SIGILO, UMA GARANTIA CONSTITUCIONAL
Comunicar-se faz parte da natureza humana. Estamos sempre conversando com outras pessoas. Há não muito tempo, usávamos cartas e telegramas como ferramentas de diálogo, espaço hoje ocupado por tecnologias como as redes sociais. Se por um lado a tecnologia aproxima indivíduos com interesses em comum, por outro gera uma preocupação: como garantir o sigilo das nossas informações?
Para entender os limites do sigilo em nosso país e em quais casos ele pode ser rompido, a Civicus e a Politize!, em parceria com o Instituto Mattos Filho, elaborou este artigo analisando a essência do inciso XII, sua construção histórica e como ele vem sendo usado por aqui! Para ler sobre outras liberdades e direitos, não deixe de visitar nossa página sobre o Artigo Quinto.
INCISO XII – SIGILO DE CORRESPONDÊNCIA E DE COMUNICAÇÕES
O artigo 5º, em seu inciso XII, afirma que:
“XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”
A comunicação faz parte da natureza e da rotina humanas. Há pouco tempo as cartas e telegramas eram ferramentas de diálogo comuns; hoje, contudo, esse espaço foi substituído por meios de comunicação tecnológicos, como aplicativos de mensagens e as redes sociais.
E se por um lado a tecnologia aproxima indivíduos com interesses em comum, por outro, gera uma preocupação: como garantir o sigilo das informações compartilhadas?
No Brasil, o sigilo das comunicações é um dos direitos fundamentais descritos no art. 5º da Constituição Federal de 1988. A garantia desse direito é essencial para a proteção das esferas de intimidade e privacidade dos indivíduos.
Entretanto, esse direito não é absoluto, havendo exceções para sua preservação: cite-se, a título exemplificativo, a quebra do sigilo por determinação judicial nos casos em que ocorre troca de informações entre os envolvidos em processo criminal – em tais casos, a comunicação obtida pode ser utilizada como prova para o julgamento.
Analisando o inciso XII
De acordo com o inciso XII, não se pode violar o sigilo das correspondências, das comunicações telegráficas e telefônicas e dos dados dos indivíduos, exceto quando houver determinação judicial, a qual deve estar ligada exclusivamente à investigação criminal ou à instrução processual penal.
Oportuno citar, ainda, que a interpretação do inciso XII é objeto de debates entre estudiosos, graças a um equívoco na escrita de seu texto. É que a frase “no último caso” no trecho “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial” acaba dando um duplo sentido ao inciso.
Da análise gramatical, extrai-se que a correspondência, as comunicações telegráficas e as de dados seriam invioláveis em qualquer situação, enquanto o sigilo da comunicação telefônica poderia ser excepcionado por ordem judicial. No entanto, prevalece o entendimento de que todos os tipos de comunicação mencionados no inciso podem ser excepcionados.
Passa-se, portanto, à análise desses diferentes entendimentos, bem como da aplicabilidade do direito ao sigilo.
Quais são os tipos de comunicação?
Os tipos de comunicação previstos no inciso XII do art. 5º podem ser resumidos da seguinte forma:
- correspondência: aquelas que você recebe em casa, como avisos bancários, contas para pagar ou até mesmo uma carta que alguém tenha lhe escrito;
- comunicação telegráfica: trata-se do telex e do telegrama. O telegrama é uma comunicação rápida enviada na forma escrita que hoje também pode ser enviada pela internet. O telex foi extinto, mas era uma máquina em que a mensagem era digitada e enviada para o destinatário;
- dados: os mais comuns são os bancários, como o extrato de sua conta corrente, mas também podem ser aqueles que você insere em sites para comprar produtos online, por exemplo; e
- comunicações telefônicas: referem-se às ligações feitas por telefone, seja ele fixo ou móvel.
Atualmente, grande parte dos brasileiros possui um computador ou celular com acesso à internet. É por isso que o direito ao sigilo de comunicação previsto pela Constituição foi reconhecido também para os dados telemáticos por meio da Lei n. 9.296/1996. Apesar de não serem citados expressamente no texto constitucional, até porque não existia essa espécie de sistema na época, os dados telemáticos são informações resultantes da junção entre recursos de telecomunicações (como a telefonia) e de informática (como celulares e computadores).
Assim, as mensagens trocadas nos celulares e smartphones, por exemplo, são consideradas espécies de dados telemáticos, bem como os e-mails e as informações de acesso às redes sociais.
Por que o sigilo das comunicações é importante? Mulher fazendo símbolo de silêncio | Sigilo – Artigo Quinto
O direito ao sigilo é garantia fundamental em qualquer Estado de Direito que respeita os direitos individuais e tem como objetivo proteger as pessoas contra violações do próprio Estado ou de terceiros. Assim, as informações trocadas durante quaisquer comunicações não podem ser conhecidas ou divulgadas se este não for o interesse das partes envolvidas.
Você já deve ter ouvido falar que abrir uma correspondência que não é sua é crime, não é mesmo? Essa regra também vale para as outras formas de comunicação.
O sigilo da comunicação está relacionado ao inciso X do art. 5º da Constituição, que trata da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
Baseia-se também na proteção da honra e da dignidade descrita na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que é parte do sistema constitucional brasileiro. Veja o que seu art. 11 diz:
- Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
- Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
- Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.
Também há uma forte relação entre o direito ao sigilo e a liberdade de expressão. Imagine como seria se mensagens em que você manifesta aquilo que pensa chegassem ao conhecimento de pessoas com quem você não escolheu compartilhá-las?
Quando alguém tem seu direito ao sigilo ferido, os transtornos podem ser incalculáveis. Como você se sentiria se perdesse o direito a manter em sigilo seus extratos bancários, suas ligações telefônicas, suas mensagens de WhatsApp? Ou ainda, como você se sentiria se, por exemplo, o vazamento de uma mensagem em que critica a empresa em que trabalha resultasse em constrangimento diante de colegas e até na sua demissão?
Esses são só alguns exemplos de quão prejudicial ao cidadão pode ser a violação do direito ao sigilo. E é para evitar esse tipo de problema que o inciso XII do art. 5º foi criado.
Entretanto, o direito ao sigilo não é absoluto – existem situações em que o sigilo pode obstar ou atrapalhar o prosseguimento de uma investigação criminal, por exemplo. Nesse tipo de cenário, há a possibilidade de quebra de sigilo.
Quando o sigilo das comunicações pode ser quebrado?
Como os outros direitos fundamentais, o sigilo só será assegurado quando não utilizado em atividades ilícitas. Como já mencionado no texto sobre o princípio da legalidade, as garantias previstas na Constituição Federal muitas vezes exigem a observância da legislação nacional.
Assim, não se pode usar o direito de sigilo para facilitar ou acobertar a prática de qualquer tipo de crime. Nesses casos, o sigilo poderia ser quebrado.
O inciso XII descreve três requisitos para a quebra de sigilo das comunicações:
- ordem judicial devidamente fundamentada que determine a quebra do sigilo;
- que sua finalidade seja uma investigação criminal ou instrução de procedimento penal;
- que seja feita na forma e nas hipóteses da lei.
Uma das formas legais de quebra do sigilo, prevista no item 3, foi estabelecida pela Lei n. 9.296/1996, que trata da quebra de sigilo das comunicações telefônicas e das comunicações em sistemas de informática e telemática, estipulando regras para a permissão da interceptação desse tipo de mensagem.
Em suma, para poder realizar tal operação, deve haver determinação de um juiz, que concederá, pelo prazo de 15 dias (com possibilidade de renovação desse período, se comprovada sua indispensabilidade), a quebra de sigilo. Se essa violação do sigilo for ilegal, estão previstas, no art. 10 da Lei n. 9.296/1996, a reclusão – de 2 a 4 anos – e a multa ao infrator.
A história do sigilo no Brasil
O sigilo de comunicações é um direito que está presente no Brasil desde a primeira Constituição, promulgada pelo Império em 1824, especificamente em seu art. 179, XXVII:
A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte […]
XXVII: O Segredo das Cartas é inviolável. A administração do correio fica rigorosamente responsável por qualquer infracção deste Artigo.
Todas as Constituições seguintes mencionaram o sigilo, buscando garantir esse direito fundamental a todos os cidadãos. Veja a seguir como cada uma delas tratou do assunto.
- Constituição de 1891: “Art. 72. A Constituição assegura a brazileiros e estrangeiros residentes no paíz a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […] §18 – É inviolável o sigilo da correspondência”.
- Constituição de 1934: “Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no paíz a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes: […] § 8º: É inviolável o sigilo da correspondência”.
- Constituição de 1937: “Art. 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 6º: A inviolabilidade do domicílio e de correspondência, salvas as exceções expressas em lei”.
- Constituição de 1946: “Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes: […] § 6º: É inviolável o sigilo da correspondência”.
- Constituição de 1967: “Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes: […] § 9º: São invioláveis a correspondência e o sigilo das comunicações telegráficas e telefônicas” (grifos nossos).
- Emenda Constitucional nº 01 de 1969: “Art. 153. […] § 9º É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e telefônicas”.
A Constituição atual, de 1988, além de garantir o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e telefônicas, também incorporou o sigilo de “dados”, que podem ser compreendidos como os dados telemáticos, explicados anteriormente.
Dessa forma, busca-se manter atualizada a interpretação e incidência do texto constitucional, acompanhando os avanços tecnológicos.
O sigilo no Brasil e no mundo
Atualmente, além da Lei n. 9.296/1996, citada anteriormente, existem outros dispositivos legais que regulam o sigilo de comunicações no Brasil.
Há, por exemplo, a Lei n. 7.210/1984, chamada de Lei de Execução Penal (LEP), que prevê que a autoridade administrativa responsável pela gestão de presídio pode interceptar correspondências enviadas entre presos e pessoas de fora do sistema carcerário.
Mesmo parecendo uma medida abusiva, o Supremo Tribunal Federal (STF), após julgar essa questão, decidiu que o direito à privacidade e à intimidade do preso deve ceder espaço à segurança pública, a fim de evitar qualquer tentativa de práticas ilícitas.
Com as novas tecnologias, o sigilo de dados previsto no inciso XII tem se estendido às novas formas de comunicação, como redes sociais e WhatsApp, por exemplo. Nesse sentido, o art. 22 da Lei n. 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, prevê que a “parte interessada” – como uma vítima de crime contra a honra nas redes sociais – poderá requerer ao juiz o fornecimento de registros de conexão e de acesso à internet, com o objetivo de identificar quem cometeu a ilegalidade.
WhatsApp e Telegram: embate global pelo sigilo
O WhatsApp, aplicativo de mensagens mais famoso globalmente, está travando batalhas judiciais com governos pelo mundo todo. Você se lembra de algumas vezes em que o app parou de funcionar no Brasil e voltou pouco tempo depois?
Isso se deu porque alguns juízes determinaram a paralisação das ações do aplicativo em território nacional, justificando que a empresa havia se negado a entregar dados de usuários à Polícia Federal.
Somente em 2016, segundo dados da Meta (antes conhecida como Facebook) – empresa dona do WhatsApp -, foram mais de 3.500 solicitações judiciais para acessar informações de quase 7.600 usuários do app. De acordo com Brian Acton, cofundador do aplicativo, “a comunicação [via aplicativo] é protegida por criptografia de ponta a ponta, não sendo possível, nem mesmo para nossa equipe, ter acesso ao conteúdo das mensagens”.
Houve o questionamento, por parte do STF, se não poderiam criar uma ferramenta que permitisse o acesso a esses dados, mas a empresa se negou a desenvolvê-la, afirmando que tal atitude “diminuiria a segurança do usuário”. Por isso, o Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas entrou com um pedido na Justiça Federal para que o Facebook pagasse uma multa no valor de R$ 111,7 milhões por não quebrar o sigilo das mensagens compartilhadas em seu aplicativo.
Já no início de 2019, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou proposta visando obrigar o Facebook a ter representação oficial no Brasil e a quebrar o sigilo de mensagens trocadas pelo aplicativo sob ordem judicial. Se o projeto fosse aprovado e a empresa não o respeitasse, correria o risco de ser banida do país.
Enquanto isso, o Telegram, outro aplicativo famoso de mensagens, não teve a mesma sorte – em 2018, ele foi proibido na Rússia por se negar a liberar sua criptografia para o Estado.
O Serviço Federal de Segurança (FSB) russo pediu a entrega das chaves criptográficas de seis usuários acusados de envolvimento em ataques terroristas, mas o Telegram recusou afirmando que “as chaves permitiriam às autoridades ter acesso a mensagens de qualquer usuário, o que resultaria em uma violação do princípio constitucional do sigilo de correspondência”. Portanto, restou ao Estado russo o banimento da plataforma.
Protegendo suas conversas
O inciso XII do art. 5º de nossa Constituição Federal garante à população brasileira o sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, mas também permite a quebra do sigilo em investigações e processos criminais, com ordem judicial. Assim, seus direitos à intimidade, privacidade e à livre manifestação do pensamento são assegurados.
Entretanto, redes sociais vêm sofrendo com sanções governamentais por não divulgarem dados considerados relevantes para investigações criminais. Portanto, fica a dúvida: até onde vai o limite do sigilo do indivíduo?
Esse conteúdo foi publicado originalmente em julho/2019 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Sobre os autores
Jéssica Caroline Covolan
Advogada de Tributário do escritório do Mattos Filho Advogados
Pedro Parada Mesquita
Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.
Fontes
LEI Nº 9.296, DE 24 DE JULHO DE 1996.
CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS
LEI Nº 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984.
Quebra do sigilo de correspondência do preso
LEI Nº 12.965, DE 23 DE ABRIL DE 2014
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