Crise na Bolívia: protestos e a renúncia de Evo Morales

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(Manifestações na Bolívia. Fonte: Manuel Claure/REUTERS)

A Bolívia é considerada por analistas como o país com maior instabilidade política da América Latina – palavra popular é que o país teve mais golpes de Estado do que natais. Hoje, o país encontra-se em meio a protestos e violência política em uma discussão sobre a renúncia do presidente Evo Morales: foi ou não foi golpe?

Evo está exilado no México enquanto a violência nos protestos escala dentro do país, por parte dos apoiadores e opositores do ex-presidente. Tudo isso teve início em um contexto de crescimento econômico e crise política – a Bolívia teve a maior média de crescimento da região durante o período de mandato de Evo Morales, iniciado em 2006, que foi duramente criticado por suas tentativas de se manter no poder indefinidamente. Nesse tempo, foram discutidas alterações nas regras de reeleição duas vezes, o modelo político do país passou a ser plurinacional e a instabilidade política nos países vizinhos aumentou, tendo uma escalada principalmente nos últimos meses. 

Para entender melhor o que se passa, nesse texto buscamos esclarecer quem é Evo Morales e o que é o Estado Plurinacional, o contexto econômico do país e quais foram os fatores que levaram a população às ruas e à renúncia do ex-presidente e sua linha sucessória. 

Evo Morales e o Estado Plurinacional da Bolívia

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Evo Morales (Fonte: REUTERS)

Antes de tudo é necessário entender quem é Juan Evo Morales Ayma e o que ele representa para a política boliviana. 

De origem indígena, Evo nasceu no campesinato em um pequeno povoado mineiro, mudando-se ainda pequeno para a região de Chapare, onde os camponeses dependiam quase que integralmente do cultivo da folha de coca. Evo destacou-se como líder sindical dos cocaleros, em oposição às imposições dos Estados Unidos para erradicação do cultivo da folha de coca como parte de sua campanha de guerra às drogas. Assim, conseguiu alavancar-se no movimento sindical e ser eleito membro do Congresso em 1997 com 70% dos votos dos distritos.

Filiado ao partido MAS (Movimento ao Socialismo), o então congressista foi destituído de seu cargo em janeiro de 2002, sendo acusado de terrorismo por conta de protestos e devido à pressão da embaixada dos Estados Unidos. Ainda assim, ele se candidatou às eleições presidenciais de 2002. Em março do mesmo ano sua destituição foi considerada inconstitucional. 

Evo conseguiu alcançar o segundo lugar na com uma diferença mínima do partido tradicional, a partir de uma campanha totalmente voltada para a população indígena, apresentando-se como o candidato do povo. Assim, nas eleições de 2005 pela primeira vez na história da Bolívia um indígena foi eleito pelo voto popular, com uma margem significativa em relação ao segundo candidato.

Com orientação socialista e um forte teor de oposição aos Estados Unidos, Evo teve como foco em seu governo a implementação da reforma agrária e a nacionalização de setores-chave da economia, lutando muito pelo estabelecimento de uma assembleia constituinte para transformar o país. A constituinte foi criada e o texto da nova Carta Magna do país foi aprovado pela população em referendo em 2009, transformando a Bolívia em um Estado Plurinacional.

O referendo de 2009 e a nova Carta Magna

Dentre as mudanças instituídas pela nova constituição boliviana, a principal foi a criação do Estado Plurinacional da Bolívia, que na prática reconhece as 36 nações originárias entre as diferentes etnias do país e concede autonomia a elas.

A demanda por um novo modelo de Estado nasce de uma luta popular secular contra o pensamento colonial. A Bolívia declarou a independência política da Espanha em 1825, e entre esse período e o fim da última ditadura militar, em 1982, os bolivianos presenciaram 193 golpes de Estado. De 2001 a 2006, foram 5 presidentes diferentes. A maior questão entre a população era a falta de representatividade: o país tem 70% de sua população indígena que não se sentia representada no modelo político, dizendo que a dominância era da elite minoritária que seguia o modelo colonial, excluindo a população indígena do processo democrático.

O que mudou com a nova constituição?

A formação do Estado plurinacional em substituição ao Estado unitário passa a reconhecer 36 etnias no processo democrático dando-lhes autonomia de gestão e jurisdição dentro da sua zona de influência. Na prática isso significa que as populações indígenas e camponesas passaram a ter participação ampla e efetiva em todos os níveis de poder estatal, além da liberdade de jurisdição segundo usos e costumes culturais dentro das zonas de influência, desde que sem ter atrito com a Constituição.

Outro ponto importante foi a mudança na regra de reeleição: em 2006, quando Evo Morales foi eleito, a Constituição boliviana não permitia dois mandatos consecutivos: a nova Carta Magna passou a autorizar duas reeleições, de forma que Evo pode se candidatar novamente ao pleito em 2010 e 2014. 

A Constituição foi considerada inovadora principalmente pela incorporação da população indígena e camponesa no processo político em um país que tem grande maioria da população de tal origem. Os impactos dessa mudança foram uma estabilidade democrática de 10 anos que não era vista há muito no país, que observou um número recorde de golpes de Estado. Nesse ano de 2019 a instabilidade voltou a predominar e estamos agora em meio a discussão sobre a saída de Evo Morales ser considerada golpe ou não.

Crescimento econômico boliviano acima da média

O que trouxe a instabilidade de volta a um país que vinha observando ritmos altos de crescimento econômico desde a posse de Evo Morales em 2006? A instabilidade dos vizinhos sul-americanos como Equador, Peru, Brasil, Paraguai, Argentina e Chile tem um fator em comum: insatisfação econômica, em termos de crescimento ou índices de desigualdade. 

Já a Bolívia observa desde 2006 um crescimento econômico médio de 5% ao ano – o maior crescimento na América do Sul, com previsão de terminar 2019 com crescimento médio de 4%, segundo o FMI. O contexto econômico durante o mandato de Evo é chamado inclusive de “milagre econômico boliviano”. O que se observa não é crescimento sem distribuição de renda (como é o caso do Chile), mas uma redução constante nos índices de desigualdade.

O que o governo de Evo desenvolveu foi uma espécie de economia mista: ao mesmo tempo que priorizou a nacionalização do controle dos recursos naturais como petróleo e gás natural – parte das empresas privadas foi transferida para as mãos do Estado -, também abriu o mercado a empresas multinacionais e estrangeiras, principalmente no setor de consumo. 

A arrecadação obtida com o gás e petróleo ao longo desse período foi revertida em políticas de justiça social de distribuição de renda (inspiradas no Bolsa Família de Lula) para inserção da população mais pobre no mercado de consumo, o que atraiu ainda mais empresas estrangeiras. Os valores arrecadados foram altos no período do boom das commodities (aumento do preço internacional de itens como o petróleo e gás), e quando o mercado internacional começou a cair a partir da crise internacional de 2008, o governo boliviano manteve as políticas sociais ancoradas em uma política expansionista (aumento do gasto do Estado). É por isso que ainda hoje a Bolívia observa crescimento econômico, diferente dos países vizinhos – entretanto, críticos alertam para um esgotamento próximo desse modelo baseado no aumento do déficit público.

Eleições de 2019: o que está acontecendo?

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Manifestantes em La Paz. Fonte:REUTERS/Kai Pfaffenbach

Conforme explicado anteriormente, quando Evo chegou ao poder em 2006 a Constituição boliviana não permitia reeleição – o que foi alterado com a promulgação da nova Carta Magna, em 2009. Esta, por sua vez, permitia duas reeleições ao cargo. Evo Morales foi democraticamente eleito em 2006 e, posteriormente, em 2010 e 2014 chegando ao limite de mandatos possíveis.

Em 2016, os partidários do governo convocaram um novo referendo popular para alteração da lei a respeito da reeleição. Dessa vez, propunham que não houvesse limite à quantidade de vezes que um candidato pudesse se reeleger. O povo votou e não aprovou a proposta – a essa altura o debate nacional por parte da oposição e também internacional já trazia duras críticas ao então presidente, acusando-o de “sede de poder” e até de estabelecimento de um regime ditatorial. Após sair derrotado do referendo, o presidente então recorreu ao Supremo Tribunal Federal e à Suprema Corte da Bolívia conseguindo, assim, autorização para concorrer mesmo assim nas eleições do dia 20 de outubro.

O debate em relação a constitucionalidade dos atos do presidente afetaram a estabilidade política do país e ele passou a receber duras críticas e pressão da oposição. 

Outro fator importante que contribuiu com o clima instável foram as dúvidas em relação à apuração eleitoral. O sistema eleitoral na Bolívia é de cédulas de papel e, portanto, o processo de apuração leva mais tempo principalmente pelo tempo de deslocamento das urnas de regiões mais afastadas. Logo após o fim das votações no dia 20 de outubro, o Tribunal Superior Eleitoral iniciou a contagem e ao ter apurado cerca de 80% das urnas, os resultados apontam que Evo estava na frente do candidato da oposição Carlos Mesa, mas com possibilidade de ir para o segundo turno. Nesse momento, na noite do dia 20, o TSE suspendeu a contagem sem fornecer maiores informações. Quando a contagem foi retomada na manhã do dia 21, com mais de 90% das urnas apuradas, os resultados apontavam vitória de Evo Morales em primeiro turno. 

Os resultados foram questionados pela população e a oposição acusou o TSE de fraude nas eleições. A Organização dos Estados Americanos também apontou que a suspensão da contagem afetava a credibilidade e a transparência do processo eleitoral. Evo Morales então pediu que a OEA realizasse uma auditoria dos resultados das eleições para verificar a legitimidade do processo.

Com o aumento da vulnerabilidade da situação de Evo Morales em meio à desconfiança, líderes da oposição apostam na mobilização popular e passam a radicalizar seus discursos. Os protestos de rua contra o resultado das eleições foram ganhando força ao longo de todo país – inclusive em La Paz, onde historicamente o presidente tinha o maior apoio. Houve uma escalada da violência nas manifestações e em certo momento a própria polícia se negou a conter os manifestantes e, por fim, se aliou à população nos protestos contra Evo, que tomaram o país nas semanas seguintes. Críticos e apoiadores de Morales se enfrentaram nas ruas e a violência deixou pelo menos três mortos e centenas de feridos durante esse período. As Forças Armadas declararam que não agiriam contra os manifestantes.

A situação foi abalada ainda mais pela divulgação preliminar dos relatórios da auditoria da OEA, que apontavam diversas irregularidades nas eleições marcando indicativo de fraude. 

Simples renúncia ou Golpe de Estado?

Após três semanas de protestos ao longo de todo o país, Evo Morales então comunicou, na manhã de domingo (10/11), que convocaria novas eleições

O que aconteceu em seguida é o principal ponto que entra na discussão para classificar a saída do presidente como simples renúncia ou como golpe de Estado: no mesmo dia em que Evo comunicou a convocatória de novas eleições, o Comandante das Forças Armadas da Bolívia, general Williams Kaliman, divulgou um comunicado em nome do alto comando sugerindo a saída de Morales como forma de resolver o impasse político em vista das eleições presidenciais. Evo Morales veio a público na mesma noite anunciar sua renúncia ao lado de seu vice-presidente, Álvaro García Linera, que disse que também deixaria seu cargo. “O golpe foi consumado”, afirmou Linera. 

Em seu discurso de renúncia, Morales destaca que sua saída era um pedido de paz: “é minha obrigação como presidente indígena e de todos os bolivianos garantir a paz social. […] Renuncio para que Mesa e Camacho não continuem a maltratar os familiares de nossos companheiros, não continuem atacando ministros e deputados, para que parem de maltratar os mais humildes”, disse Morales. “A luta não termina aqui. Os humildes, os patriotas, vamos continuar lutando pela igualdade e a paz. […] Foi um golpe de Estado cívico e policial. Dói muito o que se passou”, declarou.

A definição de golpe de Estado é a destituição forçada do chefe de Estado. As alegações de que o que aconteceu na Bolívia pode ser caracterizado como golpe partem do princípio de que Evo foi pressionado pelas Forças Armadas a deixar o poder, mesmo após já ter comunicado que convocaria novas eleições. 

Em comentário sobre o assunto, o embaixador brasileiro e ex Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim afirma que as ações de Evo como convidar a OEA para realizar a auditoria e convocar novas eleições são a prova de que Morales estava comprometido com a credibilidade e transparência, e não com a suposta tentativa de fraude. Assim, segundo ele, não é possível avaliar a saída de Evo como uma renúncia voluntária, principalmente pela mudança de posição do presidente durante o mesmo dia, logo após a pressão militar.

Ainda segundo Amorim, os riscos de uma ação de Evo em desobediência às Forças Armadas podem ser avaliados inclusive como ameaças de violência e morte. O que se observou após a saída de Evo foi a renúncia conjunta de toda a linha sucessória à presidência – vice-presidente e os chefes do Senado e da Câmara – e de grande parte dos ministros, o que se alia às alegações de que não só os líderes do governo estão ameaçados, mas todo o projeto político construído durante o mandato de Evo Morales.

Morales encontra-se agora em asilo no México. Dois dias depois da sua saída a senadora Jeanine Añez se autodeclarou presidente interina da Bolívia, aproveitando-se do vácuo de poder provocado pelas renúncias conjuntas. Cientistas políticos afirmam que a posse da senadora foi ilegítima, alegando que a sessão no Congresso em que ela se autoproclamou não tinha quórum, além de tal ato não ser previsto na Constituição boliviana. A senadora anunciou que convocará novas eleições nos próximos dias.

A Bolívia segue conturbada por manifestações cada vez mais violentas, por parte tanto de apoiadores, quanto de críticos a Evo, inclusive hostilizando líderes políticos partidários a Morales em diversas regiões do país. Alegando a necessidade de “restabelecimento da ordem interna e da estabilidade política”, o governo interino assinou decreto isentando as Forças Armadas de responsabilidade penal em casos de violência e mortes. O decreto entra em cena quando o número de mortes nos protestos chega a 23, um dia antes de forças da Polícia Nacional deixarem 9 cocaleiros pró-Evo mortos e 182 feridos em um confronto.

A situação segue instável e aguardamos a prometida convocatória de novas eleições para entender quais são os rumos de mais uma democracia em crise na América do Sul.

REFERÊNCIAS

The Rise of Evo Morales and the MASConferência de Magali Vienca Copa Pabón sobre o Estado Plurinacional  – Bolívia tem histórico de golpes e crises – EstadãoO conceito de Estado Plurinacional na Bolívia – MonografiaO sucesso econômico na Bolívia – BBCBolívia (página) – FMIÍndice de GINI – BolíviaCrescimento econômico da Bolívia – Brasil de FatoCronologia da crise política no Bolívia – BBCSuspensão na contagem dos votos – Valor EconômicoDeclaração sobre processo eleitoral na Bolívia – OEAProtestos pedem novas eleições – G1Relatório preliminar da auditoria do processo eleitoral – OEAEvo Morales convoca novas eleições na Bolívia – Agência BrasilDeclaração general Williams Kaliman (vídeo)Discurso de renúncia de Evo Morales (vídeo)Entrevista de Celso Amorim sobre o golpe na Bolívia (vídeo)Especialistas sobre a posse da senadora Añez – FolhaAñez anuncia que convocará novas eleições – O GloboGoverno interino assina decreto isentando responsabilidade penal das Forças Armadas – Estadão

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Kist, Jaqueline. Crise na Bolívia: protestos e a renúncia de Evo Morales. Politize!, 22 de novembro, 2019
Disponível em: https://www.politize.com.br/bolivia/.
Acesso em: 22 de nov, 2024.

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