Esse é o quinto de uma série de 5 textos do Instituto Norberto Bobbio, em parceria com o Politize!, para tratar de alguns conceitos fundamentais na democracia para o filósofo político italiano Norberto Bobbio. As visões aqui retratadas são do Instituto Norberto Bobbio, e não necessariamente partilhadas pelo Politize!.
Confira os demais textos: Democracia para Bobbio#1: As regras do jogo, Democracia para Bobbio#2: as promessas não cumpridas da Democracia, Democracia para Bobbio#3: democracia representativa e democracia direta e Democracia para Bobbio #4: O poder invisível
Em pronunciamento de fevereiro deste ano, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou: “O peso do Estado é muito grande. A orientação do presidente desde o início é vamos desonerar, reduzir, simplificar, tirar o [peso do] Estado do cangote do povo brasileiro”.
Quantos de nós concordamos com frase e objetivos acima? Provavelmente, a maior parte das pessoas terá ao menos uma opinião a respeito, já que o tamanho (ou o “peso”) do Estado brasileiro é tema presente na opinião pública já há algum tempo.
São conhecidas as críticas às variadas funções que o Estado se atribui frente à sociedade, às regulamentações impostas por ele nos mais variados campos da vida: da abertura de um negócio à contratação de um empregado; do uso do FGTS ao da máscara contra a COVID-19.
E se pede, contra a ingerência de um Estado tido (por alguns de nós) como invasivo, gastador e ineficiente, mais liberdade, ou menos poder para o Estado e mais poder para o indivíduo fazer o que ele pretende sem a intromissão do Estado. Os defensores desse Estado mais enxuto são normalmente chamados de “liberais”.
A dupla face do liberalismo
A doutrina liberal tem dois grandes pilares: o econômico e o político. Num texto de 1981, “Liberalismo velho e novo”, Norberto Bobbio escreve: “O liberalismo é, como teoria econômica, defensor da economia de mercado; como teoria política, é defensor do Estado que governe o menos possível ou, como se diz hoje, do Estado mínimo (isto é, reduzido ao mínimo necessário)”. (BOBBIO, 1981, p. 128)
Bobbio não define nesse texto o que seria um Estado “reduzido ao mínimo necessário”, mas a ideia por trás de um Estado mínimo é a de um Estado que se limita a ações que aproveitem à sociedade como um todo, como a garantia da propriedade, a proteção contra agressões estrangeiras.
O Estado liberal se formou — Bobbio destaca no mesmo texto — através de um duplo processo. De um lado, com a emancipação do poder político frente ao poder religioso, dando corpo ao Estado laico; de outro, com a emancipação do poder econômico frente ao poder político, impulsionando o Estado do livre mercado.
O Estado conservou apenas o monopólio da força, a ser exercido nos limites fixados pelo direito. Através desse monopólio, “o Estado deve assegurar a livre circulação das ideias, e portanto o fim do Estado confessional e de toda forma de ortodoxia, e a livre circulação dos bens, e portanto o fim da ingerência do Estado na economia”. (BOBBIO, 1981, p. 130)
Em outras palavras do mesmo Bobbio, uma face do pensamento liberal “é a reivindicação das vantagens da economia de mercado contra o Estado intervencionista”; a outra “é a reivindicação dos direitos do homem contra toda forma nova de despotismo”(BOBBIO, 1981, p. 131)
O liberalismo mira a limitação do poder do coletivo sobre os indivíduos, da vontade pública sobre as vontades privadas. Como diz Bobbio em “Liberalismo velho e novo”, “Tanto a exigência de liberdade econômica quanto a exigência de liberdade política são consequências práticas […] do primado axiológico do indivíduo” (BOBBIO, 1981, p. 130).
Veja também nosso vídeo sobre liberalismo!
Estado liberal e Estado social
Falar em “economia de mercado contra o Estado intervencionista” ou em “primado axiológico do indivíduo”, no entanto, não significa falar contra qualquer forma de Estado, em prol da anarquia.
No liberalismo, não se pode deixar de lado o Estado, “mas a esfera a que se estende o poder político […] deve ser reduzida aos termos mínimos”. Bobbio escreveu “Liberalismo velho e novo” em 1981, contemporaneamente aos governos Thatcher (Reino Unido) e Reagan (Estados Unidos); governos que marcaram um renascimento do liberalismo.
Esse neoliberalismo se contrapôs ao até então prevalente Estado “de bem-estar social” ou “assistencial” pela via da desregulamentação (do mercado de trabalho, do sistema financeiro), da privatização, da redução de tributos. O que move a crítica dos “novos liberais é o efeito, considerado desastroso, das políticas keynesianas adotadas pelos Estados econômica e politicamente mais avançados”. O que antes se deplorava nos Estados absolutos, isto é, “burocratização, perda das liberdades pessoais, desperdício de recursos, má condução econômica”, passa a ser atribuído “aos governos que adotaram políticas de tipo social-democrático ou trabalhista”. (BOBBIO, 1981, p. 132)
Contra o Estado paternalista, “que toma conta dos súditos como se fossem eternos menores de idade”, os “escritores liberais de hoje” (anos 80) defendem que “o melhor bem-estar é aquele que os indivíduos conseguem encontrar por si mesmos, desde que sejam livres para buscar o próprio interesse”. (BOBBIO, 1981, p. 130)
Estado liberal e Estado democrático
Mas como lutar contra um Estado assistencial (ou paternalista, conforme os liberais de que fala Bobbio) se esse Estado “está estreitamente ligado ao desenvolvimento da democracia”? (BOBBIO, 1981, p. 130). É sabido que “a lamentada ‘sobrecarga das demandas’, da qual derivaria uma das razões da ‘ingovernabilidade’ das sociedades mais avançadas, é uma característica dos regimes democráticos, nos quais as pessoas podem se reunir, se associar e se organizar para fazerem ouvir a própria voz”(BOBBIO, 1981, p. 137). Bobbio prossegue:
A partir do momento em que os direitos políticos foram estendidos aos que nada têm e aos analfabetos, tornou-se igualmente natural que aos governantes, que acima de tudo se proclamavam e num certo sentido eram representantes do povo, passassem a ser solicitados empregos, medidas previdenciárias para os impossibilitados de trabalhar, escolas gratuitas e – por que não? – casas populares, tratamentos médicos, etc.
Nessa democracia de massa, “o líder político pode ser comparado a um empresário cujo lucro é o poder, cujo poder se mede por votos, cujos votos dependem da sua capacidade de satisfazer interesses de eleitores”. Assim é que o “mercado político” se sobrepôs ao mercado econômico.
(Neo)Liberais contra a democracia?
Logo, “para os neoliberais a democracia é ingovernável não só da parte do governados, responsáveis pela sobrecarga das demandas, mas também da parte dos governantes, pois estes não podem deixar de satisfazer o maior número para fazerem prosperar sua empresa (partido)” . (BOBBIO, 1981, p. 140)
Daí a acusação que o neoliberalismo faz ao Estado assistencial, de não só “ter violado o princípio do Estado mínimo”, mas também “ter dado vida a um Estado que não consegue mais cumprir a própria função, que é a de governar (o Estado fraco)”. Bobbio continua: “O ideal do neoliberalismo torna-se então o do Estado simultaneamente mínimo e forte” (BOBBIO, 1981, p. 141). Ele seria “mínimo” com o enfraquecimento do papel do Estado, e seria “forte” com a obstrução dos conflitos, ou demandas, da democracia de massa.
Referências:
“Liberalismo velho e novo”. In: O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000.