Como comentamos em nosso texto anterior, o Brasil possui uma grande população infantil e, na tentativa de protegê-la, conta com uma série de direitos na legislação nacional.
Contudo, de nada valem esses direitos se não forem sentidos de forma prática na vida das crianças e dos adolescentes no país. E no contexto nacional, de acordo com a pesquisa Pobreza na Infância e na Adolescência, elaborada pelo UNICEF em 2018, quase 40% das crianças de até 5 anos não têm acesso a algum dos seus direitos básicos.
O número é ainda pior no caso dos adolescentes entre 14 e 16 anos, chegando a até 60%. Isso significa que medidas e políticas públicas de efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes são de grande relevância para a proteção desse grupo.
Sendo assim, um dos principais órgãos que busca justamente essa efetivação de direitos é o Conselho Tutelar, criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Por isso, neste texto do Equidade vamos abordar sobre o que é esse órgão, como ele funciona e qual a sua importância.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, a Civicus e o Instituto Mattos Filho voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender o que é o Conselho Tutelar e qual a sua função? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
A origem do Conselho Tutelar
Para entendermos sobre o Conselho Tutelar, é importante sabermos sobre a sua história e os motivos que levaram ao seu surgimento, ocorrido somente após a redemocratização do país, em 1985.
Nesse período, o contexto nacional se mostrava favorável ao fortalecimento de pautas relacionadas aos direitos humanos, entre elas, a preocupação com a infância e a adolescência. Essa preocupação foi materializada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe dispositivos de proteção aos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes.
Isso porque, até então no século XX, o tratamento e a proteção estatal para esse grupo se dava de forma rígida, por meio do Código de Menores (1926) e instituições como o Serviço de Assistência a Menores (SAM) e a Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM).
Assim, as crianças e adolescentes não eram reconhecidos como indivíduos portadores de direitos especiais, sendo que o Estado tinha um olhar de tutela sobre eles, e não de amparo integral. Com isso, a abordagem para lidar com questões da infância e adolescência era baseada em aspectos de correção, repressão e assistencialismo, sem foco na garantia de direitos fundamentais.
Nesse sentido, a busca pelo bem-estar desses indivíduos no país estava centrada em práticas punitivistas, em que eles eram vistos como “menores” e que necessitavam do controle para a manutenção da ordem e dos “bons costumes”.
O resultado dessas políticas de repressão, como aponta a professora em direito Andréa Rodrigues Amin (2019), foi o encarceramento em massa de jovens de baixa renda das periferias. Além disso, um dos métodos de ressocialização de instituições como a FEBEM incluía o trabalho para jovens infratores.
Sendo assim, uma conscientização sobre a questão infantil ocorreu somente com a redemocratização, quando as medidas repressivas a esse grupo passaram a ser vistas como incompatíveis com o seu pleno desenvolvimento.
Nesse contexto, é elaborado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, que inovou ao proporcionar uma política de proteção integral a todas as crianças e adolescentes do país.
Dessa forma, com o objetivo de assegurar um desenvolvimento harmonioso e sadio para esses indivíduos, em condições de liberdade e dignidade, o ECA estabelece a criação do Conselho Tutelar.
E o que é o Conselho Tutelar?
O ECA declara o surgimento e a definição do Conselho Tutelar em seu artigo 131 que expressa:
“O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei.”
Para simplificar, o Conselho Tutelar é um órgão público que tem como atribuição garantir o respeito aos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil, não tendo autoridade para julgar juridicamente.
Nesse sentido, a sua missão institucional é representar a sociedade na defesa dos direitos da população infantil no país, como o direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à liberdade, à cultura, à convivência familiar e comunitária, entre outros.
Para atingir esse objetivo maior, o Conselho Tutelar atua de maneira independente e é formado por no mínimo 5 membros, escolhidos pela comunidade local, para exercerem seus mandatos por 3 anos. Isso porque o conselho atua na esfera municipal, sendo obrigatório em todos os municípios do país, independentemente do número de habitantes.
Isso significa que o conselho aproxima a voz da comunidade com o poder público, fortalecendo práticas democráticas de participação. Pois, o órgão serve como um instrumento de fiscalização e prevenção de situações de risco para crianças e adolescentes.
Contudo, como citado anteriormente, o Conselho Tutelar não tem autoridade jurídica, ou seja, não tem capacidade para aplicar medidas punitivas contra violadores dos direitos das crianças e adolescentes, como, por exemplo, multas e penas.
Mas então, qual exatamente é a função do conselho? É o que entenderemos melhor a seguir.
O que faz o Conselho Tutelar?
A função do conselho também é determinada pelo ECA, por meio do seu artigo 136. Nele, expressa-se atribuições como atendimentos a crianças e adolescentes, aconselhamento a seus familiares, requisitar serviços públicos na área da saúde, educação, serviços sociais, previdência, trabalho e segurança, entre outros.
Além disso, uma função do Conselho Tutelar é encaminhar ao Ministério Público e à autoridade judiciária os casos de sua competência, como infração penal ou administrativa contra os direitos das crianças e dos adolescentes.
Sendo assim, ressalta-se que o órgão deve ser acionado em qualquer situação de ameaça ou violação de direitos das crianças e dos adolescentes. Por ser municipal, cada cidade possui o seu Conselho Tutelar e o seu número para acioná-lo, mas em todo o Brasil é possível contatá-lo por meio do Disque 100 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).
Outro importante aspecto das atribuições do conselho é em relação ao atendimento e aconselhamento aos pais e responsáveis. Como a família é a primeira e mais relevante instituição para prover as necessidades básicas das crianças, o órgão deve agir em casos de omissão, negligência, maus-tratos ou insuficiência de recursos para garantir o interesse das crianças e adolescentes.
Nesse sentido, o Conselho Tutelar busca fortalecer e reordenar o ambiente familiar, eliminando qualquer situação de risco e vulnerabilidade para crianças e adolescentes. Sendo que o descumprimento injustificado das deliberações do conselho é previsto como crime, conforme o artigo 236 do ECA.
Dessa forma, para resumir as suas ações, podemos dizer que o órgão:
- Preza pelo bem-estar da infância e da adolescência;
- Faz o acompanhamento de crianças e adolescentes em emergências hospitalares;
- Em casos de infrações, acompanha as ações policiais;
- Combate a evasão escolar;
- Fiscaliza e acompanha instituições de abrigo infantil.
A importância do Conselho Tutelar para a infância e adolescência
Bem, em conformidade com o que foi exposto sobre o que é esse órgão e qual a sua função, pode-se dizer que o Conselho Tutelar representa um avanço nas políticas públicas para o cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil.
Isso significa que o órgão é um importante agente na prevenção, fiscalização e garantia desses direitos, integrando uma rede de apoio social e afetiva que tem a capacidade de prover auxílio psicológico, emocional, material e informativo às crianças e adolescentes e aos familiares.
Assim, o conselho consegue influenciar de maneira direta, ou indireta, o comportamento e a situação dos familiares e responsáveis e das crianças e adolescentes, tanto no ambiente familiar, como fora dele. Como consequência, acaba impactando positivamente no desenvolvimento de todas as pessoas envolvidas nos cuidados desse grupo.
Sendo assim, vamos ver alguns dados e números em relação à ação do Conselho Tutelar na defesa dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes no país.
Os dados do Conselho Tutelar no Brasil
Conforme aponta a CNN, com base em dados do MMFDH, o Disque 100 (responsável por acionar o Conselho Tutelar em âmbito nacional) registrou mais de 50 mil denúncias de maus tratos contra crianças e adolescentes no primeiro semestre de 2021.
Desse total, cerca de 81% dos casos ocorreram dentro da própria casa da vítima, ou seja, realizados por familiares ou responsáveis. Das violações perpetradas no convívio familiar, 93% foram contra a integridade física ou psíquica da vítima, sendo que 70% delas ocorriam com uma frequência diária.
Outro aspecto de grande impacto é a violência sexual. Também de acordo com o MMFDH, o Disque 100 teve mais de 6 mil denúncias de abuso, estupro e exploração sexual contra crianças e adolescentes no primeiro semestre de 2021.
Além disso, quando olhamos para todas as violações de direitos das crianças e dos adolescentes no país, os números do Disque 100 corresponderam a mais de 153 mil denúncias no ano de 2020.
Todos esses números demonstram a relevância do Conselho Tutelar como canal de detecção e atendimento no que diz respeito a crimes praticados contra crianças e adolescentes no país.
No mais, ressalta-se que por ser um órgão de nível municipal, é provável que o número de registros em nível nacional captado pelo Disque 100 não corresponda à realidade de todas as violações perpetradas em todas as cidades do país.
Conclusão
O Estatuto da Criança e do Adolescente inaugurou uma série de mudanças no tratamento e na abordagem estatal em relação à proteção das crianças e dos adolescentes no país.
Dentre essas mudanças, destaca-se a implementação de entidades de atendimento que visam garantir a implementação dos direitos voltados à infância e à adolescência, como o Conselho Tutelar.
Com isso, o Estado brasileiro consegue ter um mecanismo público que reforça os avanços legislativos dos direitos das crianças e dos adolescentes, fundamentados na sua proteção integral. Assim, as providências tomadas pelo Conselho Tutelar impactam em matéria de saúde, discriminação, violência, educação, entre outros.
Dessa forma, o Conselho Tutelar contribui na aplicação de políticas que visam a inclusão social desse grupo, fornecendo as ferramentas necessárias para que tenham o seu desenvolvimento humano completo.
Isso porque, como os dados trazidos anteriormente indicam, a realidade de milhares de crianças e adolescentes no Brasil ainda é de violação dos seus direitos e de abuso em relação às suas condições.
Na verdade, o abuso e a exploração infantil são um problema que persiste em nossa sociedade e desrespeita a dignidade desses indivíduos. Por isso, não perca o próximo texto do Equidade, em que vamos falar sobre abuso infantil e a exploração de crianças e adolescentes.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos das Crianças e dos Adolescentes“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Anna Paula Jacob Gimenez
Bárbara Correia Florêncio Silva
Caroline Sayuri Ogata Graells
Eduardo de Rê
Giovanna de Cristofaro
Mariana Dragone Pires
Mariana Scofano Martins
Fontes:
2- AMIN, Andréa. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, Katia (coord). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2019. 1308. 12. ed. Parte I. Disponível em: <https://www.google.com.br/books/edition/Curso_de_Direito_da_Crian%C3%A7a_e_do_Adoles/s9NiDwAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=Evolu%C3%A7%C3%A3o+hist%C3%B3rica+do+direito+da+crian%C3%A7a+e+do+adolescente+-+Andr%C3%A9a+Rodrigues+Amin&pg=PT58&printsec=frontcover>. Acesso em 08 de novembro de. 2021.
3- BULHÕES, Raquel. Criação e Trajetória do Conselho Tutelar no Brasil. Lex Humana, nº 1, p. 110, 2010.
4- Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), 1990.
5- MIRANDA, Humberto. A FEBEM, o Código de Menores e a “Pedagogia do Trabalho”. Projeto História, São Paulo, nº 55, p. 45-77, 2016.
6- PASE, Hemerson et al. O Conselho Tutelar e as políticas públicas para crianças e adolescentes. Cad. EBAPE.BR – FGV EBAPE, vol. 18, nº 4, 2020.
7- RESENDE, Isabelle. Brasil registra 50 mil denúncias de maus tratos a crianças e adolescentes. CNN Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil-registra-50-mil-denuncias-de-maus-tratos-a-criancas-e-adolescentes/>. Acesso em: 09 de novembro de 2021.
8- TAVARES, Patrícia. O Conselho Tutelar. In: MACIEL, Kátia (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: Aspectos Práticos e Teóricos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 4ª ed. p. 375-413, 2010. Disponível em: <https://www.academia.edu/9770537/CURSO_DE_DIREITO_DA_CRIAN%C3%87A_E_DO_ADOLESCENTE>. Acesso em: 08 de novembro de 2021.