Ocorrida em Assunção do Paraguai, a 64ª Reunião de Cúpula do Mercosul selou o ingresso da Bolívia no bloco sul-americano no início de julho de 2024. Com isso, o Mercado Comum do Sul passou a ser uma união aduaneira de 300 milhões de habitantes e a contar com uma superfície de 13 milhões de km² e um PIB de 3.5 trilhões de dólares. Neste texto, a Politize! te explica como foi este processo de inserção da Bolívia e quais são as potencialidades e os desafios para Mercosul a partir de agora.
Bolívia no Mercosul: histórico da integração regional
O interesse pela integração regional na América do Sul nasceu com a Declaração de Iguaçú, em 1985. A iniciativa foi dos presidentes argentino Raúl Alfonsín e brasileiro José Sarney. Posteriormente, Uruguai e Paraguai se uniram ao grupo, dando origem ao Mercado Comum do Sul. O nascimento formal do bloco ocorreu com a assinatura do Tratado de Assunção em 1991.
Desta forma, o Mercosul é composto pelos quatro países acima mencionados, os chamados Estados Parte. Além deles, existem também os Estados Associados: Chile, Peru, Colômbia e Equador. Até 2006, a Bolívia fazia parte deste grupo de países. Naquele ano, o então presidente boliviano Evo Morales formalizou o pedido de ingresso na união aduaneira.
O processo se estendeu até 2024 porque precisava passar por várias etapas e devido à morosidade do Congresso brasileiro. O Legislativo brasileiro foi o último a tratar do tema. Uma vez aceita pelos Estados Parte, a Bolívia tem agora quatro anos para se adaptar às normativas do Mercosul. Uma delas é a adesão à Tarifa Externa Comum (TEC) vigente entre os membros do bloco.
Estas normativas precisam ser seguidas à risca dentro do prazo estabelecido, caso contrário o país pode ser penalizado. A Venezuela, por exemplo, foi suspensa duas vezes, sendo a primeira em 2016 por não ter cumprido as normas. A segunda suspensão aconteceu em 2017, pela violação de cláusulas democráticas previstas pelo Protocolo de Ushuaia de 1998.
Bolívia no Mercosul: potencialidades para o Brasil
Para o Brasil, o ingresso da Bolívia no Mercosul pode acarretar inúmeras potencialidades. A maior fronteira terrestre do Brasil é com a Bolívia, somando 3.432 km de extensão. A faixa fronteiriça abrange quatro Estados brasileiros: Acre, Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Além disso, Brasil e Bolívia compartilham dois biomas: amazônia e o pantanal. Nesse sentido, a integração tende a facilitar a realização de operações conjuntas de fiscalização e preservação do meio ambiente.
A principal potencialidade, no entanto, está nos âmbitos econômico e logístico. Embora não tenha saída ao mar, a Bolívia tem acordos com o Chile e o Peru. Graças a estes acordos, o país pode usar os portos do oceano Pacífico. Enquanto membro do Mercosul, a Bolívia pode facilitar o acesso a estes portos aos estados brasileiros mencionados. Acre, Rondônia e Mato Grosso estão mais próximos do Pacífico do que do Atlântico. A vantagem logística implicaria na redução dos custos dos transportes.
Outro aspecto econômico relevante é o comércio externo. O gás natural representa 86% das importações do Brasil junto à Bolívia. Agora, os acordos para o fornecimento deste recurso podem ser renovados com prazos maiores. O maior benefício que o Brasil pode ter com o ingresso boliviano corresponde à ampliação do fornecimento de gás. Para isso, porém, é preciso que exsista um ambiente político-econômico favorável à prospecção e exploração de novas fontes de gás natural.
A Bolívia também tem imensas reservas de lítio, um metal usado para o funcionamento de baterias. O acesso ao lítio contribuiria para o desenvolvimento de um novo setor da indústria automotiva, o dos carros elétricos. Do mesmo modo, o Brasil pode vir a ser beneficiado pelo acesso a insumos para fabricação de fertilizantes. Ter um fornecedor deste tipo de insumo dentro do Mercosul diminui a dependência de fertilizantes importados.
Ainda no aspecto econômico, a ampliação do Mercosul consolida um mercado consumidor de produtos manufaturados brasileiros. Argentina, Uruguai, Paraguai e, a partir de agora, a Bolívia, estão entre os principais importadores da indústria brasileira. Uma ampliação da união aduaneira pode contribuir para interromper a desindustrialização vivenciada pela economia brasileira nas últimas décadas.
Bolívia no Mercosul: potencialidades para a Bolívia
A Bolívia tem um histórico vínculo com os países do Mercado Comum do Sul. Junto com o Chile, a Bolívia foi o primeiro país a celebrar um Acordo de Complementação Econômica com o Mercosul. Por meio dele, o país ganhou o status de Estado Associado. Aliás, o fluxo de comércio da Bolívia com o Mercosul é superior ao que o país tem com a Comunidade Andina de Nações (CAN), bloco econômico de que o país já fazia parte, junto com Peru, Colômbia e Equador. Tanto o Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, quanto o Protocolo de Cartagena, que constituiu a CAN, permite que seus Estados membros façam parte de mais de um bloco ao mesmo tempo.
Para a Bolívia, o ingresso no Mercosul pode possibilitar um aumento dos fluxos de comércio com as maiores economias da América do Sul, bem como o recebimento de investimentos na exploração de seus recursos naturais. O presidente Lula, inclusive, mencionou a possibilidade de a Petrobras investir na exploração dos hidrocarbonetos ou do lítio boliviano. No entanto, muitos agentes do mercado temem investir em um país onde o governo já nacionalizou os hidrocarbonetos nos anos 2000.
Além do gás natural e do lítio, a Bolívia pode ser beneficiada com um aumento das exportações de petróleo, resíduos de óleo de soja, zinco e prata. Do mesmo modo, o país governado atualmente por Luis Arce pode ser favorecido por obras de infraestrutura que facilitem o escoamento da produção dos Estados brasileiros antes mencionados.
O pertencimento ao Mercosul pode implicar, inclusive, no fortalecimento da democracia boliviana, recentemente atacada por uma tentativa de golpe de Estado por parte das Forças Armadas do país. Ao integrar o grupo sul-americano, a Bolívia passa a fazer parte dos tratados e protocolos que regulamentam a resolução de controvérsias e de proteção dos direitos humanos. Um destes protocolos é o de Ushuaia, que estabelece que países membros que desrespeitem as regras democráticas sejam suspensos.
Para além dos aspectos econômicos, seu ingresso no Mercosul implicará em benefícios aos cidadãos bolivanos residentes no Brasil. Do mesmo modo, os brasileiros que residem na Bolívia terão menos burocracia em seus procedimentos legais. A partir de agora, cidadãos dos dois países poderão cruzar a fronteira sem a necessidade de um passaporte. Bastará o documento de identidade, como já funciona entre os Estados Parte do bloco.
Bolívia no Mercosul: desafios para a integração regional
A entrada da Bolívia oxigena o bloco exatamente em um momento de crise. Desde que assumiu a presidência do Uruguai, Luis Lacalle Pou ameaça deixar o bloco para assinar um acordo de livre comércio em separado com a China. O regulmento do Mercosul impede acordos de livre comércio em separado com outros países.
Ferrenho crítico do bloco, o presidente da Argentina, Javier Milei, também vem questionando a permanência no bloco. Milei, aliás, sequer participou da reunião de cúpula que selou o ingresso da Bolívia. Nunca antes um presidente havia faltado a uma reunião desta magnitude.
Como se não bastassem as divergências internas, os países do bloco viram o acordo comercial com a União Europeia ser enterrado pelo presidente francês Emmanuel Macron. Embora não fosse o único contrário ao acordo, Macron foi o principal obstáculo para a sua sanção. O chefe de Estado cedeu à pressão dos agricultores franceses em um contexto de fortalecimento de partidos de extrema-direita.
Diante de tantos revezes e conflitos, a entrada da Bolívia no Mercado Comum do Sul implicará na sua expansão. A união aduaneira ganha novo fôlego para enfrentar os seus inúmeros desafios regionais.
Numerosos são os desafios que o ingresso da Bolívia implicará para o Mercosul. Embora exista um organismo dedicado a financiar obras nos Estados membros “menores”, o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM) dispõe de poucos recursos diante da enorme demanda por obras de infraestrutura. Do mesmo modo, como já pontuado, o governo boliviano precisará tranquilizar investidores em relação ao seu ambiente de negócios. As nacionalizações levadas a cabo pelo ex-presidente Evo Morales em um passado recente afastam investidores do país.
Outro desafio que a Bolívia terá de superar é a desigual distribuição da riqueza no seu território. Regiões como Beni, Potosí, Pando e Chuquisaca atualmente possuem economias decadentes que em nada parecem aos tempos áureos da mineração de prata. Por outro lado, a região de Santa Cruz de la Sierra apresenta os mais elevados índices de qualidade de vida e PIB.
Por ser a principal produtora de gás natural, Santa Cruz de la Sierra se tornou a região mais rica e a cidade de mesmo nome, a mais populosa do país. Existe, inclusive, um movimento que deseja a separação e independência de Santa Cruz de la Sierra em relação ao restante da Bolívia. Caberá aos governos bolivianos impedir que esta desigualdade regional se acentue com o aumento dos fluxos de comércio com os países vizinhos.
Ademais, a facilitação da circulação de mercadorias pode gerar outro desafio: o tráfico de cocaína. Na Bolívia, o cultivo de folhas de coca é legalizado e o seu consumo é generalizado nas regiões montanhosas. Segundo a ONU, a Bolívia seria o terceiro maior produtor de cocaína, atrás de Colômbia e Peru. A facilidade em conseguir o insumo básico para produção de cocaína atraiu a atenção de grupos criminosos brasileiros, como o PCC. Superar este desafio implicará em ações conjuntas entre polícias brasileiras e colombianas, sobretudo na troca de informações.
Por fim, a instabilidade política é outro desafio a ser superado. A Bolívia tem um histórico de golpes de Estado e de turbulências políticas. O país já teve presidente linchado na rua e o próprio palácio presidencial incendiado. Por isso, o edifício onde despacha Luis Arce se chama Palácio Queimado. Este histórico de instabilidade afugenta investidores e dificulta negociações e obras. Neste quesito, cabe aos governos bolivianos respeitarem as regras democráticas e aos vizinhos zelar pelo seu cumprimento de forma incisiva, sem depender da ideologia do governo de turno.
Em síntese, as potencialidades existem e são muitas. Porém, para que elas se concretizem, vai depender muito da vontade política dos Estados Parte do Mercado Comum do Sul. A integração sul-americana teria muito a celebrar se estes desafios forem superados.
Para você, o ingresso da Bolívia pode ser vantajosa para o Mercosul como um todo? Deixe suas respostas nos comentários!
Referências:
- G1 – Bolívia é incorporada como membro pleno do MERCOSUL.
- Folha de São Paulo – Bolívia entra no MERCOSUL e vira 5º membro efetivo do bloco econômico.
- El País – Lula da Silva visita Bolívia e leva um pouco de oxigênio a Luis Arce.
- BBC – Qual o impacto da entrada da Bolívia no Mercosul?
- Politize. – Conheça a União Aduaneira: o MERCOSUL.
- Uol. Bolívia – Como o PCC fez da Bolívia o ‘QG do pó’ exportado para África e Europa