Esse é o quarto de uma série de 5 textos do Instituto Norberto Bobbio, em parceria com o Politize!, para tratar de alguns conceitos fundamentais na democracia para o filósofo político italiano Norberto Bobbio. As visões aqui retratadas são do Instituto Norberto Bobbio, e não necessariamente partilhadas pelo Politize!.
Confira os demais textos: Democracia para Bobbio#1: As regras do jogo, Democracia para Bobbio#2: as promessas não cumpridas da Democracia e Democracia para Bobbio#3: democracia representativa e democracia direta
A chamada CPI da Covid trouxe à tona, quase diariamente, fatos e ações que até então eram secretos para a população brasileira, como no caso das negociações para a compra das vacinas Covaxin[1] e Pfizer[2]. Nos espantamos não apenas pelo conteúdo exposto, mas pelo fato de que isso pôde ficar escondido por tanto tempo. No Estado Democrático, o poder emana do povo e deveria ser controlado por ele; isso só é possível, contudo, se os atos do poder público forem realizados em público, o que a CPI da Covid nos mostra não ser sempre a regra.
Esse movimento de descoberta de informações antes secretas e o escândalo que dela se segue não é incomum. Na história política recente podemos encontrar vários exemplos semelhantes. É justamente essa repetição constante que chama a atenção de Norberto Bobbio, quando trata do problema do poder invisível, considerado uma das promessas não cumpridas da democracia.
O poder invisível foi um tema caro ao autor e desenvolvido em inúmeros artigos, alguns deles reunidos no volume Democracia e Segredo[3]. Apesar da maioria desses artigos ter sido escrita nas décadas de 1970 e 1980, como revela a CPI da Covid, é uma questão que permanece absolutamente atual e na ordem do dia.
Poder público em público
Em A democracia e poder invisível[4], Bobbio relembra a lição de Kant que relaciona a publicidade de uma ação com sua própria justiça ou injustiça. Nesse sentido, uma ação injusta, por exemplo, dificilmente seria realizada em público, por conta da oposição que seria feita pelas pessoas afetadas[5]. Para Kant, o mero fato de ser mantido em segredo seria prova da ilicitude de um ato[6].
Essa proposição liga-se diretamente com os ideais iluministas, pois a condenação que o autor faz do segredo baseia-se na ideia de que todas as pessoas são racionais e capazes de fazer uso dessa razão[7]. Isso vai de encontro com as proposições de autores anteriores que defendiam o absolutismo, os quais, por vezes, viam os súditos como “filhos menores de idade” que necessitavam de proteção. Assim, supunha-se desnecessário que os governados soubessem o que se passava no governo, cuja função era tutelá-los.
Bobbio, então, define a democracia como poder público em público. O primeiro uso da palavra “público” é no sentido oposto a “privado”, já o segundo, oposto a “secreto”. No governo democrático, o poder é do povo e deve ser exercido de forma visível a ele. Essa é a única forma de se efetivar realmente o controle popular do poder, já que não é possível opinar, opor-se ou controlar aquilo que não se sabe ou não se conhece.
Por isso, o autor coloca a publicidade dos atos do governo em uma posição central no Estado democrático:
“(…) o caráter público do poder entendido como não secreto, como aberto ao “público”, permaneceu como um dos critérios fundamentais para distinguir o Estado constitucional do Estado absoluto e, assim, para assinalar o nascimento ou o renascimento do poder público em público.”[8]
Visibilidade e representação
Na história do pensamento político, a questão da visibilidade do poder é um tema recorrente. Mas ele adquire uma conotação diversa da até aqui exposta quando analisamos autores antidemocráticos, como Platão[9], que comparava a democracia a um teatro, em que o povo seria mero espectador[10]. Em sentido semelhante, Hobbes faz uma analogia entre a representação política e artística – como no teatro grego, diz ele, o ator político utilizaria máscaras para apresentar ao povo/público o que fosse conveniente[11].
Bobbio alerta que essa ideia de mascaramento, colocada por Hobbes, ocorreria principalmente por meio da linguagem: “usando uma linguagem para iniciados, esotérica, compreensível somente para os que integram o círculo, ou usando a linguagem comum para dizer o oposto do que se pensa ou para dar informações equivocadas ou justificativas distorcidas”[12]. Não dizer o que realmente se pensa, infelizmente, é algo tão comum no atual jogo democrático que dispensa maiores explicações, mas o uso de linguagem inacessível ou esotérica merece alguma atenção.
Cada vez mais vemos nos noticiários exemplos do uso de “dog whistles” na política. Originalmente, a expressão dog whistle (em português, “apito de cachorro”) significa um apito que emite som em uma frequência inaudível para seres humanos, mas que os cachorros conseguem ouvir. Esse termo foi transportado para o campo político para designar o uso de termos ou referências que só poderiam ser compreendidos por um grupo específico, parecendo inócuos à população geral.
Um dos casos recentes do uso de dog whistle, no Brasil, foi o do então assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência, Filipe Martins, que haveria feito um gesto racista durante uma sessão do Senado[13]. Para a maior parte das pessoas, ele estaria apenas ajeitando o seu paletó ou fazendo um sinal de “ok” com os dedos; mas, como o gesto é usado por supremacistas brancos como uma forma de se reconhecerem entre si, esse grupo vai compreender o gesto como um sinal de apoio à sua causa.
Assim, informações diferentes são apresentadas a diferentes grupos de ouvintes. Essa prática, como vimos pela citação acima, não é nova, mas tem aparecido cada vez mais no cenário político atual, e pode trazer sérias consequências para a democracia. Se pensarmos, por exemplo, em um contexto de eleições, gestos ou termos usados por uma parte da população com um significado e por outra com significado diverso podem fazer com que um desses grupos acabe apoiando um candidato por ter compreendido uma mensagem diversa daquela passada por ele – sem falar na propagação de ideias e conteúdos absolutamente antidemocráticos.
Esses grupos podem ter interesses fundamentalmente diversos entre si, e talvez um deles apoie o candidato por uma confusão semântica criada intencionalmente.
O povo no controle
A democracia representativa pode ser definida como a forma de governo em que o povo é o titular do poder político e escolhe periodicamente seus representantes. Bobbio, porém, faz questão de enfatizar que: “o principio fundamental do estado democratico é o principio da publicidade, ou seja, do poder visível.”[14]
A publicidade é, portanto, essencial para a escolha dos representantes. Se pensarmos no caso em que um candidato concorre à reeleição, os eleitores devem ter o direito de saber o que foi realizado no mandato anterior conferido àquele representante. Porém, mesmo se o candidato não tenha ocupado cargo eletivo, os eleitores precisam ter acesso às informações referentes ao Estado, para poder realmente avaliar o que está sendo proposto pelos candidatos.
A publicidade também é fundamental fora dos períodos eleitorais, afinal, esta é a única forma de manter o poder realmente sob o controle do povo, seu titular[15]. Bobbio alerta ainda que é sob o véu da invisibilidade que ocorrem e se difundem os maiores vícios dos sistemas democráticos[16], pois, retomando o argumento de Kant mencionado anteriormente, a visibilidade poderia impedir que uma ação injusta fosse realizada – e, nesse caso, contrária à democracia –, por causa da reação negativa que ela poderia gerar.
Bobbio não desconsidera a possibilidade de segredos de Estado – como as ações realizadas por serviços secretos –, mas alerta que eles devem ser a exceção em Estados democráticos, não a regra ou um fenômeno recorrente. Além disso, os segredos devem ser limitados temporalmente, ou seja, sempre vir a público – ser publicizado, tornar-se acessível a todos – quando cessar o motivo pelo qual foi inicialmente colocado em segredo.[17]
Publicidade e compreensão
Nas últimas décadas, os Estados têm se tornado cada vez mais complexos – tanto em relação à sua estrutura organizacional quanto à sua forma de atuação –, o que dificulta ainda mais a efetivação do controle do poder por meio dos cidadãos. Este só pode ser exercido se, além de públicas, as informações forem compreendidas. Essa complexificação, portanto, leva àquilo que Bobbio chama de tecnocracia ou governo dos técnicos.
Há muito vemos os “técnicos” ganharem um papel na constituição do Estado e na implementação de políticas públicas, pois possuem conhecimentos específicos e, consequentemente, distintos da maioria da população. Segundo o autor, mesmo que as informações técnicas fossem divulgadas, a maioria das pessoas não poderia compreender ou dar contribuições significativas sobre as ações públicas[18].
O que está em jogo aqui não é uma visão inferiorizante da população, mas a problemática para as democracias modernas imposta pelo constante processo de complexificação do Estado: quanto mais complexo, mais o governo necessita de especialistas, justamente por causa de seus distintos conhecimentos, e mais inacessível se tornam as informações e ações públicas.
Um bom exemplo sobre essa questão foi a recente polêmica acerca dos dados referentes ao desemprego no Brasil. Os dados coletados pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), órgão ligado ao Ministério da Economia, e os dados coletados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), ligado ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apresentam resultados bastante discrepantes sobre o desemprego no país[19].
Essa diferença ocorre pois as duas pesquisas utilizam métodos diferentes para a coleta de dados. A maioria das pessoas, porém, não têm conhecimento suficiente em metodologia estatística para compreender como esses diferentes métodos influenciam os resultados das pesquisas e, portanto, não conseguem distinguir qual o significado desses dados para a realidade do país. Isso não é um demérito ou uma falha da população, mas o relevante juízo sobre qual das pesquisas descreve melhor a situação do país acaba sendo delegada aos especialistas, ao invés de deliberado pelo público em público.
Neste caso, como a discrepância gerou uma polêmica nacional, vários textos foram publicados tentando explicar para a população em geral a diferença entre os métodos e suas consequências[20]. Contudo, isso não acontece com a maioria das informações sobre o exercício do poder, que continuam incompreensíveis para a enorme maioria, ainda que muitas informações estejam disponíveis.
Tal exemplo mostra ainda que iniciativas como a Lei de Acesso à Informação, apesar de fundamentais, são insuficientes para resolver o problema. Ela garante o acesso às informações, mas “acesso” não necessariamente equivale a “compreensão” do conteúdo da informação e de seus impactos, como vimos. Chega-se então a uma barreira aparentemente intransponível: se nos regimes democráticos o povo deve poder controlar o poder, como fazer com que esse poder seja controlável pelo povo se o Estado tornou-se complexo demais para ser plenamente compreendido? Este impasse é um dos motivos pelos quais a persistência do poder invisível é, para Bobbio, uma das promessas não cumpridas da democracia[21].
Próximos passos….
A complexificação do Estado, além de dificultar a sua compreensão, é um dos aspectos mais debatidos por autores liberais. O liberalismo, porém, tem uma longa história e diversas correntes as quais, por vezes, chegam a entrar em choque. No próximo e último texto desta série, vamos explorar um pouco da história do liberalismo e como ela se relaciona com a democracia.
Referências:
1. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/06/26/em-4-pontos-entenda-o-caso-da-covaxin-e-dos-irmaos-miranda
3. BOBBIO, N. Democracia e Segredo. Trad. Marco Aurélio Nogueira – 1. ed. – São Paulo: Editora UNESP. 201
4. BOBBIO, N. A democracia e o poder invisível. In: O futuro da democracia.Trad. Marco Aurélio Nogueira. – 13ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2015. P. 105 e 168..
5. idem. p. 144
6. BOBBIO, N. Democracia e Segredo. Trad. Marco Aurélio Nogueira – 1. ed. – São Paulo: Editora UNESP. 2015 p. 60
7. BOBBIO, N. O futuro da democracia.Trad. Marco Aurélio Nogueira. – 13ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2015. P. 143
8. idem. p. 139
9. Platão considerava a democracia a passagem entre as formas boas e más de governo, sendo a pior das formas boas, ou não corrompidas. . BOBBIO, N. A teoria das formas de governo. Trad. Luis Sergio Henriques – 1ª. ed. – São Paulo: Edipro. 2017. p. 34
10. idem p. 136
11. BOBBIO, N. Democracia e Segredo. Trad. Marco Aurélio Nogueira – 1. ed. – São Paulo: Editora UNESP. 2015 p. 52 – 53
12. idem p.53
14. idem. p. 82
15. idem.p. 75
16. idem p. 18
17. BOBBIO, N. O futuro da democracia.Trad. Marco Aurélio Nogueira. – 13ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 138
18. idem p. 160
19. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56727170 (acessado em 12/08/2021)
20. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/04/entenda-as-diferencas-entre-as-pesquisas-de-emprego-pnad-e-caged.shtml (acessado em 12/08/2021)