Economia de guerra: por que estamos falando disso?

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Imagem de barras brancas e militares em um campo. Conteúdo sobre "economia de guerra".

Exército chileno monta hospital de campanha. Foto: Ejército de Chile/Fotos Públicas.A gravidade da pandemia de covid-19 tem levado líderes mundiais e economistas de todas as partes do mundo a caracterizarem as ações de contenção da doença como “esforços de guerra” ou aplicação da “economia de guerra”.

Nesse post, o Politize te explica o que significa uma economia de guerra e por quais motivos o conceito tem sido associado à crise provocada pela pandemia do novo coronavírus.

De onde surge o conceito de “economia de guerra”?

Na primeira metade dos anos 1940, a expressão “economia de guerra” foi utilizada em abundância por livros e publicações acadêmicas a fim de explicar as ações dos governos envolvidos na Segunda Guerra Mundial.

O termo volta a ganhar relevância após os ataques ao World Trade Center, em 11 de setembro, com um artigo do economista norte-americano James Kenneth Galbraith.

Galbraith utilizou seu artigo para recomendar ao governo norte-americano que aumentasse os gastos públicos o máximo possível a fim de evitar a recessão que se aproximava devido ao desemprego e à queda do consumo, provocados pelo ataque de 11 de setembro.

Assim, o que o economista estava sugerindo é o que o governo dos EUA aplicasse uma “economia de guerra” no país.

Mas, afinal, o que é uma economia de guerra?

Em seu artigo, Galbraith explica que uma economia de guerra é um conjunto de práticas econômicas aplicadas com o objetivo de estabilizar a economia de um país durante um período histórico peculiar, como uma guerra.

Uma dessas práticas é a expansão dos gastos públicos. Isso porque, para que consiga lidar com uma guerra, por exemplo, o governo deve financiar o aparato militar e destinar recursos para proteger o território de país e para garantir o bem-estar e a integridade da população.

Além do aumento dos gastos, de acordo com o economista Peter Howlett – que analisou a atuação de líderes mundiais na Segunda Guerra Mundial – também é importante que o governo planeje e aja com rapidez durante uma guerra. Por exemplo, cabe ao governo ordenar a imediata construção de centros médicos e a contratação de profissionais da saúde para atender em região próxima a um território que foi bombardeado de forma inesperada.

Para o economista, a atuação rápida do governo é fundamental pois o mercado leva um tempo para atender as demandas causadas por um cenário de guerra. Essa demora pode impactar em perdas materiais e econômicas alarmantes e, até mesmo, na derrota do país no conflito.

Assim, em síntese, a economia de guerra se refere ao protagonismo governamental na condução da economia e à aplicação de medidas econômicas extraordinárias para amenizar os efeitos econômicos prejudiciais de determinado evento excepcional, como, em grande parte dos casos, uma guerra.

Por que o conceito está sendo utilizado em 2020?

Na imagem, mulher com roupas de proteção em laboratório de testes de coronavírus. Conteúdo sobre "economia de guerra"
Foto: Geraldo Bubniak/AEN/Fotos Públicas.

A pandemia causada pelo novo coronavírus tem gerado uma demanda gigantesca por atendimento e aparelhagem médica. Essa demanda tem provocado caos na saúde pública em grande parte dos países do globo.

Embora a quantidade de pessoas contaminadas que precisam de atendimento hospitalar seja baixa em relação ao número total de contaminados, na maioria dos hospitais do mundo não há leitos e estrutura de saúde suficientes para fornecer tratamentos a todos os que necessitam.

Assim, a construção de novos hospitais, a contratação de mais profissionais da saúde, o desenvolvimento e a implantação de testes e remédios, e a produção e compra de mais e melhores equipamentos hospitalares têm sido essenciais.

Além disso, as principais medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para combater o rápido contágio do coronavírus – isto é, o isolamento social, a suspensão de atividades comerciais e o fechamento de fronteiras – têm reduzido o consumo e a oferta de bens e serviços no mundo. Em consequência, milhares de pessoas estão perdendo suas fontes de renda e entrando em situação de vulnerabilidade social.

Desse modo, é também urgente a criação de medidas que auxiliem financeiramente pessoas que perderam suas rendas. Ao mesmo tempo, essas medidas também precisam garantir que empresas e empreendedores não sejam colapsados, de modo que eles possam seguir com suas atividades assim que a pandemia chegar ao fim.

Frente a este cenário de intensa demanda por investimentos em saúde pública e por ajustes econômicos urgentes, líderes de inúmeros países têm encarado a conjuntura como um momento de guerra. Assim, a chamada “economia de guerra” têm sido adotada em várias partes do mundo.

E o que isso significa?

Isso significa que os governos de inúmeros países do mundo estão aumentando seus gastos de maneira acentuada, sempre tendo em vista o enfrentamento do vírus e de suas consequências. Em outras palavras, os gastos públicos estão sendo ampliados para que seja possível disponibilizar uma maior e melhor quantidade de atendimentos médicos aos infectados, buscar possíveis medicações e vacinas e fornecer recursos àqueles que tiveram suas fontes de rendas prejudicadas.

É importante destacar que, como aponta Adriano Biava, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP), não se trata de gastos irresponsáveis, mas sim de gastos de qualidade capazes de garantir a sobrevivência da população.

No caso do Brasil, Biava ainda explica que o aumento de gastos pode se basear, por exemplo, na postergação de certos compromissos do governo, como é o caso da dívida pública. Ou seja, Biava sugere que o pagamento da dívida pública poderá ser atrasada para que haja recursos disponíveis a serem gastos com a contenção do vírus no Brasil. O professor também aponta que se esses recursos não forem suficientes para lidar com a crise, o governo pode tentar complementá-los instituindo a cobrança de tributos temporários a contribuintes de mais alta renda.

Recursos para amenizar o impacto da crise do coronavírus também podem ser arrecadados pela compra de títulos públicos pelo Banco Central, emitidos pelo Tesouro Nacional (instituição federal que controla o fluxo de caixa do governo por meio da arrecadação de impostos e pagamento dos gastos públicos). A compra desses títulos equivale ao Banco Central creditar reservas na conta do Tesouro.

Uma vez captado essas reservas, o Tesouro as destina para os gastos públicos – no caso em questão, o dinheiro será aplicado no sistema de saúde e nos programas de auxílio de renda emergencial. Isso tem sido feito, por exemplo, para que seja possível o pagamento da renda básica emergencial, projeto sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em 1 de abril.

É importante destacar que, em situações normais, esse processo pode gerar um aumento da inflação (aumento acelerado nos preços de bens e serviços). Isso porque, havendo um superaquecimento da economia, as pessoas tendem a gastar mais e pagar mais caro pelos bens. No entanto, neste momento de pandemia, a paralisação da atividade econômica fez com que os gastos da população caíssem expressivamente. Assim, os recursos extras disponibilizados pelo Tesouro irão, na verdade, ajudar a recuperar o fluxo de gastos normais dos brasileiros.

E como a economia de guerra tem sido aplicada em 2020 pelos governos das maiores economias do globo?

Estados Unidos

Nos EUA, o Congresso aprovou um pacote de US$ 2 trilhões (mais de 10 trilhões de reais em 8 de abril) a serem destinados ao combate à pandemia. É o maior pacote aprovado na história do país! Desse montante, US$ 150 bilhões (mais de 775 bilhões de reais) serão destinados ao sistema de saúde. Outros US$ 500 bilhões (quase 3 trilhões de reais) serão utilizados para criação de um fundo de socorro a grandes empresas.

Reino Unido

O governo britânico, por sua vez, articulou uma política emergencial de renda com foco nos trabalhadores autônomos, que pagará o referente a 80% dos vencimentos mensais médios desses trabalhadores nos últimos três anos, com limite de até 2.500 libras por mês (o equivalente a mais de 16 mil reais em 8 de abril).

O primeiro-ministro Boris Johnson também anunciou a liberação de um pacote de 350 bilhões de libras (mais de 2 trilhões de reais) para socorro das empresas.

Alemanha

De forma similar, um pacote de estímulos no valor de 750 bilhões de euros (quase 5 trilhões de reais) foi liberado na Alemanha, sendo que, além disso, empresas e freelancers poderão receber até 15 mil euros (R$ 85,5 mil) em subsídios diretos durante três meses.

Canadá

Já no Canadá, o primeiro ministro Justin Trudeau anunciou a concessão de US$ 18,6 bilhões (quase 100 bilhões de reais em 8 de abril) em ajuda direta para famílias e empresas em dificuldades. Também serão injetados mais US$ 37,6 bilhões na economia através do deferimento de impostos e o governo ainda garantirá o pagamento de 10% dos salários de funcionários de pequenas empresas por um período de três meses.

França

Na França, 45 bilhões de euros (quase 250 bilhões de reais) serão utilizados para amparar empresas e trabalhadores, 300 bilhões de euros (quase 2 trilhões de reais) serão destinados para créditos às empresas e 1 bilhão  de euros (mais de 5 bilhões de reais) serão aplicados como garantias a empréstimos bancários.

E no Brasil, já há uma economia de guerra?

Na imagem, Rodrigo Maia segurando microfone. Conteúdo sobre "economia de guerra"
Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, diz que espera por votação da PEC do Orçamento nas próximas semanas. Foto: Thomaz Silva/Agência Brasil.

Embora não tenha sido declarado uma economia de guerra no Brasil, Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados (DEM-RJ), redigiu o texto da PEC do Orçamento de Guerra.  A PEC tem o objetivo de reduzir o tempo de resposta do governo brasileiro aos problemas decorrentes da pandemia. Para isso, ela cria um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para lidar com período em que durar a crise de calamidade pública.

Com ela, o governo estará autorizado a contrair despesas relacionadas ao combate do vírus e de suas consequências econômicas sem precisar respeitar as regras atuais do Orçamento público. Em síntese, ela determina que o “orçamento de guerra” não precisará cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

A proposta inicial da PEC era a de que o regime extraordinário seria gerenciado por um ‘Comitê de Gestão da Crise’, presidido pelo presidente Jair Bolsonaro e composto por ministros da Secretaria-Geral da Presidência da República, da Saúde, da Economia, da Cidadania, dos Transportes, da Agricultura e Abastecimento, da Justiça e Segurança Pública e da Controladoria-Geral da União.

A ideia era que o Comitê seria responsável por aprovar, criar, eleger, destituir e fiscalizar as ações do governo brasileiro destinadas a auxiliar a economia do país e o sistema de saúde durante a pandemia.

A PEC havia sido aprovada pela Câmara em 3 de abril. Já no Senado, houve a aprovação em primeiro turno no dia 15 de abril e em segundo turno no dia 17 de abril. Contudo, ela retornará para a Câmara, já que o relator no Senado, Antonio Anastasia (PSD-MG), promoveu mudanças no conteúdo do projeto. Essas mudanças foram realizadas pois vários senadores mostraram resistência com a criação do comitê de gestão da crise e com o dispositivo que autoriza o Banco Central a atuar na compra e venda de títulos. 

Vale lembrar que, até então, as principais medidas anunciadas pelo governo na tentativa de minimizar as consequências da pandemia na economia do país, são: um pacote de socorro no valor de R$ 88,2 bilhões destinados a estados e municípios; a liberação de saques do FGTS; a antecipação do 13º salário de aposentados e pensionistas e a concessão de uma renda básica emergencial no valor de R$ 600 reais especialmente para trabalhadores informais, autônomos e desempregados.

A economia de guerra utilizada em 2020 é diferente da que ocorre em períodos de guerra?

A ideia da economia de guerra como aumento do protagonismo do governo no processo econômico e expansão dos gastos públicos vale tanto para o que ocorre em situações de conflitos bélicos, como para o que tem sido aplicado em 2020.

Por exemplo, como mostra as análises do mencionado economista Peter Howlett,o governo britânico foi responsável por mais de 60% de todos os gastos feitos entre os anos de 1941 e 1944 no Reino Unido. Antes do início da Segunda Guerra Mundial, essa participação era de apenas 17,4%. Em tom semelhante, só o pacote de 350 bilhões de euros destinados a auxiliar os empresários britânicos durante a pandemia de coronavírus, corresponde a 15% de todo o PIB do Reino Unido. Isso indica claramente que os gastos do governo britânico com a contenção do vírus têm sido em volume sem precedentes, assim como ocorreu durante a Segunda Guerra.

No entanto, além das diferença mais evidentes – o inimigo não é humano e as linhas de combate não são compostas por soldados, mas sim por profissionais da saúde -, há uma divergência específica relacionada ao processo de “reconversão produtiva”.

O que é a reconversão produtiva e por que ela é diferente agora em 2020?

A reconversão produtiva é o processo em que empresas passam a produzir bens para os quais elas não são destinadas. Por exemplo, uma empresa de motores automobilísticos passa a produzir armamentos.

Esse processo pode se constituir tanto por exigência do governo ou pelo estabelecimento de um acordo com as empresas.

Em uma guerra, a reconversão produtiva geralmente tem como finalidade a produção em larga escala de comida, roupas, armas e munições. Por outro lado, durante a pandemia de covid-19, os governos têm exigido ou acordado com as empresas que passem a produzir equipamentos médico-hospitalares.

Nos EUA, por exemplo, o presidente Donald Trump trouxe de volta, agora em 2020, uma lei de 1950 – a Lei de Produção de Defesa – que autorizava o governo a intervir na indústria com o intuito de reorientar a produção industrial do país em tempos de guerra. Contudo, enquanto o intuito de criação da lei era suprir o país com armamentos e insumos básicos durante a Guerra da Coréia, a intenção do governo norte-americano em evocá-la nos dias atuais tem o objetivo de ampliar a disponibilidade de respiradores e equipamentos hospitalares.

É justamente aí que mora a diferença entre uma economia de guerra aplicada em período de conflito e a economia de guerra usada para conter a pandemia do novo coronavírus: o foco da reconversão produtiva.

A reconversão produtiva no Brasil

No Brasil, até o momento, não houve ainda nenhuma determinação por parte do governo Federal indicando que empresas passem a produzir materiais hospitalares em substituição à suas produções normais.

Contudo, o Legislativo já está analisando propostas como proibição da exportação de produtos médicos e hospitalares essenciais para o combate ao coronavírus. O Congresso inclusive já aprovou o projeto de lei 668/2020, que proíbe a venda de bens como equipamentos de proteção individual de uso na área de saúde (luvas, aventais, óculos de proteção, máscaras e outros), assim como camas hospitalares, monitores multiparâmetros e ventiladores pulmonares mecânicos. O PL, cujo conteúdo deve vigorar somente durante o período de calamidade pública, agora aguarda sanção presidencial.

De qualquer modo, algumas empresas do país já estão levantando esforços, mesmo sem orientação governamental. A Embraer, por exemplo, indústria de fabricação de aeronaves, tem produzido peças para respiradores. Além disso, a Ambev, empresa de cervejas, e o grupo Boticário, que tem foco em produção de cosméticos, estão empenhados em fabricar álcool em gel.

Por ora, resta acompanhar qual será o efeito dessas ações na contenção do vírus no Brasil, assim como as próximas medidas do governo brasileiro e de outros países a fim de reduzir o impacto desastroso do covid-19 na economia e na saúde de suas nações.

E, então, qual a sua opinião sobre essas medidas? Compartilha com a gente nos comentários! 

REFERÊNCIAS

Brasil Econômico: Falta de acordo adia votação do Orçamento de Guerra no Senado

Exame: Entenda ponto-a-ponto o que é a PEC do Orçamento de Guerra

Exame: Grupo Boticário doa 216 toneladas de itens de higiene

Folha: “Governos devem gastar como na guerra”, diz economista do FMI

Gazeta do Povo: Analistas defendem “regime de guerra” para evitar catástrofe na saúde e na economia

G1: Entramos em economia de guerra

Nexo Jornal: Por que a pandemia evoca uma economia de guerra

O Globo: Governo britânico anuncia socorro de 350 bilhões de libras a empresas

O Globo: Trump usa lei de guerra para obrigar General Motors fabricar respiradores

Peter Howlett: “The war-time economy, 1939–1945”

Portal Embraer: Embraer colabora com tecnologia e soluções para combate ao covid 19

Philippe Le Billon: “The Political Economy of War: An Annotated Bibliography”

UOL: França anuncia ajuda de 45 bilhões de euros para empresas e trabalhadores

Valor Econômico: Canadá anuncia pacote de US$ 18,6 bilhões em ajuda para empresas e famílias

Valor Investe: De onde vem o dinheiro para o auxílio emergencial de R$ 600?

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Conteúdo escrito por:
Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e mestre em Política Internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Acredita no potencial da política em transformar realidades e sonha com uma sociedade em que os recursos disponíveis sejam distribuídos de maneira mais igualitária.
Crema, Gabriella. Economia de guerra: por que estamos falando disso?. Politize!, 17 de abril, 2020
Disponível em: https://www.politize.com.br/economia-de-guerra-e-coronavirus/.
Acesso em: 23 de nov, 2024.

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