Nota do Politize!: a história a seguir, sobre a diminuição da burocracia, é contada por Daniel Perrelli Lança, que foi procurador municipal em Itabira, Minas Gerais. Ela pode ser conferida no livro “Governança Municipal – 20 cases de sucesso da nova gestão pública nas cidades brasileiras”. Sua experiência é apenas mais uma prova de que inovações podem ser incorporadas no dia a dia do setor público.
Esta história aconteceu em 2013 na cidade de Itabira/MG, terra de Carlos Drummond de Andrade – o poeta maior – tendo como pano de fundo a gestão da Procuradoria-Geral do Município (PGM), o jurídico da prefeitura.
Quando de minha nomeação para o cargo de Procurador-Geral, o então prefeito municipal me chamou no canto e disse: “Olha, você é jovem e estou te escolhendo, em detrimento de advogados mais experientes, pela sua dinamicidade. Quase tudo aqui na prefeitura está ‘agarrado’ por conta da demora nos processos da PGM. Precisamos de agilizar as coisas por lá!”.
O recado foi logo entendido. Dinamicidade era a palavra de ordem.
Quando efetivamente assumi as funções, havia tantos processos na minha sala que não dava para acreditar – processos nas mesas de reunião e do gabinete, em cima das cadeiras, no chão – um verdadeiro cemitério de papel.
Nos primeiros dias, o trabalho foi manual – e pesado. Na base da transpiração, foram-se indo embora os processos. Em algumas semanas, tinham sumido quase todos aqueles originais – mas outros muitos não paravam de chegar. Credito muito ao trabalho dos procuradores de carreira que fizeram comigo um mutirão. Mas naquele esforço, percebi que o desenho da lógica da tramitação dos processos estava equivocada, burocrática e centralizadora. Era hora de mexer naquilo tudo objetivando a diminuição da burocracia.
Diante do imenso desafio, tomamos a decisão de contratarmos uma consultoria especializada em gestão de automação de processos. Como aquilo não existia de fato para o setor público, criamos um laboratório fantástico de ideias, brainstormings e estratégias para melhorar a dinamicidade, padronizar entendimentos e materiais e acelerar o fluxo e a lógica.
A BUSCA PELA DESCENTRALIZAÇÃO
Ideias reunidas, passamos a agir. Uma das primeiras impressões que tivemos era que a sistemática interna era por demasiado centralizada na pessoa do Procurador-Geral. Tudo obrigatoriamente passava pelo seu crivo, desde a distribuição dos processos entre os procuradores de carreira até as revisões de peças processuais e assinaturas. Mesmo despachos corriqueiros esperavam, por vezes, uma semana na mesa do Procurador-Geral para análise, o que derradeiramente quase sempre corria nos mesmos despachos-padrão.
Interessante porque todo processo de melhoria na qualidade de gestão de processos passa pela descentralização. Não se trata, entretanto, de mera distribuição irresponsável de tarefas sem controle e sem metodologia. O desafio é trabalhar a demonstração de confiança do líder em seus subordinados mediante a delegação de competências, cujo método se dê com acompanhamento frequente e paulatino. O resultado é incrível – a não-dependência do andamento dos processos em apenas uma pessoa traz dinamicidade e faz com que os seus subordinados se sintam mais prestigiados e entusiasmados, já que trabalham com a confiança do chefe.
PADRONIZAÇÃO DE TAREFAS
Claro, não bastava apenas delegar competências. A implantação da nova cultura da PGM precisava ser precedida por algo que sou encantado – a construção de rotinas decisórias padronizadas. Explico: o que deve a PGM fazer no caso X, ou quando aparecer a situação Y, por exemplo.
Um dos diagnósticos que descobrimos na PGM era que 95% dos processos que chegavam a nós eram padronizados com as mesmas situações (pedido de parecer jurídico para concorrência pública tipo menor preço; ou pedido de apreciação quanto a questões de servidores públicos nessa ou naquela situação, p. ex.) – portanto, eram sempre as mesmas perguntas. Entretanto, nossas respostas eram muito diferentes entre si, de acordo com o procurador que respondia determinado processo ou a época do parecer. Resultado: uma verdadeira confusão. Não havia segurança jurídica por conta da falta de padronização dos entendimentos internos da PGM.
Não eram somente os entendimentos que estavam sem padronização: os pareceres e peças processuais em si também eram completamente desarmonizados. Cada documento tinha fonte própria, tamanhos diferentes, formatos dos mais variados. Para alguns procuradores, dois curtos parágrafos bastavam; para outros, eram necessários verdadeiros tratados de Direito. A saída: com base no levantamento das demandas mais frequentes que a PGM recebia (95% dos processos), elaboramos as rotinas respectivas com checklists e pareceres-padrão para que os procuradores se posicionassem harmoniosamente. Portanto, desnecessário aos procuradores elaborarem pareceres às perguntas-padrão – bastava verificar o checklist e adaptar ao parecer padrão já existente.
Com isso, foi possível alcançar a dinamicidade que o prefeito tanto queria. Quando entramos, sequer sabíamos quanto tempo de fato a tramitação de um documento interno demorava a sair com resposta. Após levantarmos os indicadores, chegamos aos números: antes dos trabalhos se iniciarem, a PGM trabalhava a uma média de 80 dias para cada parecer jurídico. Um indicador assustador – por esse motivo (mesmo sem metodologia de cálculo), o prefeito já estava desesperado por mais agilidade e diminuição da burocracia.
Após alguns meses, o novo indicador veio a público: para nossa surpresa, o prazo de tramitação médio da PGM caiu de 80 para 2,3 dias por parecer. Uma verdadeira revolução interna, motivo de grande satisfação para toda a equipe. Claro, o desenho da gestão de processos internos foi fundamental. Mas o mérito foi todo da equipe da PGM, que abraçou a ideia e trabalhou motivada para a redução de prazos internos como nossa principal meta deste processo de diminuição de burocracia.
Tais mensurações passaram a ser obsessão da equipe. Buscávamos diminuir ainda mais o indicador, e acompanhá-lo passou a ser divertido. Nessa senda, resolvemos transformar esses números(e outros tantos números que vinham da metodologia de cálculo utilizada) em gráficos e colocá-los em um dashboard. Para quem nunca ouviu a expressão, coloco-o abaixo (um dos primeiros que mensuramos no início dos trabalhos). Afinal, uma imagem pode valer mais que mil palavras:
Assim, pelo dashboard acima passamos a mensurar os indicadores dos processos internos da PGM por prazos, inclusive medindo e comparando performances pessoais de cada procurador, quais eram as secretarias mais requisitantes de análises jurídicas; enfim, podíamos colocar qualquer filtro para fazer análises quantitativas e qualitativas da equipe. E tudo podia ser visto ao vivo por qualquer um que fosse à PGM (open data).
PREMIAÇÃO POR PRODUTIVIDADE
A ideia foi tão interessante que o próximo passo estava delimitado – queríamos propor ao prefeito a adoção de um Prêmio por Produtividade, baseado nos indicadores do dashboard. Por exemplo, se os advogados da área consultiva conseguissem entregar mais de 95% dos processos dentro da meta (digamos, 3 dias de resposta por processo), eles então receberiam 100% do prêmio por produtividade, pago uma ou duas vezes por ano. Caso alcançassem uma meta inferior (digamos, a meta estabelecida de 3 dias/parecer em apenas 85% dos processos), receberiam um percentual menor (digamos, 75% do prêmio). Lógica semelhante aconteceria com os advogados da área contenciosa. E o prêmio seria pago por equipes: todos do grupo só receberiam se todos – conjuntamente –atingissem a meta.
A próxima etapa do projeto seria a construção, via design thinking, de um esboço de Acordo de Resultados, que atingisse não só a PGM, como outras áreas-meio e áreas-fim. Uma ideia verdadeiramente revolucionária.
Após a concepção e execução do projeto, preciso dizer que meu trabalho ficou infinitamente mais tranquilo. Como 95% das perguntas que chegavam a nós via processos administrativos eram padronizados, com eles já não me preocupava mais. Com as rotinas decisórias padronizadas feitas, os procuradores de carreira também tinham mais facilidade em responder com segurança jurídica e coerência interna. Sobrava-nos bastante tempo para acompanhar o prefeito em reuniões, visitas in loco, etc.
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GARGALOS DESTE PROCESSO DE DIMINUIÇÃO DA BUROCRACIA
Claro, nem tudo que chegava à PGM eram perguntas-padrão. Aqueles 5% que saiam fora da curva competiam, a princípio, a mim, que cuidava de estudá-los melhor, criando uma resposta da PGM que fosse tanto inteligente ao momento, quanto gerasse em si uma jurisprudência para os próximos adventos (novas rotinas decisórias padronizadas).
Nesse ínterim em que formulamos as rotinas e padrões da PGM, fomos descobrindo outros gargalos, que imediatamente cuidamos de resolver. Vimos que a quantidade de advogados era um dificultador. Embora a equipe estivesse se doando ao máximo, ainda não era o suficiente e precisávamos de mais gente. Contratamos mais três profissionais, o que também contribuiu para abaixar a média de pareceres jurídicos/dia. Também elaboramos um Planejamento Estratégico da PGM, que se tornou o primeiro órgão municipal a ter diretrizes sistematicamente fundamentadas e perseguidas. Ter missão, visão e valores próprios e entender nossas fraquezas, forças, oportunidades e ameaças nos fez fundamentalmente bem.
Ainda outra estratégia que penso ter sido bem sucedida foi a divisão do staff da PGM por equipes. Quando lá cheguei em 2013, todos faziam de tudo; não havia divisão objetiva de tarefas – um mesmo advogado militava num processo trabalhista pela manhã, esboçava uma defesa técnica de Tribunal de Contas à tarde e terminava o dia emitindo parecer jurídico sobre qualquer tema espinhoso em licitações públicas. Aquilo precisava mudar.
Uma vez estabelecidos os indicadores de processos da PGM, vimos qual era a verdadeira demanda de cada área – mensuramos a quantidade de pessoas por equipe (consultiva e contenciosa, esta subdividida em fiscal e residual). Depois disso, demos suporte técnico e investimento em capacitação nessas áreas de atuação para cada funcionário ser mais assertivo em sua respectiva área de atuação.
Isso se deu exatamente porque verificamos que havia ausência de investimento da PGM no seu corpo técnico – procuradores e servidores administrativos. Aos procuradores, oferecemos uma Pós-Graduação em Advocacia Pública, cada qual especializando em suas áreas de atuação, custeado pela municipalidade, com a única condição de que o curso fosse devidamente concluído – do contrário, o advogado custearia integralmente o valor despendido.
Algo que ainda é um grande gargalo, de uma maneira geral, nas procuradorias municipais Brasil afora são os salários desses profissionais. Pelo nível de educação, complexidade dos concursos públicos e de suas funções e importância de suas atribuições no cotidiano das Administrações Públicas locais, os procuradores de carreira recebem ainda muito pouco.
Entendo as dificuldades dos gestores municipais em aumentar sua remuneração. A primeira trincheira é a equiparação com outros profissionais de nível superior nas prefeituras – se se aumenta o salário dos procuradores, mas não dos dentistas, dos auditores fiscais, ou dos arquitetos, p. ex., certamente haverá brigas.
Em Itabira, identificamos algumas formas de resolver o problema dos funcionários da PGM sem arrumar (tanta) briga com outros setores. Um deles foi o aumento dos honorários advocatícios. Explico. A grande maioria das prefeituras do país adota hoje, inclusive com previsão legal no novo Código de Processo Civil, a instituição dos honorários aos advogados públicos. Estes são devidos nos casos de honorários sucumbenciais (decorrentes de condenação judicial), por exemplo, mas podem ser oriundos de outros fatos, como os honorários fiscais, provenientes da execução da dívida ativa. Nestes casos, uma ação conjunta do município para recuperar mais agressivamente a dívida ativa ajuizada e não-ajuizada pode trazer benefícios tanto para o Tesouro fazendário quanto para os honorários administrativos aos procuradores.
Ainda, outra solução sublinhada aqui é a instituição de um Acordo de Resultados que abranja tantas equipes de servidores públicos quantas forem interessantes para a Administração. Basta empenho e vontade política para desenhar um modelo que prime por metas e indicadores, possível tanto nas áreas-fim, quanto meio, e monitorá-las de maneira séria e consistente. O resultado é animador: um modelo que efetivamente gera motivação, que por sua vez gera mais produtividade, que gera um bônus financeiro aos que alcançam a meta; bônus este que não incorpora o salário, pode ser aumentado, diminuído ou mesmo extinto a cada ano, conforme determinação superior. Sobre isso falaremos mais à frente.
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INOVAR É POSSÍVEL
Muitas foram as histórias vividas no tempo que passamos na PGM. Cabia a mim, como Procurador-Geral do Município, coordenar toda essa engrenagem para que efetivamente funcionasse, o que nunca significou trabalhar 20 horas por dia – eis a diferença entre produção e produtividade. À medida em que os mecanismos de padronização davam certo, mais azeitada trabalhava a máquina administrativa.
Competia a mim, com o tempo que tinha à disposição, pensar em outras estratégias e outros modelos de gestão que resultassem na diminuição da burocracia e pudessem resolver problemas cotidianos internos da prefeitura, não somente da PGM. E nosso programa de melhoramento na gestão interna corporis da PGM acabou se transformando num projeto maior – bem maior.
E você, o que achou de nosso case de diminuição da burocracia em Itabira/MG? Deixe sua opinião nos comentários!