Em um mundo cada vez mais conectado, o acesso à informação qualificada é essencial, com a imprensa fazendo um importante papel de verificação e filtragem de dados. Quando consideramos que atravessamos um contexto de proliferação de desinformação, o trabalho jornalístico se faz ainda mais necessário, sendo intrínseco ao exercício da cidadania, tanto a nível local quanto a nível nacional.
Contudo, você sabia que existem muitas regiões, no Brasil e no mundo, onde a população não tem acesso a estas fontes a nível local? Os próximos parágrafos buscarão explicar o que são desertos de notícia, por que são importantes e como a sociedade brasileira se encontra nesse cenário.
O que são desertos de notícias?
Desertos de notícias são lugares, em geral municípios, onde não existem veículos locais de imprensa independente, seja ele “jornal, site, blog ou emissora de rádio ou TV”. Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil, ganhando visibilidade principalmente a partir de estudos realizados por universidades americanas sobre as mudanças no mercado jornalístico por lá.
Assim, a partir de exposição e pesquisa, buscaram-se explicações para o que foi observado. Vários fatores ajudam no entendimento acerca dos desertos de notícia, como o surgimento de novas tecnologias e, com isso, a indução de transformações no mercado (o que levou veículos tradicionais a perderem influência); e as dificuldades financeiras, principalmente, a partir da crise de 2008, o que, segundo Miller (2018), colocou muitos veículos de pequeno e médio porte em risco de falência, “a concentração das indústrias de mídia em centros urbanos […] como metrópoles”[2]; entre outros.
Outros tipos de lacunas informacionais
Deve-se ressaltar que os desertos de notícia são apenas uma das classificações sobre lacunas de informação. Segundo o Atlas da Notícia, pesquisa voltada para o tema no Brasil, são comuns também os quase desertos, caracterizados por “municípios que possuem apenas um ou dois veículos jornalísticos”.
Estes trazem riscos adicionais, como o de se tornarem desertos e o de questionamentos sobre seus conteúdos, já que “com pouca ou nenhuma concorrência, iniciativas locais estão mais vulneráveis a interferências políticas ou empresariais, por exemplo, embora isso seja difícil de apurar caso a caso”.
Nesses locais, são comuns os chamados “jornais fantasmas”. Esses, apesar de se apresentarem como veículos de notícias, não têm recursos para fazê-lo – o que os faz existirem “apenas nominalmente”. De modo geral, são replicadores de notícias nacionais ou internacionais, muitas vezes, deixando de lado o aspecto local.
Por que informações de qualidade são importantes?
A importância do tema deriva, principalmente, da função principal da imprensa – a falta de veículos locais não permite, à população, o acesso a informações sobre seu próprio município, o que tem impactos em diferentes esferas.
A primeira é a esfera cívica. Sem informações verificadas de modo autônomo o exercício da cidadania é prejudicado, pois os cidadãos ficam “às cegas” em relação ao poder público. Isso os impede não só de participar da vida política local, mas de acompanhar o trabalho de seus representantes. Esse cenário afeta majoritariamente cidades pequenas que, em muitos casos, não possuem meios de acompanhar o trabalho de prefeituras, que não os institucionais, que podem ser tendenciosos.
Isso fica transparente na fala de Eugênio Bucci, da faculdade de comunicação (USP), em entrevista à Rádio Eldorado/Estadão: “Quando não há essa cobertura, essa sociedade fica mais vulnerável. Ela pode se tornar refém de um esquema de propaganda que seja tecnicamente eficiente, que tenha dinheiro e a sociedade não tem instrumentos para se proteger e para checar. Essa é a preocupação”.
Nesse sentido, há a esfera política, já que políticos, menos expostos à prestação de contas, têm mais chances de extrapolar suas funções, podendo trilhar caminhos como o da corrupção, por exemplo.
Miller destaca também a esfera econômica, ressaltando o papel de “cão de guarda” da imprensa local. Segundo a autora, foram verificados, em desertos de notícias, aumentos nos impostos e na dívida pública – o que, segundo a mesma, denota uma diminuição da eficiência por parte de governos locais.
A autora ainda ressalta que, apesar de inovadoras, as redes sociais ainda não estão aptas a cumprir esse papel de observação e cobrança, sendo essas, por enquanto, mais competidores, em relação a recursos com veículos de mídia tradicionais, por recursos de propaganda, necessitando de mais regulação – visando diminuir a proliferação de notícias “caça-cliques” e de notícias falsas.
Dessa forma, os desertos são especialmente perigosos atualmente, visto que muitas pessoas têm nas redes sociais as suas maiores fontes de notícias – sendo estas, notoriamente, utilizadas para a propagação de fake news.
Como é a situação brasileira?
No Brasil, segundo a última edição do Atlas da Notícia, divulgada no dia 02 de fevereiro de 2021 pelo observatório da imprensa, 3.280 municípios se encontram em situação de deserto de notícias – abrangendo cerca de 33,7 milhões de pessoas ou 15,9% da população. Quando se trata de quase desertos, falamos, atualmente, de 28,9 milhões de pessoas ou 13,7% da população. Juntas, ambas as categorias englobam quase 30% dos habitantes do Brasil (29,6%).
Nesse contexto, de acordo com o Observatório da Imprensa, em um levantamento sobre a última edição do Atlas da Notícia, as regiões mais afetadas são Norte, com 69,8% dos municípios considerados desertos de notícia, e Nordeste, com 66,3% das cidades nessa situação.
É curioso notar que essa situação abrange, inclusive, municípios em regiões metropolitanas, como ressalta Sérgio Lüdkte, coordenador do Atlas, também em entrevista à Rádio Eldorado/Estadão. Exemplo disso seriam as periferias das grandes cidades e os pequenos municípios aos arredores de grandes cidades, que ficam à margem da cobertura jornalística local.
Contudo, deve-se ressaltar que, nas últimas duas edições do Atlas, nota-se que o número de desertos vêm decrescendo no Brasil. Nesse processo, é importante a ascensão das mídias digitais, em especial de blogs de notícias locais com pequenas redações – que se destacam, justamente, por ajudar a informar a um baixo custo de operação e manutenção. Assim, chama a atenção a queda de 5,9% dos municípios em situação de deserto, da 3ª para a 4ª Edição do Atlas, com a queda da porcentagem populacional atingida sendo ainda maior, de 9,6%.
Vale destacar a região Nordeste, que, mesmo sendo a segunda com mais municípios nessa situação, como supracitado, vêm apresentando resultados interessantes, como destaca Sérgio Spagnuolo, coordenador de dados e análise do Atlas, à Folha de São Paulo, dizendo “que ‘tem muita coisa acontecendo’, com pequenas iniciativas digitais sobretudo no Nordeste”. Tal movimento vem dando resultado, haja vista que na 3ª edição do Atlas, liberada em dezembro de 2019, a região apresentava cerca de 73,5% dos municípios como deserto de notícias, evoluindo para os 66,3%, já mencionados, na 4ª edição[7].
REFERÊNCIAS
AFP (UOL): Quem usa redes sociais como principal fonte de informação tende a acreditar mais em fake news.
Beatriz Roscoe/Poder360: Atlas da Notícia: 33,7 milhões de brasileiros vivem em desertos de notícias.
Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (PROJOR): Atlas da Notícia.
Judith Miller/Manhattan Institute: News Deserts: No news is bad news. In: Urban Policy (2018), pp. 58-76.
Jacqueline da Silva Deolindo: O deserto da notícia no interior do Brasil – apontamentos para uma pesquisa. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 41º, Joinville (SC), 2018.
Nelson de Sá/Folha de São Paulo: Sites encolhem desertos de notícia no Brasil.
Pedro Varoni e Vitor Prado/Observatório da Imprensa: 70 milhões de brasileiros vivem em deserto de notícias.
Rádio Eldorado/O Estado de São Paulo: Deserto de notícias: mais de 60% das cidades não têm informação sobre gestão municipal.
Rodrigo Borges Delfim/Folha de São Paulo: Desertos de notícias dominam mais da metade dos municípios brasileiros.
Sérgio Spagnuolo/Observatório da Imprensa: Jornalismo digital reduz abrangência dos desertos de notícia.
[1] Nominalmente a Universidade de Columbia, que, a partir de um estudo chamado America’s Growing News Desert, “desenvolvido pela revista Columbia Journalism Review” inspirou o Atlas da Notícia segundo Deolindo (2018, p. 3).
[2] DEOLINDO, 2018, p. 7.
[3] Realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (PROJOR), já na sua 4ª Edição.
[4] Ghost Papers. Destacados também por Miller.
[5] “that they exist in name only” (MILLER, 2018, p. 69). Tradução própria.
[6] “Watchdog role” (MILLER, 2018, p. 64).
[7] Segundo a mesma matéria, na Folha de São Paulo.