No Brasil, segundo a Fundação Cultural Palmares, existem 3.447 comunidades quilombolas distribuídas por todas as regiões. Os quilombolas são os remanescentes de um grupo étnico-racial formado por descendentes de escravos fugitivos durante o período da escravidão no país entre outros grupos que viviam nos chamados quilombos.
Os quilombolas possuem uma identidade própria, que forma a base das suas organizações sociais e culturais construídas historicamente. Por isso, essas comunidades se diferenciam do restante da sociedade.
Por muito tempo os quilombolas sofreram com a discriminação e o não reconhecimento de suas cidadanias. No entanto, hoje essas comunidades possuem a sua identidade étnica juridicamente reconhecida, assim como a garantia de posse de suas terras, graças aos direitos dos quilombolas, conquistados somente no século XX.
Mas você sabe quais são os direitos dos quilombolas e para que eles servem? É sobre isso que vamos falar neste texto do Equidade.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre os direitos dos quilombolas no Brasil? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
A origem dos quilombos
As comunidades quilombolas foram estabelecidas no Brasil durante o processo de ocupação do território nacional por colonizadores europeus, no decorrer do período de colonização (1500-1822).
Esse período foi marcado pela exploração e escravização dos povos nativos (indígenas) e afrodescendentes. Estes eram trazidos das colônias africanas ao Brasil pelos colonizadores.
A degradante situação às quais os negros e indígenas eram submetidos geravam, muitas vezes, revoltas por parte desses grupos. Entre as formas de resistência e reivindicação de condições de vida dignas estava o agrupamento de escravizados que fugiam dos seus senhores.
Esses agrupamentos foram denominados de quilombos, ou mocambos, e muitos deles conseguiram agregar centenas e até milhares de pessoas.
Os quilombos representavam a ocupação de terras para a formação de uma organização social contrária ao sistema colonial.
Nesse sentido, os quilombos se caracterizam não apenas pelo isolamento e a fuga dos escravos, mas também pela sua autonomia e a reprodução de modelos sociais e políticos mais próximos às vivências experimentadas em África. Internamente reproduziam a sua própria economia, centrada na policultura (produção agrícola diversa), com a finalidade do bem-estar de toda a comunidade.
O maior e mais famoso quilombo existente durante a colonização do Brasil foi o quilombo de Palmares, localizado entre Alagoas e Pernambuco.
Estima-se que esse quilombo, que teve entre suas lideranças Zumbi dos Palmares, existiu entre o final do século XVI e o fim do século XVII, e recebeu cerca de 20 mil pessoas.
O quilombo dos Palmares era também uma organização política e militar. Vários conflitos e ataques aos engenhos eram executados por seus membros com o objetivo de libertar mais pessoas e conseguir recursos e suprimentos para a subsistência da comunidade.
Por isso, Palmares era tido como uma grande ameaça pelos colonizadores e senhores de engenho.
Além de Palmares, outros importantes quilombos desse período merecem destaque. Como o quilombo Buraco de Tatu, localizado próximo à cidade de Salvador, sendo considerado um dos mais conhecidos da Bahia.
Estima-se que centenas de pessoas viviam nesse quilombo. E como o quilombo do Urubu, famoso por ter sido liderado por uma mulher, Zeferina. Localizado também na Bahia, não há uma estimativa da quantidade de pessoas que habitavam esse quilombo.
Os quilombos e o fim da escravidão
Com a abolição da escravidão no Brasil, em 1888, por meio da Lei Áurea, as comunidades quilombolas passaram a ter a sua liberdade garantida. No entanto, os negros no país continuaram sendo desqualificados e os lugares em que habitavam, como os quilombos, continuaram sendo ignorados pelo poder público.
A primeira Lei de Terras, por exemplo, datada de 1850 mas que continuou em vigor após a abolição, excluía os africanos e seus descendentes da categoria de brasileiros.
Consequentemente, impossibilitava a posse e aquisição de terras por parte dos negros. Dessa forma, não havia políticas de inserção dos negros e quilombolas na sociedade, gerando desigualdades raciais nos aspectos sociais, políticos e econômicos.
Mesmo com a conquista de certos direitos fundamentais na Constituição de 1934 e em constituições seguintes – como o reconhecimento da cidadania e o direito ao voto aos negros -a questão da demarcação de terras era desconsiderada pelo Estado.
Dessa forma, as comunidades quilombolas ainda existentes no país, que ocupavam efetivamente as terras, não tinham garantias jurídicas em relação às suas propriedades.
Com isso, as comunidades de quilombos tiveram que lutar para permanecerem em suas terras e garantirem a sobrevivência dos seus modos de vida.
Um exemplo foi o caso do quilombo Santa Rita do Bracuí, no Rio de Janeiro, que começou a ter suas terras forçosamente desapropriadas e ameaçadas a partir da década de 1960, quando uma empreiteira decidiu adquirir as terras para realizar obras de construção civil no local.
Assim, demarcação e a proteção de terras quilombolas passaram a ser pautas cada vez mais presentes e urgentes nas reivindicações dos movimentos sociais negros do país.
O resultado das reivindicações pelos direitos dos quilombolas vieram somente após a redemocratização do país, em 1985.
A Constituição de 1988 e os direitos quilombolas
A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, por meio do seu artigo 68, houve o reconhecimento da propriedade das terras dos remanescentes das comunidades quilombolas no Brasil.
Foi a primeira constituição a garantir os direitos dos quilombolas em ter as suas terras e organizações preservadas por lei. Conforme o artigo: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Esse reconhecimento é visto como uma forma de compensação e/ou reparação histórica à opressão sofrida por essas comunidades na defesa de suas culturas e identidades étnicas.
A Constituição cria a obrigação ao Estado brasileiro em formular políticas públicas de proteção aos quilombolas, como a delimitação, demarcação e titulação de suas terras.
Os artigos 215 e 216 também promovem os direitos dos quilombolas. Pois garantem o pleno exercício dos seus direitos culturais e sociais, ao entender a cultura como uma forma de criar, fazer e viver das comunidades tradicionais.
Dessa forma, há o reconhecimento dos quilombos como uma forma de organização social com características próprias no uso das terras, em razão dos seus costumes, tradições e condições sociais que diferenciam esses grupos dos demais existentes na comunidade nacional.
Além disso, no ano de 2003 foi elaborado o Decreto nº 4.887, que visa garantir, além da posse de terras, uma melhor qualidade de vida aos quilombolas. O documento dispõe sobre o direito desses povos em ter acesso a serviços essenciais como educação, saúde e saneamento.
Também trata sobre a regulamentação da titulação das terras dos quilombolas e pode ser considerado um marco para os direitos dos quilombolas por reconhecer o direito de auto-atribuição desse grupo étnico-racial.
O Decreto gerou discussões no mundo jurídico e legislativo sobre a sua validade. Até que em 2018, o Supremo Tribunal Federal garantiu por maioria dos votos a constitucionalidade do Decreto.
A realidade atual dos quilombolas no Brasil
Mesmo com as disposições legais conquistadas nos últimos anos, a realidade prática das comunidades quilombolas ainda é de luta e resistência pela garantia dos seus direitos.
Em relação à violência contra esses povos, segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais (Conaq) e a ONG Terra de Direitos, houve um aumento de 350% no número de quilombolas assassinados entre 2016 e 2017.
Nos assassinatos ocorridos entre 2008 e 2017, em aproximadamente 76% dos casos não foi descoberto o agente violador, indicando que as mortes de quilombolas não são efetivamente investigadas pelo poder público.
No âmbito da saúde, devido às distâncias e a dispersão populacional das comunidades, em geral os quilombolas encontram dificuldade de acesso aos serviços de saúde.
De acordo com o Ministério da Saúde, apenas 32,8% dos domicílios rurais dos quilombolas estão ligados à rede de distribuição de água, enquanto que 67,2% dessa população capta água de chafarizes e poços. O que demonstra que os serviços de saneamento oferecidos aos quilombos apresentam um déficit de cobertura.
Outro fator importante em relação à saúde dos quilombolas refere-se ao uso de agrotóxicos. Também segundo o Ministério da Saúde, cerca de 21,3% dos locais que utilizam agrotóxicos não fazem uso de equipamentos de proteção individual. Sendo que mais de 25 mil pessoas declararam estar intoxicadas.
Além disso, por esses povos, muitas vezes isolados, vivenciarem invasões em seus territórios e terem menos acesso aos serviços de saúde, encontram-se em situação de mais vulnerabilidade na pandemia de Covid-19.
De acordo com monitoramento autônomo desenvolvido pela Conaq, foram diagnosticados 4.646 casos confirmados e 169 mortes devido ao novo coronavírus até 24 de novembro de 2020.
Conclusão
Os direitos dos quilombolas podem ser interpretados como o direito de existir e viver a partir do modo de vida próprio desses grupos.
A Constituição de 1988 foi um divisor de águas nesse sentido, pois possibilitou o processo de regularização das terras de quilombos. Fazendo com que atualmente a preservação das suas culturas, costumes e tradições seja garantida como um direito fundamental dos povos quilombolas.
A conquista desses direitos representa uma vitória a esse grupo étnico-racial que por muito tempo sofreu não apenas com a escravidão, mas com as perseguições e invasões às suas terras.
Mas sabemos que a realidade dos remanescentes de quilombos ainda não é a ideal. Cabe ao Estado concretizar o direito à propriedade dessas comunidades, mas a luta contra expropriações de terras ainda se faz presente em suas vidas.
A violência e violação de direitos contra esses povos é um problema a ser enfrentado. Aliás, não apenas em relação aos quilombolas, mas em relação a outros povos e grupos étnico-raciais, como os indígenas.
Esse será o assunto do nosso próximo texto, em que vamos falar sobre os direitos indígenas no Brasil, não deixe de conferir.
*Agradecimentos especiais à Deise Maria de Lima, revisora do texto.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos Étnico-raciais“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Eduardo de Rê
Isabela Campos Vidigal Takahashi de Siqueira
Julia Reis Romualdo
João Pedro de Faria Valentim
Leonardo Gabriel Reyes Alves da Paes
Fontes:
2- CALDAS, Andressa; GARCIA, Luciana. Direito à terra das comunidades remanescentes de quilombos: o longo e tortuoso caminho da titulação. Justiça Global, 2007. Disponível em: <http://www.global.org.br/blog/direito-a-terra-das-comunidades-remanescentes-de-quilombos-o-longo-e-tortuoso-caminho-da-titulacao/>. Acesso em: 18 de março de 2021.
3- GOMES, Lilian. O direito quilombola e a democracia no Brasil. Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 199, p. 303-320, jul/set. 2003.
4- LEITE, Ilka. Os Quilombos no Brasil: Questões Conceituais e Normativas. Etnográfica, vol. IV (2), p. 333-354, 2000.
5- REIS, João. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo (28), p. 14-39, dezembro/fevereiro 1995/1996.
6- SÁ, Caroline; AMARAL, Sérgio. As comunidades quilombolas no Brasil. III Encontro de Iniciação Científica e II Encontro de extensão Universitária, vol. 3, nº 3, 2007. Disponível em: <http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/view/1429/1365>. Acesso em: 18 de março de 2021.
7- SANTOS, Viviane. Zeferina: o conto de uma quilombola. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Relatório da produção do material didático apresentado ao Programa de Mestrado Profissional em História da África, 2019. Disponível em: <https://www.ufrb.edu.br/mphistoria/images/Relat%C3%B3rio_final_1_Viviane.pdf>. Acesso em: 26 de março de 2021
8- SILVA, Daniel Neves. Quilombo dos Palmares. Brasil Escola. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/historiab/quilombo-dos-palmares.htm>. Acesso em: 17 de março de 2021.
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10- SCHWARTZ, Stuart. Mocambos, Quilombos e Palmares: A Resistência Escrava no Brasil Colonial. Estudos Econômicos, São Paulo, vol. 17, nº Especial, p. 61-88, 1987.