Quando falamos de políticas de cotas, sistemas de cotas ou ações afirmativas para pessoas trans, nos referimos a políticas públicas que objetivam amenizar desigualdades sociais, educacionais e econômicas. As cotas buscam garantir o direito ao acesso de grupos desfavorecidos de oportunidades.
A política de cotas destinada à pessoas trans é uma medida fundamental diante dos quadros de desigualdade remanescentes de fenômenos sociais, como a transfobia, que precisam ser enfrentados. As ações afirmativas são uma alternativa para a busca de igualdade de direitos.
Conforme expõe Jaqueline de Jesus (2012), chamamos de transgênero ou trans, aquelas pessoas que não se identificam com o gênero que lhes foi determinado no nascimento. Travestis são pessoas que vivenciam o papel de gênero feminino, não se identificam com gênero masculino.
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É importante recordar que além da falta de oportunidades, as pessoas trans estão sujeitas à discursos e crimes de ódio. O Brasil está há 14 anos no topo do trágico ranking de maior número de assassinatos de travestis e transexuais no mundo. Apesar disso, ainda não há uma lei específica que criminaliza a transfobia e os crimes de ódio contra pessoas LGBTQIAP+.
A ausência de uma lei federal
Até o momento não existe uma lei federal que garanta a política de cotas destinada às pessoas trans no Brasil. Apesar dos avanços nas últimas décadas em relação à visibilidade trans, fruto da pressão de grupos organizados em prol da conquista e garantia de políticas públicas, pessoas trans convivem com a invisibilidade em relação a seus direitos.
As cotas existentes são graças à legislações municipais, estaduais ou de iniciativas políticas internas de organizações públicas ou privadas que adotam o sistema de cotas para disponibilizar oportunidades às pessoas trans.
Podemos dizer que existe uma política localizada, definida como micropolítica, que acontece pela ausência de uma macropolítica que ampare, plenamente e nacionalmente, os direitos das pessoas trans.
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O mesmo ocorreu com o uso de nome social. Durante anos, o direito ao nome social era acatado em algumas repartições públicas, escolas e universidades, onde as pessoas trans podiam ter sua identidade de gênero respeitada. Porém, a lei federal não existia.
Para Berenice Bento (2014) tais contradições legislativas são sintetizadas como uma “gambiarra legal”, que resulta em uma cidadania precária. “O Brasil é o único país do mundo onde, no vácuo de uma legislação geral, instituições garantem um direito negado globalmente” (BENTO, 2014:175).
A Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) foi a instituição pioneira na adoção do nome social para seus alunos em 2009. Depois da primeira adesão, várias outras universidades públicas e privadas têm adotado tal medida, ampliando assim a cidadania de pessoas trans.
Somente em 2016, no governo da Presidenta Dilma Rousseff, foi emitida uma resolução com abrangência de todo território nacional, através do Decreto nº 8727/2016.
Outro exemplo é o das cotas raciais. Em 2000, por conta de uma lei estadual, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi a pioneira em conceder uma cota de 50% em cursos de graduação, por meio do processo seletivo, para estudantes de escolas públicas, inspirando outras universidades públicas a fazerem o mesmo.
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Mas foi somente em 2012, a questão das cotas para estudantes negros foi tema de votação no Supremo Tribunal Federal, sendo aprovada por unanimidade.
O sistema de cotas para pessoas trans, garantido por lei para todo território federal é um passo que ainda precisa ser concretizado. Em fevereiro de 2023, um “tuitaço” na rede social Twitter, proposto pela primeira deputada estadual trans, Dani Balbi, mobilizou personalidades públicas e organizações com hashtag #CotasparaTrans, defendendo cotas para pessoas trans em Universidades públicas.
A seguir temos alguns exemplos onde a política de cotas para pessoas trans é uma realidade.
Cotas em Universidades
Ter acesso à educação é uma das principais pautas do movimento LGBTQIAP+ que inclui a população trans, formada por mulheres transexuais, travestis e homens transexuais. No espaço da escola, a evasão escolar é uma triste realidade, que ocasiona a ausência de qualificação para o mundo do trabalho.
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Na maioria das vezes, a escola é um dos principais desencadeadores desses processos de exclusão expressos por uma violência anunciada, na maioria das vezes, por parte do corpo discente, e outra violência velada e/ou silenciada, pelos/as agentes escolares. (FRANCO; CICILLINI, 2015, p. 9).
Abandonar a escola significa uma maneira de evitar violências (psicológicas e físicas) vivenciadas no espaço escolar. Segundo dados da RedeTrans, cerca de 82% das mulheres transexuais e travestis abandonam o ensino médio entre os 14 e os 18 anos.
Helio Irigaray (2010) aponta que o preconceito e os estigmas dos quais transexuais e travestis são alvos, levando-os/as a serem excluídas/os do ambiente familiar e escolar, podem influir e limitar o acesso à educação superior.
Em 2018, começaram a ocorrer iniciativas para garantir o direito ao acesso de pessoas trans ao ensino superior. Segundo a Gazeta do Povo, em 2019, ao menos 12 universidades federais do pais tinham cotas para alunos trans. Universidades particulares como a Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeito (PUC/RJ) adotaram a iniciativa para pós graduação.
A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) foi pioneira no Brasil a reservar vagas a pessoas trans, no ano de 2018, segundo a Agência Nacional. Em São Paulo, a iniciativa começou em 2019, na Universidade Federal do ABC (UFABC).
Tatiane Lima (2020) relata que, em 2019, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que criou vagas para pessoas trans em seis programas de pós-graduação. Em 2020, a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) divulgou a aprovação da nova resolução de cotas, incluindo pessoas trans.
Em fevereiro de 2023, a deputada estadual Dani Balbi (PCdoB – RJ) protocolou, na Assembleia Legislativa, um projeto de lei que prevê cotas de 3% para pessoas trans nas universidades do Rio, disponíveis na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), e na UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro).
Como percebemos, várias universidades têm adotado cotas para pessoas trans, o que é positivo, pois inspira outras universidades a fazerem o mesmo. Entretanto, enquanto não tivermos uma lei que garanta as cotas para pessoas trans, a situação ainda fica instável em termos de direitos.
Em julho de 2023, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) apresentou um Projeto de Lei para que sejam implementadas nas Universidades Federais cotas para travestis e transexuais. O projeto determina a reserva de 5% das vagas de cada curso de graduação — por curso e por turno — para trans e travestis. Em cursos com oferta inferior a 50 vagas, pelo menos 3 delas deverão ser ocupadas por pessoas dessa parcela da população.
Apesar do Estado não ser obrigado a garantir que todos os cidadãos cursem o Ensino Superior, tem a responsabilidade de garantir – segundo a Constituição – o acesso público e gratuito.
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Cotas em concursos públicos
Em 2022, uma medida inédita foi tomada pelo Conselho Superior da Defensoria Pública de São Paulo; que reservou 2% das vagas para pessoas trans poderem disputar os próximos concursos públicos na instituição que tem como finalidade prestar atendimento jurídico integral e gratuito aos cidadãos necessitados.
A iniciativa terá duração de 10 anos, período pelo qual haverá uma reavaliação para verificar se existe a necessidade de manutenção da política por mais 10 anos (caso as desigualdades persistam). As cotas devem ser aplicadas para os processos seletivos de: defensores públicos, servidores, seleção de estágios, cargos comissionados e contratos de prestação de serviço.
O Governo do Rio Grande do Sul também reserva 1% vagas para pessoas trans que prestarem concursos públicos. Na cidade de Curitiba, no estado do Paraná, está em curso na Câmara Municipal, um projeto de lei criando cota de 5% para o ingresso de pessoas trans no serviço público municipal em cargos efetivos e em vagas de estágio.
E aí? Qual sua opinião sobre as cotas para pessoas trans? É a favor ou contra? Agora que você já tem informações pode se posicionar. Compartilhe seu ponto de vista conosco, por meio dos comentários!
Referências
- FRANCO, Neil; CICILLINI, Graça. Professoras travestis e transexuais brasileiras e seu processo de escolarização: Caminhos percorridos e obstáculos enfrentados. In: REUNIÃO NACIONAL DA ANPEd. 36., Anais. Goiânia/GO: Universidade Federal de Goiás, 2015. Disponível em: <http://36reuniao.anped.org.br/pdfs_trabalhos_aprovados/gt23_trabalhos_pdfs/gt23_3241_texto.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2023.
- JESUS, Jaqueline. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Publicação online, Brasília, 2ª edição, 2012. Disponível em: <http://www.diversidadesexual.com.br/wp-content/uploads/2013/04/G%C3%8ANERO-CONCEITOS-E-TERMOS.pdf>. Acesso em: 10 de março de 2023.
- IRIGARAY, Helio. Identidades Sexuais Não-Hegemônicas: a inserção dos travestis e transexuais no mundo do trabalho sob a ótica queer. VI Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD. Florianópolis, 2010.
- LIMA, Tatiane. Educação básica e o acesso de transexuais e travestis à educação superior. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 77, p. 70-87, dez. 2020.
- SELL, Sandro Cesar. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteix, 2002.
- Agência Brasil – Projeto prevê cotas para trans e travestis nas universidades do Rio
- Agência Brasil – Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo
- Gazeta do povo – Ao menos 12 universidades federais do país têm cotas para alunos trans
- CNN Brasil – Erika Hilton apresenta projeto que propõe cotas para transexuais e travestis no ensino superior