Até onde podemos exercer as nossas liberdades? O que pode transformar protestos em atos antidemocráticos? Quais os limites para se manifestar? O Politize! te explica tudo aqui nesse conteúdo!
1 – O que é democracia?
O termo tem em sua base duas palavras gregas: DEMOS, que significa “povo, distrito” e KRATOS, que significa “Domínio, poder”, trazendo consigo o significado de “poder do povo” ou “governo do povo”.
O fenômeno da democracia é, tanto no senso comum como em ambiente acadêmico, dividido em dois. De um lado, está sua base etimológica, a herança dos gregos, que nos deram a palavra e parte do imaginário associado à democracia – a ideia de “governo do povo”. De outro, está ligada ao processo eleitoral como forma de escolha dos governantes.
Democracia segundo Norberto Bobbio
Bobbio em “O futuro da Democracia” propõe um consenso em relação à democracia:
“Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos“.
Segundo o filósofo, todo grupo social está obrigado a tomar decisões em prol de seus membros. Tais decisões são feitas para prover sua própria sobrevivência interna e externamente. Mas, essas decisões não são feitas pelos grupos em si, e sim por indivíduos.
Para que essas decisões tomadas por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possam ser aceitas como coletivas, são necessárias regras que estabeleçam quem são as pessoas autorizadas a tomar as decisões e à base de tais procedimentos.
Características comuns a regimes democráticos
Por isso, o principal traço comum em regimes considerados democráticos é a realização de eleições periódicas e livres para o governo – significando, em geral, a ausência de violência física e de restrições legais à apresentação de candidaturas.
Bobbio salienta um fator indispensável à democracia: aqueles que são chamados a decidir ou eleger os que vão decidir, devem possuir alternativas e opções de escolha. Assim,
Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc.
Quer saber mais sobre democracia segundo Bobbio? Acesse aqui este texto sobre democracia para este autor!
Outro fato comum nesses regimes diz respeito às modalidades de decisão: a regra fundamental da democracia é a regra da maioria. Essa é a regra base para decisões coletivas que irão vincular todo o grupo.
O devido funcionamento de um regime democrático de direito nos garante participação social, direitos e deveres. A manifestação do pensamento, expressão e reunião são sagrados ao exercício da cidadania.
Em outras palavras, esses direitos são essenciais para o correto funcionamento dos mecanismos e procedimentos que caracterizam um regime democrático e estão presentes em Estados Democráticos de Direito, que possuem valores e princípios essenciais para o correto funcionamento da democracia.
Aprenda mais sobre características dos regimes democráticos neste texto sobre Índices de Democracia!
Princípios de uma democracia
Entre alguns desses valores e princípios podemos citar:
- a soberania popular;
- mecanismos de apuração e de efetivação da vontade do povo nas decisões políticas;
- um Estado Constitucional – com uma constituição legítima, fruto da vontade do povo;
- um órgão guardião da Constituição e dos valores fundamentais da sociedade, que tenha atuação livre e desimpedida, constitucionalmente garantida;
- um sistema de garantia dos direitos humanos;
- observância do princípio da igualdade, da legalidade (sendo a lei formada pela vontade popular e informada pelos princípios da justiça) e da segurança jurídica (a fim de controlar os excessos de produção normativa, propiciando, assim, a previsibilidade jurídica);
- existência de órgãos judiciais, livres e independentes, para a solução dos conflitos entre a sociedade, entre os indivíduos e destes com o Estado.
Assim, compreende-se que a democracia é um instrumento inevitável e essencial para a realização de valores essenciais de convivência humana e dos direitos fundamentais do homem.
O conceito de democracia gera muitos debates, né? Te sugiro ler mais em nosso texto sobre O que é democracia.
2 – A democracia brasileira
Nossa democracia é relativamente jovem e passou por um processo conturbado até sua real estruturação. Elencamos aqui alguns desses pontos na nossa história antes da nossa constituição de 1988:
- Como sabemos, a passagem do Brasil Império para a República ocorreu através de um golpe, e os primeiros anos republicanos do Brasil não foram democráticos: Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto governaram o país entre 1889 e 1894 sem eleições populares.
- De 1894 até 1930, o Brasil vivenciou a chamada Política Café com Leite, onde as oligarquias de grandes cafeicultores de São Paulo e grandes produtores de gado de Minas Gerais alternavam-se no poder. Apesar de ocorrerem eleições nessa época, o voto popular era controlado pelos coronéis locais, por meio do chamado “voto de cabresto”.
- Em 1930, o Brasil assiste a mais um golpe: a chamada Revolução de 1930, que leva ao poder Getúlio Vargas com um governo inicialmente democrático, porém, marcado ao seu fim por uma fase ditatorial.
- Em 1964, se inicia a Ditadura Militar no Brasil que restringiu direitos e promoveu as repressões e a censura no país por 21 anos.
A Constituição Federal de 1988
O processo de redemocratização se iniciou após o fim da Ditadura Militar. Amplos debates aconteceram por mais de um ano e resultaram na Constituição de 1988. Esta foi a sétima constituição do país e considerada a mais democrática, conhecida como a Constituição Cidadã.
A Assembleia de criação da Constituição, chamada de Assembleia Constituinte, contou com a participação popular e teve como finalidade organizar uma nova carta constitucional que estruturasse as bases para um regime democrático no Brasil.
Ao criar instituições democráticas sólidas para suportar crises políticas e estabelecer garantias para o reconhecimento e o exercício dos direitos e das liberdades dos brasileiros, a Constituição de 1988 consolidou, portanto, o período mais estável da democracia brasileira.
A Carta Magna restabeleceu que os direitos e liberdades básicas dos indivíduos são invioláveis. Criou e fortaleceu preceitos como a igualdade de gênero, a criminalização do racismo, a proibição total da tortura, e a instituição de direitos sociais como educação, trabalho e saúde para todos.
Leia mais sobre a constituição de 1988 aqui!
Os direitos fundamentais
No Artigo 5º da Constituição se encontram os direitos e liberdades dos indivíduos. É neste artigo que podemos encontrar grande parte dessas garantias fundamentais individuais e coletivas que asseguram a todos a igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assim como a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Mas alguns atos ocorridos nos últimos anos têm levantado questionamentos sobre os limites do exercício democrático. Temos liberdade total para dizermos e fazermos o que quisermos? Até onde podemos exercer as nossas liberdades? Quais são os limites para se manifestar e o que pode transformar um protesto em um ato antidemocrático ou inconstitucional?
Para responder tais perguntas, precisamos lembrar que a Constituição, ainda em seu artigo 5º e parágrafos seguintes, apresenta diversos direitos aos cidadãos brasileiros e aqueles que aqui residem, como por exemplo:
IV – livre a manifestação do pensamento (…);
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (…);
XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente (…).
Além destes citados, podem ser elencados na Constituição diversos direitos que possuem relação direta com a liberdade de expressão, opinião e manifestação. Mas em algumas ocasiões, o exercício desses direitos podem ser entendidos como atos que vão contra a Constituição e até mesmo contra a Democracia.
O excesso de manifestação de pensamentos contrários aos princípios encartados na Constituição Federal tem sido observado e apontado por especialistas como atos antidemocráticos e inconstitucionais.
Você sabia que o Politize! tem um projeto especial dedicado ao Artigo 5º da Constituição?
3 – Atos Antidemocráticos
Os atos antidemocráticos podem ser entendidos como manifestações (orais, publicadas em redes sociais, proclamadas em protestos, e outras) que se opõem ao regime democrático de direito, às suas instituições e a todo e qualquer princípio assegurado pela Constituição.
Mas como assim?! Não temos direito de manifestar pensamentos, expressar nossas atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação ou nos reunir de forma pacífica?
A resposta é sim! A manifestação do pensamento, expressão e reunião são sagrados para a Constituição por serem essenciais ao exercício da cidadania. Porém, esses direitos estão sujeitos a limites.
Isso significa que, dependendo do teor da manifestação, indivíduos podem ser responsabilizados civil ou penalmente. Afinal, as leis civis e penais valem no contexto das manifestações como em qualquer outra situação ou circunstância.
Dessa forma, indivíduos que disseminam notícias fraudulentas, proferem ofensas ou ameaças a outros indivíduos, externalizam opiniões racistas ou envolvem-se em crimes durante manifestações podem responder pelas condutas praticadas.
A liberdade de expressão e seus limites
O entendimento jurídico sobre o assunto é o de que a liberdade de expressão e a manifestação de pensamento não são absolutas pois encontram limites em outros direitos também essenciais.
Significa dizer que temos o direito de nos reunir, nos expressar e até mesmo protestar acerca de um determinado assunto. Porém, atos de cunho racistas, preconceituosos ou discriminatórios, que incitam ou provocam ações ilegais e contrárias ao Estado Democrático de Direito, ou que atentam contra a honra e a imagem das pessoas, podem admitir punições.
Em relação à conduta dos indivíduos que se reúnem para manifestar acerca de um determinado assunto, para não haver excessos, devem ser observadas questões como o cumprimento de horário determinado bem como do local, a pacificidade, o caráter das manifestações e de seus discursos.
Há, portanto, uma grande diferença em exercer a liberdade de expressão e promover discursos de ódio. Todo tipo de manifestações caracterizadas por ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos ferem as garantias e direitos fundamentais assegurados na Constituição. Assim como quando falamos em liberdade de pensamento em redes sociais, as informações promovidas e o teor dessa manifestação tornam-se essenciais para delimitar se as condutas abrangidas podem ser consideradas como crimes.
Quando que um discurso pode ser crime?
Por exemplo, caluniar (atribuir falsamente um crime a alguém), difamar (ofender a reputação de alguém) e injuriar (ofender a dignidade de alguém) são crimes pois atingem diretamente os princípios basilares da dignidade da pessoa humana: a honra, a intimidade, a privacidade e o direito à imagem.
Até mesmo as críticas a um determinado político devem ser feitas com cautela. Afirmações de que esse é corrupto, ladrão ou um sem-vergonha, por exemplo, precisam encontrar os limites trazidos pela própria Constituição para que não sejam passíveis de punição judicial.
É reconhecido que as pessoas públicas estão sujeitas a críticas no desempenho de suas funções. No entanto, essas alegações não podem ser infundadas, pois se consideradas graves e não forem apresentadas provas de sua veracidade, configura-se como um crime contra a honra: o dano moral.
Existem, ainda, diversos exemplos dos limites da liberdade de expressão e de manifestação que devem ser analisados de acordo com os casos concretos para determinar se são, de fato, atos antidemocráticos. Mas, de maneira geral, entende-se que estes limites foram estabelecidos para coibir manifestações que atinjam os princípios da dignidade humana, os valores de nossa sociedade e agressões à democracia.
Inquéritos sobre atos antidemocráticos no Brasil
Em 2019, diante da disseminação de notícias fraudulentas, ofensas e ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF), seus Ministros e familiares, o presidente da Corte, Dias Toffoli, abriu um inquérito criminal para investigar tais fatos.
A abertura do inquérito das fake news teve como justificativa, segundo o Presidente do STF:
“a existência de notícias fraudulentas, conhecidas como fake news, denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”.
Em 2020, durante um debate virtual sobre liberdade de imprensa e segurança de jornalistas, o Ministro Alexandre de Moraes, então relator do inquérito, disse que as liberdades de expressão e de imprensa precisam ser exercidas, seja em mídias tradicionais ou nas redes sociais, de modo responsável, com a consciência de que os abusos devem ser punidos, pois não se pode confundir liberdade com irresponsabilidade.
Moraes ressaltou que:
“não se pode vedar a livre circulação de ideias, a livre manifestação de ideias, a livre expressão, a liberdade de imprensa, tanto que a Constituição veda censura prévia. Agora, a mesma Constituição autoriza a responsabilização se a notícia for dolosamente [intencionalmente] danosa, se a notícia for direcionada a macular a honra de alguém, se a notícia for direcionada a influenciar resultados eleitorais”.
O ministro finalizou concluindo que é preciso punir os responsáveis de modo a garantir a livre circulação de ideias na democracia de forma que a lei e a Constituição sejam devidamente aplicadas para o fortalecimento da imprensa, da segurança dos jornalistas e da rápida responsabilização de quem ataca os jornalistas, de forma presencial e virtualmente.
Outro inquérito versando sobre um assunto similar foi aberto. O ministro Alexandre de Moraes decidiu atender ao pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras. Moraes instaurou um inquérito para apurar “fatos em tese delituosos” envolvendo a organização de atos antidemocráticos.
Os protestos ocorridos em Brasília e em algumas cidades do país foram marcados por faixas e palavras de ordem contra o Congresso Nacional, e a favor de uma intervenção militar, gerando grande repercussão no meio político, incluindo entre ministros do próprio Supremo e de entidades de classe.
Ao acionar o Supremo, Aras justificou o pedido informando que nessas manifestações foram cometidos atos antidemocráticos por parte de “vários cidadãos, inclusive deputados federais”, cabendo à Suprema Corte a competência de investigar e julgar os deputados.
Inquérito dos protestos: duas interpretações
No caso citado, há dois entendimentos por especialistas da área jurídica sobre esses atos serem, ou não, antidemocráticos.
O primeiro é de que não há crime já que a liberdade de expressão é um direito fundamental. O segundo é de que ao defender uma intervenção militar, um cidadão possa ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7170 de 1983). Entre os bens a serem protegidos de atos criminosos nesta lei estão o regime representativo democrático, a Federação e o Estado de Direito e a Pessoa dos chefes dos Poderes da União.
O descumprimento das recomendações de não realização de atos que gerem aglomeração de pessoas, durante a pandemia do Coronavírus, também levantou diversos debates. Por exemplo, os atos, ocorridos em maio de 2020 descumpriram as recomendações internacionais de isolamento social e contaram com violência a profissionais da imprensa, faixas com mensagens contra o Poder Legislativo e o Poder Judiciário e menções às Forças Armadas.
Para alguns criminalistas, a realização de atos neste período pode ser considerada crime contra a saúde pública se estiverem em vigor determinações para que não ocorram aglomerações. Há ainda o entendimento de que a participação em atos nesse período também possam ser enquadrados como crime pelo Artigo 131 do Código Penal como Perigo de Moléstia Grave. Para o caso em específico ocorrer, o indivíduo deve estar infectado e desejar contaminar outras pessoas.
De forma geral, os casos citados demonstram que, apesar de direitos de liberdade, expressão e manifestação, os excessos que possam ser contrários aos princípios dispostos na Constituição Federal podem configurar crimes e, em casos mais graves, atos antidemocráticos e inconstitucionais.
4 – Manifestar a favor de algo ilegal é crime?
A resposta é: depende.
Nem todas as manifestações a favor de algo ilegal são sempre ilícitas. Por exemplo, a Marcha da Maconha que foi considerada legal pelo STF em 2011.
Para os Ministros, a manifestação favorável à legalização da substância é válida, pois sustenta um ponto de vista sobre a mudança da lei e não uma apologia ao seu uso ou defesa ao tráfico de drogas, que é uma atividade ilícita.
Os direitos constitucionais de reunião e de livre expressão do pensamento garantem a realização dessas marchas. Sendo que a liberdade de expressão e de manifestação somente podem ser proibidas quando incitar ou provocar ações ilegais e iminentes.
A mesma interpretação também seria válida para atos a favor da legalização do aborto.
Mas, é preciso compreender que manifestações favoráveis a leis racistas ou discriminatórias não podem ser consideradas legítimas e, por isso, podem ser puníveis.
Ao se expressar a favor do aborto, por exemplo, está sendo externalizada apenas uma opinião acerca do tema e da lei que tutela a questão. O que é muito diferente de manifestações com teor racista ou preconceituoso, que se embasam em discursos de ódio. Estes ferem as garantias e direitos fundamentais assegurados na Constituição.
Entendeu como certos atos coletivos e individuais devem respeitar limites? Direitos a nós concedidos não devem se chocar com outros direitos igualmente importantes. Os limites servem não só para a sociedade, mas também para o o próprio sistema político.
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REFERÊNCIAS:
- Biblioteca do Senado- Anio Moraes da Silva: O Estado Democrático de Direito
- Consultor Jurídico – Atos antidemocráticos e crime de responsabilidade
- Gazeta do Povo – O que faz de um protesto um ato antidemocrático e qual o limite para se manifestar
- Norberto Bobbio: O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. tradução de Marco Aurélio Nogueira — Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
2 comentários em “Atos antidemocráticos: 4 pontos para entendê-los”
Acho que a autora usa dois pessos e duas medidas, quando afirma que defender o aborto é permitido, é o exercício de um direito porque externa apenas uma opinião acerca do tema e da lei. Ao passo que participar de manifestação condenando ações inconstitucionais de ministros do STF, que são visivelmente ativismo político, aí é legal, beleza.
Sou adovogada, conheço o Código Penal e sei que nele, nem em leis criminais esparsas não existem crimes chamados “discurso de ódio”, nem “atos antidemocráticos”. São coisas da esquerdona comunista, hipócrita e corrupta.