Esse é o primeiro de uma série de 5 textos do Instituto Norberto Bobbio, em parceria com o Politize!, para tratar de alguns conceitos fundamentais na democracia para o filósofo político italiano Norberto Bobbio. Saiba mais: quem foi Norberto Bobbio?.
O que define uma Democracia? Quer dizer, quais os elementos fundamentais para que possamos classificar determinada sociedade como democrática?
Eleições periódicas e voto universal? Se assim o for, a Coreia do Norte, que realiza eleições a cada quatro e cinco anos, com a possibilidade de rejeição ou aprovação dos candidatos indicados, deveria ser considerada uma democracia[1].
Não só eleições e voto universal então? Tem de haver também mais de um partido e algumas liberdades individuais garantidas. Nestes termos, o regime cívico-militar, que perdurou no Brasil de 1964 a 1985, seria uma democracia? Afinal, este período foi caracterizado pelo bipartidarismo e pela manutenção de diversas liberdades individuais, tais como a propriedade privada, livre exercício de atividade econômica e mesmo direitos trabalhistas, previdenciários, penais, processuais etc.
Constituiria a Democracia, então, algo além desses elementos? Seria ela um sistema político em que os cidadãos devem periodicamente eleger seus governantes, com mais de uma opção disponível e com todas as liberdades individuais garantidas, de forma que o povo possa exercer a soberania popular por meio do voto majoritário?
Se assim o for, por qual razão as Fake News são vistas como a maior ameaça aos regimes democráticos atuais? Elas não retiram o caráter periódico das eleições, tampouco alteram o fato de que são os próprios cidadãos, por meio de suas convicções, que elegem os governantes, exercendo a soberania popular. Mal ou bem informados, as pessoas manifestam sua vontade em eleições diretas, multipartidárias e universais, com todas as liberdades individuais garantidas, ao menos em tese e como regra geral.
Esses sucessivos questionamentos demonstram como, apesar da aparente simplicidade, o problema de o que constitui uma Democracia é bastante complexo, principalmente quando saímos das definições abstratas para a análise de suas mais variadas formas concretas de existência e dos diferentes desafios que a ela se impõem. Por isso mesmo, o filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio sugere que comecemos por um conceito mínimo de Democracia, a definição mais elementar possível, a partir da qual se possam adicionar determinações posteriores, mas que seguem mantendo esse núcleo essencial.
O conceito mínimo de Democracia
Em O futuro da democracia, Bobbio define o regime democrático primeiramente como um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados.
Esta é uma definição procedimental, ou seja, que foca em primeiro lugar no processo pelo qual as decisões coletivas são tomadas, antes da consideração de seu conteúdo. O filósofo italiano assim o faz por entender que este é o melhor critério disponível para contrapor à democracia todo o conjunto das formas de governo a ela antitéticas, que poderíamos sintetizar como regimes autocráticos – isto é, o poder que parte do alto, em oposição ao poder que vem de baixo[2].
Nesse sentido, numa primeira aproximação, a Democracia pode ser caracterizada como um conjunto de regras fundamentais que estabelecem quem está legitimado a tomar as decisões coletivas e a partir de quais procedimentos essas decisões poderão ser tomadas:
Todo grupo social está obrigado a tomar decisões vinculatórias para todos os seus membros com o objetivo de prover a própria sobrevivência, tanto interna como externamente. Mas até mesmo as decisões de grupo são tomadas por indivíduos (o grupo como tal não decide). Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetudinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais procedimentos.[3]
O mínimo comum para que uma sociedade seja considerada democrática é, portanto, a existência de regras que delimitam o chamado jogo democrático. Todos os atores que dele participam estão sujeitos a essas regras e devem obedecê-las. E quais seriam essas regras?
Como vimos, as regras para determinar aqueles que decidirão (eleições livres, diretas, multipartidárias etc.), de forma que se alcance a maior quantidade e pluralidade possível de participantes, são de fato essenciais, mas não são as únicas. É fundamental determinar também o processo pelo qual serão consideradas válidas as normas e decisões que vincularão todo o conjunto da sociedade.
Essa validade não se dá em razão do conteúdo da decisão, ou por meio de qualquer juízo de valor, mas sim pela verificação procedimental – se foram seguidas todas as etapas e cumpridos todos os requisitos necessários para sua aprovação. Se as pessoas ou entidades tinham legitimidade para tomar aquela decisão e se foram seguidos os procedimentos adequados, tal decisão ou norma será considerada válida e, portanto, se torna a priori vinculativa a seus destinatários.
Esses critérios são importantes porque afastam dos regimes democráticos diversas tendências e aspirações autoritárias que ressurgem nas democracias ocidentais, comumente adornadas por um discurso de ineficiência do Estado, lentidão burocrática, corrupção, falta de legitimidade popular do judiciário e assim por diante. Problemas estes que, desconectados de uma compreensão ampla dos desafios da democracia e do Estado moderno frente aos mandamentos econômicos e sociais, são mobilizados e invocados por setores da sociedade que efetivamente não procuram solucioná-los no interior da institucionalidade democrática. Pelo contrário, o discurso que aponta os “entraves da democracia“, sua morosidade e falência enquanto sistema de governo, é sintoma de um embrionário deslocamento para regimes de exceção, de inobservância às regras do jogo.
Estado Liberal: o pressuposto do Estado Democrático
Vale destacar que a Democracia não se resume a esses critérios formais. Como nos mostra Bobbio, o Estado Democrático tem como pressuposto histórico e jurídico o Estado Liberal e todas as suas conquistas em termos de liberdades individuais e garantias fundamentais, tais como: liberdade de opinião, liberdade de expressão das próprias opiniões, liberdade de reunião e de livre associação, liberdade de locomoção, pluralidade de partidos, livre concorrência entre os partidos no jogo democrático, eleições periódicas e sufrágio universal, livre debate de ideias, publicidade do processo decisório e do conteúdo das decisões e assim por diante.
De acordo com o filósofo italiano, a experiência histórica demonstra que somente onde (r)existiram esses direitos invioláveis dos indivíduos a Democracia pôde permanecer com suas regras procedimentais mínimas de aferição. Existiria então uma reciprocidade entre a definição procedimental mínima dos regimes democráticos e as garantias e direitos individuais fruto do estado liberal. Estes últimos não seriam exatamente regras do jogo democrático, mas constituiriam os pressupostos necessários para que ele possa ser jogado:
Estado liberal e estado democrático são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável que um estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais. A prova histórica desta interdependência está no fato de que estado liberal e estado democrático, quando caem, caem juntos.[4]
As regras do jogo são, portanto, o fundamento dos regimes democráticos, os parâmetros por meio dos quais a luta política deverá ser travada. Respeitadas as regras estabelecidas, a decisão da maioria será coletivamente vinculante, mas isso não significa a extinção dos direitos e garantias das minorias, tampouco a proibição ou a anulação do dissenso.
Conflito, dissenso e oposição
As democracias aceitam a existência dos conflitos sociais e procuram desenvolver métodos para resolução não violenta desses conflitos. A busca por um consenso majoritário nos regimes democráticos em nada tem a ver, pois, com a lógica do inimigo, da eliminação de adversários políticos e daqueles que discordam da maioria estabelecida. Esta é a via autocrática de encaminhamento dos conflitos, de acordo com a qual não devem ser observadas quaisquer regras mínimas para a tomada de decisões e seus procedimentos. Não à toa as decisões autocráticas ocorrem normalmente em segredo, escondidas do público.
A democracia requer rotineiramente o estabelecimento de consensos, principalmente em torno das regras que estabelecem a competição entre os atores. Consequentemente, seu pressuposto é que prevalece na sociedade o dissenso, a oposição, a competição, a concorrência e o conflito de interesses. A tentativa de se eliminar violentamente esses fatores sociais constitui um ataque aos preceitos democráticos e uma violação de suas regras fundamentais.
Ademais, como bem observa Bobbio, que valor tem o consenso onde o dissenso é proibido ou mesmo punido? Seria este um consenso alcançado pela convicção e vontade individual ou por mera subserviência passiva do alto poder? O que resta de estado liberal em tais condições?
Próximos passos
As regras do jogo democrático estão hoje amplamente disseminadas pelo mundo e incorporadas em Constituições e leis fundamentais de diversos países. Como vimos até aqui, e continuaremos a ver nos próximos textos desta seção, o regime democrático não se limita ao respeito das regras do jogo, mas sem elas é muito difícil que se continue a tratar de Democracias.
Nesse sentido, seguiremos nossa análise no próximo texto por meio das Promessas não cumpridas da Democracia. Por enquanto, esperamos ter ao menos indicado como a aparente simplicidade dos regimes democráticos, que por vezes tomamos como algo dado e pronto, velam um sistema complexo e contraditório, que está sob constante atualização, conforme mudam as condições e os desafios sociais impostos por cada época.
Referências:
[1] Conferir: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/03/1423150-coreia-do-norte-anuncia-eleicao-com-100-dos-votos-para-kim-jong-un.shtml e https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/03/10/coreia-do-norte-eleitores-escolhem-membros-do-parlamento-em-legislativas-de-partido-unico.ghtml (acessados em 08/05/2021).
[2] BOBBIO, N. O futuro da democracia.Trad. Marco Aurélio Nogueira. – 13ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2015. P. 98 e 99.
[3] Idem, p. 35.[4] Idem, p. 38 e 39.