Se por anos você fosse socialmente colocado em uma situação de inferioridade, não tendo acesso a serviços e direitos econômicos, políticos e sociais da sociedade, você provavelmente teria dificuldades para ter uma boa condição de vida, não é mesmo?
Até porque, o presente é apenas o produto do passado e, por isso, é importante olharmos para a história para entender a realidade atual. Dessa forma, para entendermos o lugar e a situação das mulheres na sociedade atual, precisamos passar pela história dos direitos das mulheres.
Assim, conseguiremos compreender a formação da sua identidade enquanto grupo social e as suas posições em contextos econômicos, sociais, políticos e culturais.
Dessa forma, neste texto iremos abordar a realidade vivenciada pelas mulheres ao longo da história, buscando elementos que justifiquem o papel da mulher nos dias de hoje.
Assim como grande parte dos direitos conquistados na humanidade – inclusive os Direitos Humanos – o reconhecimento dos direitos das mulheres é fruto de um longo processo histórico.
Por muitos séculos as mulheres, nas mais variadas realidades sociais, viveram submetidas a uma posição de controle, longe do espaço público e sem condições para exigir tratamento digno.
A história das mulheres não se resume apenas à opressão a que eram e ainda são submetidas, mas diz respeito às lutas e resistência que realizaram para desconstruir os preconceitos e as discriminações sofridas. E é de um pouco destes desafios e conquistas que traremos nesse texto do projeto Equidade.
O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender e conhecer a história dos direitos das mulheres? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
A realidade das mulheres em tempos antigos
Para entender a trajetória dos direitos das mulheres ao longo do tempo, vamos iniciar o panorama histórico falando sobre o contexto e as experiências das mulheres em tempos antigos, como nas civilizações grega e egípcia e na Idade Média.
Marc Bloch, importante historiador francês do século XX, definiu a história como a ciência dos homens no tempo. Nesse sentido, vamos analisar de maneira breve a ciência das mulheres no tempo, a fim de conhecer a perspectiva feminina da história, que, afinal, é de todos nós.
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Antiguidade Clássica
Na Antiguidade (4000 a.C – 476 d.C), em sociedades como a egípcia, as mulheres não tinham acesso à escrita. Isso significa que as mulheres eram marginalizadas do processo de documentação e produção de conhecimento.
Uma das principais funções sociais das mulheres no Egito antigo era a constituição da família, sendo que elas eram, muitas vezes, vendidas sem direito de escolha, para que casamentos fossem formados.
A situação e o status das mulheres na Grécia antiga também não era muito diferente. Elas não podiam participar dos debates políticos e públicos da sociedade, não tinham acesso à educação na infância e concentravam os seus trabalhos no ambiente doméstico.
Além disso, dependendo de suas condições econômicas e sociais, era muito comum serem submetidas à escravidão (como no caso da maioria das imigrantes) e/ou à prostituição.
Idade Média
Já na Europa, durante a Idade Média (476 – 1453) as mulheres começaram a exercer outros papéis dentro da sociedade. Além dos afazeres domésticos e do artesanato, que não envolvia apenas a confecção de tecidos, mas a fabricação de cosméticos, pentes e artigos de luxo, as mulheres da nobreza também administravam propriedades como senhoras feudais.
Na França, entre 1152 e 1284, na região de Champagne, estima-se que dos 279 possuidores de terras, 58 eram mulheres. O número pode não ser expressivo, mas até então em grande parte das sociedades medievais as mulheres não podiam ter o domínio de uma propriedade.
Mesmo assim, do ponto de vista jurídico isso só acontecia com a permissão dos homens, pois as mulheres não possuíam direitos políticos e eram dependentes dos homens para ter participação na sociedade.
No Livre Roisin, por exemplo, documento que continha os costumes jurídicos da cidade de Lille (França), escrito no século XIII, as mulheres eram subordinadas aos maridos que eram seus representantes perante a justiça.
O período medieval europeu também foi marcado pela grande influência e poder da Igreja Católica na sociedade. Com isso, interpretações que divergiam daquilo que a Igreja determinava eram consideradas heresias e tidas como inaceitáveis.
As mulheres sofreram muitas perseguições causadas por esse movimento, que ficou conhecido como a Inquisição.
Rituais ou atitudes feitas por mulheres que divergiam dos ritos estabelecidos pela Igreja eram apontados como bruxaria e, como condenação, muitas delas eram queimadas vivas.
Comportamentos como atos sexuais fora do matrimônio também eram vistos como “desviantes” de Deus e quem os cometia sofria punições.
Isso significa que nessa época os direitos das mulheres ainda eram nulos. Foi apenas muitos anos mais tarde que esses direitos começaram a ser reivindicados, ganhando corpo somente na Idade Contemporânea (1789 – hoje). Essa origem é o que veremos a seguir.
A origem e a evolução dos direitos das mulheres
Os primeiros elementos que mais tarde iriam guiar o que conhecemos como os direitos das mulheres no Ocidente surgem somente após Idade Moderna (1453 – 1789). Mais precisamente após a Revolução Francesa eclodir, em 1789, exigindo por liberdade, igualdade e fraternidade.
O evento é um marco para o que passamos a conhecer como Direitos Humanos e, como consequência, diversos questionamentos em relação aos direitos civis e políticos da humanidade começaram a ser debatidos. Entretanto, a Revolução não resultou em nenhum direito específico para as mulheres.
Como um efeito desse contexto, em Londres no ano de 1792, Mary Wollstonecraft publica a sua obra Reivindicação dos Direitos da Mulher, como uma resposta à Constituição Francesa elaborada em 1791, que excluía as mulheres da categoria de cidadãs.
Além disso, o documento denunciava a proibição do acesso das mulheres a direitos básicos, como educação formal, e criticava a condição de opressão em que as mulheres viviam na sociedade da época.
Além de Wollstonecraft, o período também é marcado pelas ideias de sua contemporânea francesa Olympe de Gouges, que foi muito influenciada pelas ideias iluministas de luta por igualdade.
Ela foi a responsável por publicar na França a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em 1791, como uma contraproposta da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada após a Revolução Francesa.
Sua crítica era a utilização da palavra “homem” como sinônimo de “humanidade” e exigia que as mulheres e homens tivessem igualdade de direitos em relação à propriedade privada, aos cargos públicos, à herança, à educação, entre outros.
Ambas as personagens históricas e as suas lutas foram importantes para que as mulheres tivessem uma voz política e exigissem seus direitos. No entanto, foi somente 1893, em uma colônia no sul da Austrália, atual Nova Zelândia, que pela primeira vez na história as mulheres ganharam o direito ao voto, por meio do Ato Eleitoral de 1893.
O documento é tido como o marco inicial dos direitos políticos das mulheres no mundo, servindo de exemplo para os outros países.
Impulsionadas por essas reivindicações, em Nova York cerca de 15 mil mulheres organizaram uma marcha em 1908 exigindo melhores salários e o direito ao voto, o que resultou na determinação do Dia Nacional da Mulher nos EUA, no ano seguinte.
No mesmo sentido, em 1910, na Conferência Internacional das Mulheres Socialistas foi aprovado o estabelecimento do Dia Internacional da Mulher, a ser celebrado no dia 19 de março.
Entretanto, em 1911, por pressão política das mulheres russas que reivindicaram o Dia Internacional da Mulher no dia 8 de março na Rússia, bem como em outras regiões como Áustria, Dinamarca e Alemanha, a data foi alterada e perdura mundialmente até hoje, sendo reconhecida como um dia de conscientização da luta das mulheres por direitos.
Mesmo assim, apesar de todos esses movimentos, os direitos das mulheres só ganharam força no cenário internacional na segunda metade do século XX, após as intensas guerras travadas na Europa.
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Os direitos das mulheres em um patamar global
Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os países europeus estavam arrasados com as destruições e os danos causados em seus territórios e populações.
O mundo todo estava impactado e abalado com as grandes violações de Direitos Humanos cometidas, além de todas as suas consequências negativas. Diante disso, diversas nações se uniram, incluindo o Brasil, e fundaram a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, com a assinatura da Carta das Nações Unidas.
A organização nasce com o objetivo de estabelecer a paz e a segurança mundial, servindo como um órgão mundial com o objetivo de solucionar os conflitos e divergências entre os países de maneira pacífica e diplomática.
Nesse sentido, a ONU elabora a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, reconhecendo o caráter universal dos Direitos Humanos, em que todas as pessoas do mundo, sem exceção, devem ter direitos fundamentais garantidos para viver uma vida digna.
Assim nasce o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, sendo considerado um marco no direito internacional pela proteção da dignidade da pessoa humana na busca pela igualdade entre todos.
Porém, apesar da amplitude dos Direitos Humanos, a comunidade internacional, principalmente por pressão de movimentos de mulheres no mundo, que possuíam vozes poderosas como Eleanor Roosevelt, tomou consciência de que era preciso estabelecer direitos específicos para as mulheres.
Na Declaração Universal, pouco é citado sobre questões envolvendo gênero e na primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada no México em 1975, foi discutido que não era possível nem justo tratar um grupo que historicamente foi oprimido e subjugado da mesma maneira que o grupo que sempre foi dominante e privilegiado, nesse caso, os homens.
Isto é, a crítica partia da ideia de que os direitos internacionais dos Direitos Humanos estabelecidos não conseguiam suprir de maneira adequada às necessidades das mulheres ao redor do mundo, que ainda sofriam com a desigualdade de gênero e discriminações.
O primeiro tratado internacional dos direitos das mulheres
A consequência da discussão foi a promulgação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em 1979, pela ONU. A Convenção é um marco na história dos direitos das mulheres.
Ela foi o primeiro tratado internacional responsável por determinar que os Estados membros da ONU devem tomar ações na promoção da igualdade de gênero e no combate às violações dos direitos das mulheres, com o objetivo de eliminar a discriminação e práticas que estejam baseadas na ideia da inferioridade de gênero ao redor do mundo.
Assim, nasce o mais importante instrumento internacional para a proteção dos Direitos Humanos das mulheres, evidenciando a necessidade de extinguir toda e qualquer discriminação contra a mulher. Em seu artigo 1º o documento expressa que:
“discriminação contra a mulher significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”.
Além disso, o documento influenciou o surgimento de outros documentos e conferências internacionais que envolvem questões de gênero, assim como os direitos das mulheres no Brasil. Falamos sobre isso aqui no Equidade e você pode conferir para saber mais.
Conclusão
Ao repassar, mesmo que de maneira sucinta, a história dos direitos das mulheres, é possível perceber um pouco a realidade e o contexto de vida que as mulheres tiveram ao longo do tempo.
A subordinação de gênero fica nítida especialmente nas civilizações antigas e medievais do ocidente em que as relações sociais, políticas e econômicas muitas vezes se davam com base nas concepções sociais a respeito de características físicas dos indivíduos, em que predominava, por exemplo, a popularmente chamada “lei do mais forte”, impondo às mulheres a responsabilidade pelas atividades domésticas e matrimoniais.
Assim, por muito tempo as mulheres viveram em condições de inferioridade na sociedade, não possuindo acesso aos mais básicos direitos por não ter o reconhecimento de sua cidadania.
A conquista da igualdade de direitos exigiu e segue exigindo muita luta e reivindicação. Conforme o argumento para que a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher fosse elaborada, temos que reconhecer que para que a equidade seja estabelecida é preciso favorecer grupos excluídos historicamente em comparação aos não excluídos.
Pois, tratar o desigual de maneira igual pode contribuir para alimentar a desigualdade existente.
Toda a estrutura social, econômica e política construída com base em injustiças ao longo da história não consegue ser desconstruída sozinha.
Ainda há um enorme caminho a ser trilhado para que na prática a igualdade de direitos entre homens e mulheres seja efetivamente implementada. Por isso, como cidadãos devemos exigir que os direitos das mulheres conquistados até hoje sejam garantidos.
O projeto Equidade nasce justamente com esse objetivo, de poder colaborar com uma sociedade menos desigual por meio da divulgação de conteúdos que envolvem os Direitos Humanos.
E agora que você aprendeu um pouco sobre a história dos direitos das mulheres, você pode conferir o nosso texto sobre o sistema ONU e as questões de gênero, para saber mais sobre como os direitos das mulheres funcionam e são aplicados no Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos das Mulheres”, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Ana Paula Chudzinski Tavassi
Eduardo de Rê
Mariana Contreras Barroso
Marina Dutra Marques
Fontes:
2- BARBOSA, Renata C. Gênero e Antiguidade: Representações e Discursos. História Revista, Goiânia, vol. 12, nº 2, p. 353-364, jul/dez. 2007.
3- BARRETO, Gabriella P. A evolução histórica dos Direitos da Mulher. Jus Brasil. Artigo de site, 2016. Disponível em: <https://gabipbarreto.jusbrasil.com.br/artigos/395863079/a-evolucao-historica-do-direito-das-mulheres>. Acesso em: 10 de dezembro de 2020.
4- BUDIN, Stephanie L; TURFA, Jean M. Women in Antiguity: Real Women Across the Ancient World. Abingdon: Routledge Taylor & Francis Group, 2016.
5- CHARLESWORTH, Hilary. What are “Women’s International Human Rights”?. In: COOK, Rebecca J. Human Rights of Women: National and International Perspectives. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. 1994, p. 58-85.
6- Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, 1979.
7 – EVANGELISTA, Desirée. Direitos humanos das mulheres na esfera internacional. Jus. Artigo de site. 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/53646/direitos-humanos-das-mulheres-na-esfera-internacional>. Acesso em: 9 de dezembro de 2020.
8- MATOS, Maureen L; GITAHY, Raquel R. A Evolução dos Direitos da Mulher. Colloquium Humanarum, vol. 4, nº 1, Jun. 2007, p. 74-90, 2007.
9- MACEDO, José R. A Mulher na Idade Média: A mulher e a família, realidades sociais e atividades profissionais, exclusão, preconceito e marginalidade. São Paulo: Contexto, 2002.
10- TILLY, Louise A. Gênero, História das Mulheres e História Social. Cadernos Pagu (3), São Paulo, 1994, p. 29-62. Traduzido por Ricardo Augusto Vieira.
11- WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos Direitos da Mulher. São Paulo: Boitempo. 1ª Edição comentada do clássico feminista. 2016. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4545865/mod_resource/content/1/Reivindica%C3%A7%C3%A3o%20dos%20direitos%20da%20mulher%20-%20Mary%20Wollstonecraft.pdf>. Acesso em: 10 de dezembro de 2020.