Durante os mais de três séculos de escravidão no Brasil, 4 milhões de africanos escravizados aqui chegaram. Na cidade do Rio de Janeiro, o Cais do Valongo é um local de memória que remete a um dos mais graves crimes contra a humanidade, a escravidão no Brasil.
Esse é o primeiro texto da série sobre a história negra no Rio de Janeiro. Pretendemos, a partir desses conteúdos, trazer a história de contribuição da população negra na formação e desenvolvimento econômico, social e cultural do Brasil.
O Que foi o Cais do Valongo?
O Cais do Valongo foi o local por onde desembarcaram milhares de africanos escravizados entre o final do século XVIII e o início do século XIX. A região do Valongo foi inicialmente, ocupada para receber os africanos escravizados que antes chegavam pela Praça XV, e eram negociados na Rua Direita – hoje Rua Primeiro de Março, no centro do Rio.
A cidade estava crescendo no século XVIII, e a região do Valongo era uma região afastada do centro da cidade. As autoridades resolveram mudar o desembarque para esse local, pois era necessário o afastamento do que era considerado como os problemas que o tráfico de escravizados trazia (as doenças, a mortalidade e também o incômodo da elite portuguesa em relação a presença dos africanos que ali chegavam). Por conta disso, o Marquês do Lavradio, em 1779, estabeleceu uma nova legislação, transferindo o mercado de africanos escravizados para o Cais do Valongo.
Após a chegada da Família Real Portuguesa, junto à corte em 1808, a região do Valongo passou a ser muito frequentada por pessoas que queriam comprar escravos, pois nesse período a população duplicou.
Complexo do Valongo
É importante lembrar que o Cais do Valongo não foi só um porto negreiro. Era também local onde os escravos se recuperavam fisicamente para posteriormente serem vendidos como mão de obra nos mercados. Ele era denominado de complexo porque não incluia somente o Cais de Desembarque, mas também:
–O Lazareto: Hospital de quarentena para recuperação dos recém chegados doentes;
–Casas de Engorda: Local onde eram alimentados para engordarem e serem vendidos,
–Armazéns de venda: Local onde eram vendidos,
–Cemitérios dos Pretos Novos: Fossas comuns onde eram jogados os africanos que chegavam sem vida após a desgastante rota marítima ao Brasil. Não tinham direito a cerimônia.
Segundo a historiadora Hebe Mattos, o complexo do Valongo era também um espaço de quarentena de aprendizado da língua, do trabalho, uma espécie de socialização para a nova vida que teriam ( TEIXEIRA,2015, p. 9)
Segundo o historiador Claudio Honorato, “a partir do século XVIII, o Rio de Janeiro, tornou-se o maior importador de mão de obra africana das Américas e grande centro distribuidor para todo o Brasil”. (Honorato, 2008). Porém o porto funcionava como uma conexão não só para o interior do Brasil, mas também para outros portos da América do Sul, como Montevidéu e Buenos Aires.
Pelo Valongo desembarcaram cerca de um milhão de africanos na cidade do Rio de Janeiro, sendo este, o maior porto de desembarque de africanos escravizados nas Américas e o segundo maior porto de origem dos navios negreiros depois do porto de Liverpool (Inglaterra).
Segundo o antropólogo Milton Guran, durante o século XIX, toda a economia do Império estava relacionada ao tráfico negreiro e a utilização de sua mão de obra. Esse fato levou o Brasil a ser o último país do ocidente a abolir a escravatura (Teixeira, 2015).
O Cais do Valongo ao longo da história
Ao longo dos séculos, o Cais passou por dois momentos de apagamento dessa memória:
Em 1843, foi reconstruído o Cais da Imperatriz. “O Antigo Cais do Valongo foi alargado e embelezado para receber a futura imperatriz Teresa Cristina que chegava para casar com D. Pedro II” (Soares, 2014).
Em 1911, com as reformas urbanísticas do prefeito Pereira Passos, foi aterrado de vez da lembrança da história da cidade, dando lugar a Praça do Comércio.
Redescobrindo o Cais do Valongo
Após um século de encobrimento da história, o Cais do Valongo foi “redescoberto” em 2011, durante as escavações feitas para a reforma urbana da zona portuária. Segundo Milton Duran, suas ruínas são os únicos vestígios materiais da chegada dos africanos no país.
O Cais do Valongo recebeu o título de Patrimônio Mundial pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) em 2017.
Considerado o maior sítio de memória da Diáspora Africana fora da África, representa para o Brasil parte da história da colonização portuguesa e um local de memória para relembrar e refletir sobre a violência contra a humanidade representada pela escravidão, fortalecendo as responsabilidades históricas do Estado brasileiro. (IPHAN, 20, p.115)
O Cais do Valongo é um símbolo material da memória da escravidão africana e das heranças culturais delas decorrentes. Reconhecê-lo como patrimônio da humanidade é conferir esse direito a população afrodescendente do Brasil, e por extensão, de todas as Américas, dentro do entendimento de reparação por séculos de escravidão e segregação racial (IPHAN, 20, p,115).
Para a Unesco, o Cais do Valongo é considerado um sítio arqueológico de memória sensível, pois remete a memória de dor e sofrimento na história dos antepassados dos afrodescendentes que representa mais da metade da população brasileira. Mas é também o reconhecimento da contribuição dos africanos e seus descendentes a formação e desenvolvimento econômico, social e cultural do Brasil.
Saiba mais: um pouco mais da “pequena Africa” no Rio.
E você, conhecia essa parte da história do Rio?
Referências:
HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: O mercado de escravos no Rio de Janeiro- 1758-1831, UFF, 2008.
Rodas dos saberes do Cais do Valongo/ Carlo Alexandre Teixeira (org). Délcio Teobaldo (edição). Niterói, RJ: Kabula Artes e Projetos, 2015.
Porto de Memórias: Pequena África. Carlos Eugênio Líbano Soares, Biz Cultural. Rio de Janeiro, 2014.