Em maio de 2020, o jornal El País trouxe a notícia de que o Brasil deixou de ser classificado como uma “democracia liberal” pelo maior banco de dados sobre democracia no mundo, o Instituto V-Dem. Agora, o nosso país é classificado como uma mera democracia eleitoral.
Mas afinal de contas, o que é uma democracia liberal? E o que difere de uma democracia meramente eleitoral?
O que é uma democracia?
Para entendermos o porquê do Brasil deixar de ser considerado uma democracia liberal, por um Instituto de referência no assunto, é preciso primeiro conceber o que é uma democracia. O que se lê nas linhas abaixo não se refere à história da democracia. Isto é, não trataremos da trajetória e evolução do termo ‘democracia’, da Grécia até a presente data. Mas sim, recorremos às perspectivas de dois autores sobre o sistema democrático: Joseph Schumpeter e Robert Dahl. Afinal, a definição de democracia não é tão simples, pois o conceito é histórico, dialético e plural.
Segundo a visão de Joseph Schumpeter, cientista político e economista, a democracia é um método político, é procedimental, um arranjo institucional para atingir uma decisão política. Sendo essa última como a decisão de escolher um representante. Portanto, para ele, a democracia não é um fim em si mesma, é um meio, um ponto de partida para a realização de disputas propriamente políticas, do interesse de todos.
Em contrapartida, o cientista político Robert Dahl compreende a democracia como um sistema ideal. Assim, os países serão considerados mais ou menos democráticos dependendo do quanto os governos são responsivos em relação às vontades dos cidadãos. Em outras palavras, os representantes políticos devem garantir que as preferências dos cidadãos sejam alcançadas nas políticas.
Dessa forma, os representantes políticos têm como maior responsabilidade garantir a todos os cidadãos a oportunidade de formular, expressar e ter as suas preferências consideradas. E para isso, portanto, é necessário que os direitos institucionais dos cidadãos sejam assegurados.
Alguns destes direitos são: formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; ser elegível para cargos públicos; acesso a fontes alternativas de informação; eleições livres e idôneas. É responsabilidade do governo também garantir que os cidadãos não sejam discriminados e sejam tratados como iguais diante das leis.
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E de que formas diferentes a democracia pode se configurar?
Já deu para perceber que a democracia é um conceito elástico. E essa elasticidade se justifica pelo fato de que a democracia não é um sistema acabado. Está em constante construção e mudança, de acordo com os interesses da sociedade. Nesse sentido, a democracia é estudada a partir de níveis, em que estes graus funcionam também como parâmetros para dimensionar o quanto a democracia está realmente consolidada.
A respeito desses níveis, há três percepções distintas de como a democracia se manifesta, que funcionam como degraus para um aprofundamento da democracia.
Na primeira percepção, Schumpeter, a partir do pensamento do início do século XX, compreende a democracia como uma competição de cargos públicos entre elites por meio de eleições. Ou seja, o “governo do povo” passa para “governo aprovado pelo povo”, em que o sistema elegível deve ser livre, competitivo e idôneo.
Em outro nível está o ponto de vista de Dahl. Esse entende que na democracia a participação popular é constante, não apenas nas eleições. Sendo, portanto, a democracia um sistema político em que todos os cidadãos possuam a oportunidade de participar das decisões.
Assim, essa participação se dá por meio da confrontação às políticas empregadas pelos representantes do Executivo e do Legislativo. Para que esse enfrentamento ou, no caso, avaliação por parte dos cidadãos a respeito das políticas propostas pelos representantes políticos seja possível, é necessário abertura e canais institucionais que comunique a governantes e parlamentares as vontades da população.
Uma terceira perspectiva é da Carole Pateman com a concepção de democracia participativa. A partir dessa ideia, a autora propõe ampliar as tomadas de decisão – dos representantes eleitos para todos os cidadãos – por meio da organização social (como movimentos sociais, sindicatos, entre outras formas). Ou seja, uma combinação de democracia representativa e direta. Portanto, para ela, a participação de modo direto no processo de decisão e na escolha de representantes é fundamental para que o voto e a democracia tomem significado na vida cotidiana e no ambiente em que os cidadãos vivem.
Em síntese, há três entendimentos principais acerca de como as democracias são praticadas: a primeira, uma visão elitista, em que há a disputa entre elites por cargos públicos; uma segunda, baseada em uma conciliação entre participação cidadã e contestação às políticas empreendidas pelos representantes políticos; e a terceira, no mais alto nível democrático, a democracia participativa em que todas as decisões políticas são tomadas na articulação social.
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Qual a diferença para uma democracia liberal?
O termo ‘democracia liberal’ não rivaliza com as formas diferentes de como a democracia pode se configurar. O sistema democrático pode ser operado de diferentes formas, como apresentado na seção anterior: em uma disputa entre elites por cargos públicos; uma conciliação entre participação cidadão e contestação às políticas; e a participação cidadã nas decisões políticas.
A democracia liberal, na verdade, representa o conjunto de valores e ideais que orientam a forma como as democracias são conduzidas.
Os valores da democracia liberal vêm de processos históricos que datam do fim do século XVIII: o pensamento iluminista, os ideais da Revolução Francesa e da Revolução Americana (independência dos Estados Unidos), os valores da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Isto é, a instituição republicana e os princípios da igualdade e liberdade. No entanto, conforme aponta Marilena Chaui, só é possível conceber a democracia moderna como democracia liberal com o desenvolvimento do capitalismo (com a revolução industrial no século XIX) e da ideologia burguesa, que expande os direitos civis.
Portanto, considerando os processos históricos acima, quando tratamos do termo democracia liberal estamos tratando de todas as democracias funcionais. Ou seja, de todos os países considerados democracia. Pois, de acordo com Marilena Chauí, falar em democracia é falar da soma dos valores iluministas aos capitalistas. De forma que o liberal ao que se leva o nome é tanto político quanto econômico.
Para ilustrar esse entendimento, temos o Artigo 5º da Constituição Federal:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade.” (Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos).
No fragmento acima, as palavras em destaque: liberdade, igualdade e propriedade se referem a valores liberais e burgueses. De forma que essa liberdade se expressa como a liberdade individual, isto é, de pensamento, religião, expressão. De forma simples, as liberdades garantidas nas democracias liberais são identificadas por aquelas que autorizam a ação ou a inação dos cidadãos, como no inciso III:
“Art. 5º III – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
A igualdade referida é complementada pelo inciso I do mesmo artigo “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Portanto, a igualdade a que estamos falando é a igualdade perante a lei, que impede que os cidadãos sejam discriminados, tratados com privilégios diante das instituições, do estado, do governo, e nas relações da sociedade. Assim, todos têm os mesmos direitos.
Por último, a propriedade. No inciso XXI do Art. 5º “é garantido o direito de propriedade”, essa como expressão máxima dos valores liberais econômicos, no qual o direito à propriedade privada é garantido pelo estado, nos termos de uma democracia liberal.
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Passagem da democracia liberal para a democracia social
Para Marilena Chaui, filósofa e escritora brasileira, a democracia é identificada como uma forma de governo, mas também como forma geral da organização da sociedade. Em outras palavras, para a filósofa, a democracia como apenas um regime de governo é uma concepção liberal. Enquanto que a democracia como forma de sociedade é uma social democracia, que tem centralidade em uma prática de criação e proteção de direitos que lidem com as desigualdades, exclusões e privilégios presentes nas democracias liberais.
Chaui identifica alguns traços principais que combinam a democracia como governo e organização social:
Os princípios da igualdade e liberdade: a igualdade de todos cidadãos perante a lei e o direito de todos exporem suas opiniões;
Mediação institucional dos conflitos de ideias e interesses;
Conciliação dos princípios da igualdade e liberdade com as desigualdades reais e materiais. Por meio da elaboração de direitos econômicos, sociais, políticos e culturais;
A temporalidade da democracia. Isto é, que esta passa por mudanças temporais que garantem a sua existência;
A transição dos valores da democracia liberal para a democracia social;
A premissa das eleições como símbolo do poder que está sempre vazio. Ou seja, a importância das eleições não significa mera ‘alternância no poder’, mas revela que o detentor do poder é a sociedade, e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário;
O regime democrático é um contrapoder social, que busca dirigir, controlar e modificar a ação por parte do Estado e o poder dado aos governantes.
A democracia é a contramão a meios violentos, devido à racionalidade, liberdade e responsabilidade vinculadas aos cidadãos.
Portanto, para se consolidar como democracia, a política e a organização social necessitam percorrer caminhos que leve o sistema do ponto eleitoral ao igualitário, passando pelo liberal e participativo.
E por que o Brasil teria se tornado ‘mera democracia eleitoral’?
A partir de tudo que falamos, foi possível perceber que o conceito e o valor da democracia não é fechado e está em constante modificação. Contudo, existem algumas características que são fundamentais para que uma democracia se consolide. Algumas destas são o respeito aos princípios da igualdade e liberdade, à pluralidade, a participação cidadã nas escolhas de representantes e na manifestação de seus interesses.
O instituto V-Dem produziu um relatório em 2019, no qual deixou de considerar o Brasil como uma democracia liberal, passando a apontá-lo como uma democracia eleitoral. Desde então, o Brasil vem declinando neste ranking internacional de democracias. Os critérios do Instituto compilam e analisam dados que complexificam a interpretação da democracia, para além das eleições, em 5 princípios: eleitoral, liberal, participativo, deliberativo e igualitário. Dentre os critérios de análise estão: se as eleições nacionais são multipartidárias, livres e justas; se o ideal democrático eleitoral é alcançado; qual o grau alcançado dos princípios liberais.
O relatório do Instituto V-Dem argumenta que a ameaça à democracia e aos valores liberais também estão cada vez mais presentes nas políticas de desinformação. A desinformação como política sistemática de governos funciona como um indicador da falta de transparência por trás das decisões políticas e sobre a veracidade dos fatos. A desinformação gera dúvida e insegurança na população, a qual que se arrasta ao sistema jurídico e compromete o funcionamento das instituições.
O inquérito das fake news, por exemplo, que apura personalidades próximas do governo federal envolvidas com o financiamento de disseminação de notícias falsas seria um dos sinais do quanto a democracia está comprometida. Afinal de contas, o processo eleitoral exige transparência e idoneidade, e o esquema de notícias falsas atenta, justamente, para uma eleição em que as escolhas dos cidadãos foram baseadas em mentiras.
O que o relatório mostra, portanto, é que para manter uma democracia é necessário muito mais que eleições.
REFERÊNCIAS
- CHAUI, Marilena. Breve história da democracia. In: A Democracia pode ser assim. História, formas e possibilidades.
- Constituição da República Federativa do Brasil. Senado Federal. Brasília, 2015.
- DAGOBAH – A classificação dos regimes políticos do V-Dem.
- DAHL, R. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo, Brasil: EDUSP, 2012.
- DE OLIVEIRA, Heloisa Maria José. A democracia em suas versões elitista e participativa e o modelo da autonomia democrática. Revista Katálysis, v. 6, n. 1, p. 21-27, 2003.
- El País – Brasil perde status de democracia perante o mundo.
- O TEMPO – Índice V-Dem mostra regressão da democracia no Brasil e no mundo.
- SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. SciELO-Editora UNESP, 2017.
- V-DEm – Democracy Reports.
2 comentários em “O que é uma democracia liberal?”
rcn43444@gmail.com.
Há compatibilidade entre democracia e capialismo?, os militares garantem a democracia como muitos cidadãos acreditam?.
Em 2019 tínhamos muito mais liberdade que agora, a partir daí, somente, o STF passou a regular a informação com o suposto papel de editor de informação passível de divulgação. Neste sentido, é possível afirmar que hoje, com esse governo com inspiração comunista estamos em que posição inferior?