços essenciais e perseguir os interesses coletivos.
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em outubro/2019 e atualizado em agosto/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Autores:
- André Hermont Jahara
- Danniel Figueiredo
- Mariana Mativi
Fontes:
- Direito do Estado: Requisição administrativa e greve de caminhoneiros
- Jus: Requisição Administrativa na Área da saúde
- Jus: Requisição administrativa x ocupação temporária
- Lei Delegada nº 04/1962
- Decreto nº 57.844/1966
- Decreto-Lei nº02/1966
- Lei n° 6.439/77
- Lei nº 7.783/89 (Lei de Greve)
- Lei 8.080/90 (Lei do SUS)
- Apelação Cível 149.172-1/1991 (Sobre uso de hospitais em São José dos Campos)
- Decreto 9.382/18 (Decreto sobre a greve de caminhoneiros)