Segundo o art. 1º, do Código Civil, de 2002, toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. No mesmo Código, art. 2º, é dito quando é adquirido a personalidade civil de uma pessoa, dessa forma, considera-se que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida. Porém, há uma ressalva: ainda no art. 2º consta a redação “mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro“. Isso quer dizer que desde a formação do feto até o nascimento, o nascituro – ou seja, o ente gerado – é protegido pela lei.
A Teoria Geral do Direito Civil, dentro desse mesmo tema, diz que estamos diante de uma “aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações”. Em termos menos jurídico, isso quer dizer que a personalidade jurídica é um tributo para ser sujeito de direito. Ainda um pouco confuso? Bom, nada que um exemplo para nos ajudar a entender. Vem com a gente!
Por exemplo, “As aventuras de Pinóquio”
A maioria de nós já ouvimos falar sobre Pinóquio. Nas palavras de quem escreveu, “As aventuras de Pinóquio”, de Carlo Collodi, é um clássico literário infantil; uma marionete, criada por um senhor simpático, de características simples e um bigode de chamar atenção. Gepeto, um fabricante de brinquedos, elabora, detalhadamente, cada parte de Pinóquio.
começou a trabalhar com afinco, e logo lhe fez os cabelos, depois a testa, depois os olhos […], fez-lhe o nariz […] Depois do nariz, fez-lhe a boca […] Depois da boca, fez-lhe o queixo, depois o pescoço, depois dos ombros, o estômago, os braços e as mãos¹.
Resumidamente, Pinóquio é uma marionete que ganha vida; vive as aventuras mais inusitadas, encontra pessoas de todos os tipos, e sempre acompanhado do Grilo Falante, que em uma análise mais aprofundada da peça é considerada como a consciência de Pinóquio.
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O maior desejo da marionete é ser um garoto de verdade! E para isso passa por cima de qualquer um, principalmente de Gepeto e do Grilo Falante. O primeiro, fazendo papel de figura paterna, fica “triste e melancólico, como nunca estivera antes na vida²“, pois seu filho, podemos dizer assim, sai de casa mais de uma vez, mente (quem aí não lembra do seu nariz crescendo) , chega a ser preso duas vezes e tem atitudes agressivas.
A primeira delas consiste na dissimulação de uma situação em que Pinóquio era na verdade justamente admoestado por Gepeto pela fuga irrefletida de casa sem sequer escutar conforme as orientações necessárias para um neonato. Ele então encena estar sendo injustamente agredido por Gepeto na rua, diante de desocupados passantes, o que inverte o valor das ações ali acontecidas e faz de Pinóquio a vítima, causando a prisão do pobre Gepeto, que apenas agia para resgatar e admoestar o filho³.
Quanto ao Grilo Falante, Pinóquio se mostra ríspido com ele. A esse personagem, o Grilo, é caracterizado por alguns autores, como a Abel Fernandes Gomes, a função de consciência do Menino Marionete.
E isso se vê na cena literária materializada no livro pela figura do Grilo Falante. Mas a própria consciência, também no estado rudimentar inicial da existência em que se encontrava, era incapaz de dialogar eficazmente com o menino da madeira, e acabou sendo suprimida pelo ímpeto quando, aborrecido pelas advertências do Grilo Falante, Pinóquio lhe fulmina com uma martelada na cabeça. Um martelada para suprimir os grilos de sua própria consciência, e que obstaculizavam os ímpetos primitivos pela autossatisfação.
Mas Calma! Não é só de mal momentos que vamos falar desse personagem infantil que, acredito eu, marcou ou marcará de alguma forma a vida de quem lê esse ensaio. Seguimos.
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O personagem que escolhemos, por ser semelhante a um garoto, também possui sentimentos amigáveis, amáveis, filial, de fraternidade e, dessa forma, começa aos poucos na história criar senso do que é certo ou errado. Uma das partes essenciais, que mostra esse período de transição, de boneco para garoto, ocorre quando Pinóquio salva outro brinquedo de um final não tão feliz. A cena mostra o menino de madeira salvando Alerquim, outra marionete que estava sob uma ameaça de virar lenha para Camefogo, e Pinóquio se ofereceu para ficar no lugar do “irmão de madeira”.
Um outro exemplo evidencia o senso de responsabilidade da marionete: “quando ele socorre o colega que é atingido numa briga, sendo o único dos meninos envolvidos que não foge”.
Faz-se importante, entretanto, explicitar que é através das aventuras vividas que Pinóquio, pouco a pouco, vai se humanizando, e, no seu processo de humanização, adquirem forma de atos de bravura que ele pratica.
E o que tudo isso tem a ver com personalidade jurídica, pessoa natural e Direito Civil? Tudo. Acompanhem o raciocínio.
Direito Civil, personalidade jurídica e pessoa natural
O Código Civil de 2002, em seu art. 2º, traz a seguinte redação, “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. ”
Saindo do juridiquês! Assim que nascemos com vida – e esse é um detalhe importante para o contexto que estamos apresentando – somos reconhecidos por adquirir personalidade jurídica. Há, contudo, uma ressalva. “mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, isso significa que já no útero ainda feto, e durante todo o processo de gestação até o parto, somos também protegidos pela lei. Um exemplo.
Entretanto, vale ressaltar que o nascituro pode ser considerado como um “sujeito de direito”, tanto que este é protegido pelo Código Penal, em seus artigos 124 e 127, os quais tratam da matéria referente ao crime de aborto. Este é um exemplo clássico, que comprova seus direitos, uma vez que é ilegal a prática do aborto, exceto as causas excludentes, também previstas neste diploma legal, as quais não serão temas deste trabalho acadêmico. Leciona Guilherme Menezes Aguiar
Mas o que é personalidade jurídica?
Caio Mário, civilista renomado, une personalidade a pessoa, sob o argumento de exprimir “a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres.” E mais, “como o ser humano é sujeito das relações jurídicas, e a faculdade a ele reconhecida, diz-se que toda pessoa é dotada de personalidade”.
Ainda muito jurídico, eu sei. Caio Mário quer dizer que a personalidade jurídica e pessoa, nós, somos uma coisa só. Lembram que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida? Então, assim que nascemos somos detentores de direitos e deveres. Isso quer dizer que uma bebê quando nasce, por exemplo, tem por direito, dentro do Direito Sucessório, ser herdeiro de um bem. Assim como temos por dever como cidadão, nos limites da Constituição Federal de 1988, o alistamentos eleitoral e o voto obrigatório.
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Para a Teoria Geral do Direito Civil, segundo Stolze e Pamplona Filho, quando presente a personalidade, o sujeito passa a atuar, ou seja, torna-se sujeito de direito, e, consequentemente, há a prática de atos e negócios jurídicos “dos mais diferentes matizes.” E como dito na abertura: personalidade jurídica “é a aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo para ser sujeito de direito.”
Antes de adentrarmos na questão de o Pinóquio ter personalidade jurídica ou não, é necessário abrir um parêntese. Clóvis Beviláqua diz que : “a personalidade jurídica tem por base a personalidade psíquica, somente no sentido de que, sem essa última não se poderia o homem ter elevado até a concepção da primeira.” O que Beviláqua afirma é que o individuo projeta a personalidade psíquica na personalidade jurídica e isso, por fim, garante ao indivíduo novas qualidades.
Isso quer dizer que sem personalidade psíquica não há personalidade jurídica, uma vez que há uma projeção de uma para a outra, isto é, da primeira para a segunda personalidade. Bom, mas o que é considerado a personalidade psíquica?
Segundo de Diogo Costa Gonçalves (2008), entende-se por personalidade um aglomerado de “disposições de caráter”, ou modos pré-estabelecidos de atuação, podendo ser também um “conjunto de aptidões”. Então, personalidade psíquica está relacionado com aquilo que nos define ou como nos definem; nossas qualidades e aptidões, ou seja, tem a ver com a nossa personalidade íntima.
E Pinóquio? Bom… no desenrolar do conto de Carlo Collodi, Pinóquio se reveste de humanidade, ou seja, é gerido pela fraternidade, acrescido de honestidade, responsabilidade, caridade, amor filial, trabalho, estudo e gratidão – todos esses são exemplos de personalidade psíquica. E são esses valores que o rendem a transformação em ser humano.
E não para por aí: quando o Pinóquio passa a ter esses valores, ou seja, passa a se transformar em ser humano, ele também passa a se submeter as normas sociais – como a lei, a cultura, etc. Isso significa que a assimilação de valores humanos e sociais vão ao encontro da “normatização da conduta e à submissão à Lei, cujo efeito será ingresso de Pinóquio na cultura, ou seja, na adesão social.”
Assim, em resumo: Pinóquio, passa a possuir sentimentos que caracterizam uma pessoa: fraternidade, responsabilidade, agressividade, caridade e outros já mencionados; e ao mesmo passo se torna submisso à Lei, ou seja, passa a respeitar e a cumprir a ordem jurídica.
Veja um exemplo.
Mas a segunda importante situação narrada no livro ainda colocaria Pinóquio diante do confronto entre a justiça e a lei. O encontro com uma justiça formalmente adequada ao contexto em que aplicada, mas completamente apartada da objetiva virtude categórica, também é uma das experiências vivenciadas pelo nosso protagonista.
Então, lembra o que falamos sobre o art. 1º, do Código Civil? Nele, toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. E o personagem, nesse contexto, cumpriu um dever. Então, será que isso significa que Pinóquio pode ser considerado uma pessoa natural – ou seja, um ser humano dotado de capacidades, um sujeito com direitos e obrigações?
A grande questão não é responder se Pinóquio tem ou não personalidade jurídica, ou ainda se pode ser considerado como pessoa natural, mas evidenciar como podemos aprender Direito por meio da literatura, seja nacional ou estrangeira. Mas fica no ar! Pinóquio tem ou não personalidade jurídica?
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Sugestão do autor
Café, Direito e Literatura (podcast): Pinóquio e sua personalidade jurídica (?)
REFERÊNCIAS
S. Pablo; F.R. Pamplona: novo curso de direito civil 1 – parte geral
P.C.M.D.S. Instituições de Direito Civil – Vol. I – Introdução ao Direito Civil – Teoria Geral de Direito Civil
José Roberto de Castro Neves: o que os grandes livros ensinam sobre justiça
André Karam Trindade; Lenio Luiz Streck (Ed.). Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade
Malu Romancini; Daniela Menengoti Ribeiro. Direitos da personalidade nas Constituições da América do Sul: pontos de convergência interculturais para uma futura análise transconstitucionalista. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; DIAS, Jefferson Aparecido e LOPES, Ana Maria D’Ávila. Direito Internacional dos Direitos Humanos I
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