Em abril de 2017, a Coreia do Norte envolveu-se em uma crise diplomática com os Estados Unidos e a comunidade internacional – mais uma de muitas em sua história recente. O pequeno país asiático, comandado por um regime ditatorial desde o fim dos anos 1940, apresentou ao mundo mísseis balísticos em uma parada militar, que colocou outras nações em alerta.
O governo norte-coreano também declarou que, se fosse alvo de um ataque nuclear, responderia pelos mesmos meios. Isso ocorreu após o presidente dos Estados Unidos Donald Trump afirmar que conta com a China para “tratar do problema” norte-coreano. Ao longo dos primeiros meses de 2017, a Coreia realizou diversos testes com mísseis – o mais recente ocorreu nesta última semana de maio.
Um dos países mais isolados do mundo, a Coreia do Norte é muitas vezes vista como um enigma. O regime político é considerado dos mais brutais e seus líderes e ex-líderes são vistos como divindades pela população. Afinal, o que é e como surgiu esse país?
ORIGENS
Em 1910, o Japão ocupou a península coreana, que antes disso havia sido uma monarquia por mais de 500 anos. A ocupação japonesa só se encerrou ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, quando a União Soviética declarou guerra ao Japão e ocupou a Coreia.
Observando o movimento da potência rival, e temendo que a Coreia viesse a ser totalmente dominada pelos soviéticos, os Estados Unidos não tardaram em negociar uma divisão da península, na altura da latitude 38. A porção de terras ao sul desse ponto, onde está localizada a capital Seul, foi ocupada pelas tropas americanas, enquanto o norte, onde fica Pyongyang, ficou sob controle soviético. Em suma, a Coreia tornou-se uma das fronteiras da Guerra Fria, conflito tácito entre EUA e URSS que dominaria a geopolítica mundial até o início dos anos 1990.
Logo após a ocupação das forças estrangeiras e da divisão da península, Josef Stalin, líder da União Soviética, ordenou que fosse escolhido um líder socialista para o território ocupado por suas tropas (que mais tarde viria a ser a Coreia do Norte). Foi escolhido Kim Il Sung, que havia lutado na resistência anti-japonesa e se tornado famoso por um ataque a tropas do Japão na província coreana de Pochonbo, em 1937. Até hoje, o episódio é destaque na história do país e na biografia de Sung, que viria a ser o líder supremo da Coreia do Norte por mais de quatro décadas. Após a segunda guerra, Kim foi preparado pelos soviéticos para se tornar o novo líder coreano.
Os Estados Unidos procuraram viabilizar eleições populares na Coreia, para que se formasse um único governo sobre a península. Entretanto, a União Soviética se opôs a essa possibilidade. Após três anos sem avanços entre as partes, foi fundada oficialmente a República da Coreia, mais conhecida como Coreia do Sul, em 15 de agosto de 1948, presidido por Syngman Rhee. Não muito tempo depois, foi fundada também a Coreia do Norte, com o nome oficial de República Democrática Popular da Coreia, cujo primeiro-ministro era Kim Il-Sung. Ambos os governos se declaravam como os legítimos governantes de toda a península. A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou apoio ao governo da Coreia do Sul, no fim de 1948.
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GUERRA DA COREIA
Com a divisão oficial da península, a maior parte das tropas americanas deixou a Coreia do Sul em 1949. Em março daquele ano, o presidente norte-coreano Kim Il Sung pediu apoio a Stalin para uma invasão do sul da península, segundo a historiadora Kathryn Weathersby. Embora o pedido tenha sido negado em um primeiro momento, foi aceito no início de 1950, quando Mao Tse-Tung, líder da revolução chinesa (que havia acabado de acontecer) ofereceu ajuda para Kim. Apesar de Stalin ter preferido não envolver tropas soviéticas no conflito, a União Soviética forneceu apoio estratégico à Coreia do Norte.
Foi dessa forma que se iniciou, em junho de 1950, a Guerra da Coreia. A invasão do sul por parte das tropas do norte foi bem sucedida e, em questão de um mês, a península estava quase totalmente sob controle de Pyongyang. Mas esse quadro não durou muito tempo: em setembro daquele ano, uma coalizão da ONU e dos Estados Unidos contra-atacou, invadiu a península, retomou Seul e expulsou as tropas norte-coreanas para a Manchúria, no nordeste da China. As forças de Kim Il Sung não se deram por vencidas e retornaram com o reforço de tropas chinesas, que retomaram Seul em 1951. Pouco tempo depois, as forças do norte perderam novamente os territórios para tropas estadunidenses.
Nessas idas e vindas do conflito, houve muitas mortes de ambos os lados: 178 mil entre os aliados da Coreia do Sul e algo entre 367 mil e 750 mil do lado da Coreia do Norte e aliados. O cessar-fogo foi acertado apenas em 1953. Até hoje, a península coreana continua dividida em dois, com regimes bastante distintos em ambos os lados da fronteira – e uma tensão permanente.
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DESENVOLVIMENTO DO REGIME NORTE-COREANO
Economia
Hoje em dia, a Coreia do Norte é associada a atraso, isolamento e subdesenvolvimento, enquanto a Coreia do Sul é vista como exemplo de desenvolvimento para o mundo inteiro. Mas nem sempre foi assim. Nas décadas de 1960 e 1970, o país socialista ainda tinha nível de renda semelhante ao vizinho do sul, segundo indicam dados econômicos do período.
Grande parte disso pode ser explicado pela ajuda financeira fornecida pela União Soviética, que na época ainda era uma potência econômica, bem como da China, também socialista. Mas não foi apenas isso. Após a guerra, a Coreia do Norte intensificou a planificação econômica. As terras foram coletivizadas e houve maciço investimento estatal na indústria pesada no país. Por um tempo, o resultado foi positivo: o governo conseguiu manter uma qualidade de vida razoável e promoveu a urbanização do país.
Mas os bons indicadores econômicos foram perdidos progressivamente ao longo dos anos 1970. No início da década, Pyongyang procurou importar tecnologia ocidental para tornar sua indústria de mineração mais sofisticada. Com o choque do petróleo de 1973, porém, os preços dos principais minérios norte-coreanos caíram no mercado internacional, de forma que o país não conseguiu mais honrar suas dívidas. Além disso, a planificação econômica baseada em indústria pesada chegou aos seus limites e a Coreia do Norte passou a perder sua competitividade diante do resto do mundo.
Em situação crítica, Kim Il Sung mais uma vez recorreu à União Soviética, que ampliou sua ajuda financeira nos anos 1980. Mas essa aliança também foi por água abaixo após o regime soviético chegar ao fim, em 1991. Sung morreu em 1994, mesma época em que o país chegou ao fundo do poço: uma onda de fome se instalou entre 1994 e 1998.
Enquanto isso, no sul da península, a Coreia do Sul passou de economia agrária, com nível de riqueza equivalente ao do Brasil, a um dos países tecnologicamente mais avançados do mundo em cerca de 30 anos, com consequente aumento da renda nacional e da qualidade de vida. Hoje, a Coreia do Sul possui renda semelhante a países europeus como Itália e Espanha, enquanto o vizinho do norte é um dos países mais pobres da Ásia – além de possuir um dos regimes políticos mais fechados do mundo.
O CULTO A KIM IL-SUNG
Após a guerra da Coreia, Kim Il-Sung consolidou seu poder de tal forma que a população norte-coreana passou a tratá-lo como uma divindade. As primeiras estátuas do líder foram erguidas ainda em 1949, segundo o historiador Jasper Becker. Il-Sung passou a ser conhecido como o “sol da nação”, o líder que jamais poderia errar. Um artigo de 1978 do Washington Post descreve como o pai de Kim, que era um simples fazendeiro, tornou-se uma figura sagrada no país. Ele recebeu suas próprias estátuas e uma biografia heróica, como guerreiro socialista. Há também muitos relatos sobre o alto nível de devoção do povo norte-coreano em relação a Kim, que beiraria a idolatria.
Helen Louise-Hunter, em seu livro “Kim Il-song’s North Korea“, traz relatos de norte-coreanos que afirmam que desde pequenos, na escola, aprendiam tudo sobre o líder socialista. Kang-Chol hwan, norte-coreano, lembra que na infância via Il-Sung e seu filho Kim Jong-il como figuras perfeitas. A figura legendária de Kim também foi – e continua a ser – reforçada por meio da imprensa do país, totalmente controlada. Entre outras coisas, a imprensa norte-coreana o retratava como personalidade amplamente reconhecida no mundo inteiro – quando, na realidade, seu governo comprava anúncios em jornais renomados internacionalmente e os transmitia como notícias legítimas, segundo artigo do Washington Post.
Juche e o isolamento
Uma das bases mais importantes desse culto à personalidade é a ideologia juche, criada por Il Sung nos anos 1950 e adotada oficialmente pelo Partido dos Trabalhadores da Coreia, que até hoje comanda o Estado norte-coreano. Essa doutrina possui inspirações marxistas, mas com suas próprias peculiaridades.
Segundo a ideologia juche, as massas trabalhadoras apenas podem alcançar o socialismo por meio da construção de uma nação dotada de auto-confiança. Por isso, é preciso construir uma economia nacional forte e autossuficiente, politicamente independente e militarmente autônoma. O indivíduo, segundo a ideologia juche, é o mestre de seu próprio destino e as massas trabalhadoras são a força-motriz da revolução.
Essas ideias, aliadas ao contexto de permanente desconfiança em relação ao vizinho do sul e às potências ocidentais, podem ter levado ao isolacionismo em que o país mergulhou a partir dos anos 1950. Isolar-se do resto do mundo não é exatamente novidade na história da Coreia, que já foi conhecida como “o reino ermitão” no século XIX, por não se abrir para contato com países ocidentais.
Até hoje, a mídia norte-coreana é totalmente controlada pelo governo e a população tem pouco contato com o mundo externo: os cidadãos são proibidos de deixar o território, o acesso à internet é praticamente nulo e não há transmissão de canais de televisão e emissoras de rádio estrangeiras. Esse isolamento teria reforçado a alienação da população, o que também possibilitou a intensificação do culto a Kim Il-Sung e seus sucessores. Até hoje, esse fenômeno é um alicerce do regime ditatorial no país.
COREIA DO NORTE PÓS-KIM IL-SUNG
Governo de Kim Jong-Il
O líder fundador da Coreia do Norte morreu em 1994, por conta de um ataque cardíaco. Seu lugar foi ocupado pelo filho, Kim Jong Il, que já havia sido escolhido como sucessor nos anos 1970. Criou-se assim uma espécie de regime monárquico socialista, já que o cargo foi transmitido hereditariamente.
Foi também em 1994 que começou um período de fome no país, que se estenderia até 1998. Uma das causas dessa tragédia humanitária foi o fim da União Soviética, em 1991, que prejudicou a importação de alimentos para a Coreia do Norte. Como possui um território muito montanhoso, o país não é autossuficiente na produção de alimentos. Por isso, nos primeiros anos pós-URSS, dependeu muito das importações da China. O gigante vizinho, seu maior (e talvez único) aliado, cortou sua ajuda em 1993, devido a problemas em sua própria produção alimentícia. Além disso, nos anos de 1995 e 1996, enchentes destruíram a produção agrícola do país, agravando o problema. Como consequência, boa parte do povo norte-coreano foi conduzido à fome, que teria vitimado até 3,5 milhões de pessoas.
Início do programa nuclear
No governo de Kim Jong-Il, a Coreia do Norte avançou a passos largos seu programa nuclear. Já havia suspeitas de que o país desenvolvia um programa clandestino desde os anos 1980. As ações de Jong-Il ocorreram mesmo após a assinatura, em 1994, de acordo com os Estados Unidos se comprometendo a não construir armas nucleares. Esse acordo começou a se dissolver a partir de 2002, quando o presidente George W. Bush declarou que a Coreia do Norte fazia parte de um “eixo do mal”, ao lado de Iraque e Irã. Em 2003, o país abandonou o Tratado de Não Proliferação Nuclear e, três anos mais tarde, realizou seu primeiro teste nuclear, realizado subterraneamente e considerado um sucesso pelo governo norte-coreano.
As duas maiores reivindicações relacionadas ao programa nuclear da Coreia do Norte, segundo Richard Rhodes em artigo na revista Foreign Affairs, são: (i) a certeza de que o território norte-coreano não será mais invadido; e (ii) a geração de energia elétrica por meio da energia nuclear, para repor a capacidade hidrelétrica bombardeada pelos Estados Unidos durante a Guerra da Coreia.
Os primeiros testes com mísseis balísticos ocorreram em 2006. Em resposta, a Organização das Nações Unidas impôs diversas sanções econômicas ao país, na tentativa de impedir o avanço de seu programa nuclear (veja as sanções aqui). Mas elas não foram suficientes: novos testes balísticos foram feitos durante o regime de Jong-Il em 2009.
Governo de Kim Jong-un
Em 2011, Jong-Il faleceu, deixando o posto de presidente e primeiro-ministro do país para seu filho mais novo, Kim Jong-un, dando continuidade à dinastia iniciada em 1948. Ele foi apresentado pela televisão estatal norte-coreana como “o grande sucessor” e também como “líder supremo”.
Sabe-se muito pouco sobre a vida pregressa do atual presidente norte-coreano. Mas seu governo tem sido conduzido com mão de ferro. Há relatos de execuções de oficiais de alto escalão do governo e das forças armadas do país. Jong-un também é suspeito de ter encomendado a morte de seu meio-irmão, em fevereiro de 2017.
Novos testes nucleares e tensão com os Estados Unidos
Em 2013 e 2014, Kim Jong-un voltou a realizar testes com mísseis, assim como já havia feito seu pai em 2006 e 2009. Agora, em fevereiro de 2017, a Coreia do Norte tem levado a cabo uma série de testes, preocupando a comunidade internacional. No dia 12 de fevereiro, lançou um míssil de médio alcance (de mil a 3 mil quilômetros de distância). Depois, em março, foram lançados quatro mísseis balísticos com alcance de 1.000 quilômetros, que caíram em águas próximas ao Japão.
Em resposta, o governo de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, enviou porta-aviões à Coreia do Sul, próximo à fronteira. O governo de Jong-un, por sua vez, realizou novos testes, mal-sucedidos. Novas armas foram apresentadas ao mundo durante parada militar em homenagem a Kim Il-Sung, primeiro presidente do país.
Segundo informações da BBC, acredita-se que a Coreia do Norte possui hoje cerca de 1.000 mísseis, com alcances diferentes. A maioria seria de curto alcance, mísseis que podem atingir pontos a menos de mil quilômetros. Há receios de que o país tenha um míssil de alcance intercontinental, que podem viajar mais de 5.500 quilômetros.
CONCLUSÃO
A Coreia do Norte é um país intrigante, produto de um conflito da Guerra Fria que nunca recebeu um ponto final e do isolacionismo imposto por seus governantes. O regime ditatorial instalado por Kim Il-Sung se perpetua, bem como algumas de suas características mais importantes, como o controle estatal da economia, da imprensa e da sociedade como um todo.
Se o histórico de isolacionismo e totalitarismo conduzirão a Coreia do Norte a um conflito de proporções mundiais, apenas o futuro poderá dizer. Mas as ações da Coreia do Norte, que se coloca em postura de desafio contra os Estados Unidos, colocam a comunidade internacional em alerta. Existe o receio de um conflito nuclear, cujas consequências seriam imensuráveis. A opacidade do programa nuclear e a falta de informação geral sobre o país e seu governo aumentam o quadro de incerteza.
E então, deu para conhecer um pouco mais da Coreia do Norte? Deixe suas dúvidas nos comentários!
Referências
Huffington Post – ABC: Trump e a Coreia do Norte – Biography: Kim Jong-un – The Economist: grande fome na Coreia do Norte – Washington Post: a primeira monarquia marxista – Helen Louise-Hunter: Kim Il-Sung’s North Korea – Dailykos: queda da economia da Coreia do Norte – G1: cronologia do programa nuclear norte-coreano – BBC: o que se sabe do programa nuclear da Coreia do Norte – BBC: timeline da Coreia do Norte – BBC: história do partido comunista norte-coreano – Wikipedia (inglês): ideologia juche