Quando pensamos em humanidade, normalmente nos referimos a uma espécie: o ser humano, não é mesmo? Mas essa humanidade, apesar de única, é variada e plural.
A diversidade se faz presente na sociedade e são muitos os grupos que a compõem, com diferentes crenças, culturas, valores, gêneros, etnias, origem, etc.
Contudo, ao longo da história, muitos desses grupos sofreram opressões e por muito tempo não tiveram os seus direitos fundamentais reconhecidos.
Quer entender um pouco mais dessa história? Neste texto vamos falar sobre isso, explicando tanto quais foram os acontecimentos, quanto os seus efeitos e consequências até os dias de hoje.
O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre a história dos direitos étnico-raciais? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
Os grupos étnico-raciais em tempos antigos
Primeiramente, é interessante entendermos a situação de grupos étnico-raciais em sociedades e períodos passados, para termos uma melhor noção sobre as suas condições na história.
Por isso, vamos olhar para essa situação em sociedades europeias clássicas como a grega e a mesopotâmica, bem como no período medieval.
Grécia
A Grécia antiga era composta por povos indo-europeus, como os aqueus, jônios, eólios e dórios. Apesar dessa variedade de povos, não havia perseguição e segregação entre eles, que conservavam as suas características culturais próprias.
Para a sociedade grega, o sentimento de pertencimento coletivo fazia com que os povos fossem vistos apenas como gregos e não-gregos. Os não-gregos , em sua maioria, eram os estrangeiros e os prisioneiros de guerra, que eram vistos como povos bárbaros e eram escravizados pelos gregos.
Mesopotâmia
Outro caso marcante é da Mesopotâmia antiga. Muitos povos também pertenciam à região, como os sumérios, acádios, hebreus, amoritas, caldeus e hititas. Mas mesmo assim, também não havia perseguições contra um grupo específico.
A escravidão era permitida legalmente, por meio do Código de Hamurabi, mas a maioria dos escravos também eram compostos de estrangeiros e prisioneiros de guerra. Nesse sentido, a discriminação ocorria contra os povos do exterior, que não possuíam nenhum direito reconhecido.
Período medieval
Dessa forma, na história dos direitos étnico-raciais nas sociedades africanas e americanas, a perseguição e dominação direcionada especificamente a um grupo racial e justificada por esse pertencimento teve início após o fim da Idade Média (476 – 1453), quando o processo de colonização europeia se iniciou.
Os colonizadores não apenas exploravam os recursos dos territórios colonizados (da América Latina e África em sua maioria), mas também implementaram a sua cultura e moral sobre os povos colonizados. Os costumes, valores e as tradições culturais dos colonizadores foram impostos de forma violenta.
Isto é, os colonizadores se consideravam superiores e estabeleceram uma estrutura de dominação contra os povos negros e indígenas dos países colonizados, escravizando-os e explorando-os.
Como foi no caso brasileiro, em que os europeus utilizaram os povos nativos que aqui viviam e os africanos que eram trazidos à força como mão de obra escrava na extração de recursos e em atividades produtivas.
As origens dos direitos étnico-raciais
O violento processo de submissão e escravização colonial durou séculos, até encerrar no século XIX. No Brasil, o sistema escravista foi baseado primeiramente na exploração dos nativos da terra, os indígenas.
Depois, no tráfico de africanos para a região. Esse tráfico se dava por meio do transporte de pessoas como mercadoria, atravessando o oceano Atlântico nos chamados navios negreiros, em que os africanos eram submetidos a condições desumanas durante a viagem, para depois serem escravizados quando chegassem à terra.
A escravidão fazia parte da própria lógica de funcionamento da sociedade e era fundamentada na visão de que os negros e indígenas eram coisas, e não humanos.
E havia também uma concepção religiosa que enxergava que era necessário “educar” esses povos, tornando-os civilizados a partir do referencial e das crenças da Europa. Ao não adotar essas crenças, esses povos eram vistos como “pecadores”, o que compunha a justificativa da escravidão.
Muitas estratégias de resistência contra a escravidão foram feitas,. A principal delas foram os quilombos. Eles consistiam em organizações sociais e políticas de escravos fugidos que se reuniam e ocupavam terras para sua proteção, resistência e desenvolvimento.
Utilizando-se de modelos de organização baseados em práticas de sua terra natal. O mais conhecido quilombo brasileiro foi o de Palmares, uma organização complexa que teve como uma de suas lideranças Zumbi.
Entretanto, foi somente em 1757 que o ordenamento jurídico brasileiro passou a considerar direitos a esses grupos populacionais, ainda de forma violadora e desrespeitosa de sua identidade.
Isso ocorreu com o estabelecimento do Diretório dos Índios, assegurando a liberdade dos indígenas, contanto que seguissem os padrões de vida europeus. Os negros continuaram escravizados, sendo que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888, com a Lei Áurea, representando uma das primeiras conquistas na história dos direitos étnico-raciais.
Vale lembrar que, muito influenciado pela Revolução Francesa, o primeiro país das Américas a abolir a escravidão foi o Haiti, 95 anos antes do Brasil, em 1793, se tornando independente em 1804.
As conquistas dos direitos étnico-raciais ao longo do tempo
Apesar do fim da escravidão, os negros, especialmente nos países ocidentais que passaram por um processo de colonização, ainda não tinham muitos direitos reconhecidos.
Em países como os Estados Unidos e o Brasil, eles não possuíam cidadania, isto é, seus direitos políticos e civis eram inexistentes. Isso significa que eles não podiam votar, não tinham acesso à saúde pública, à educação, ao direito à igualdade, entre outros.
Isso significa que, na história dos direitos étnico-raciais, o fim da escravatura não representou a inclusão imediata desses povos na sociedade.
Foram muitas as dificuldades para a inserção socioeconômica dos negros, que tinham que enfrentar não só uma estrutura política e legal desfavorável, mas também um ambiente social de discriminação racial e preconceito, marcas características do racismo.
Uma forma de manifestação do racismo podia ser observada em editoriais de jornais da época, como no caso do Correia Paulistano, em 1892, que expressou que: “o negro só sabia ser sensual, idiota, sem a menor ideia de religião, de outra vida moral e nem sequer de justiça humana”.
Dessa forma, muita luta e esforços foram exigidos dos movimentos sociais negros para que a sua existência como cidadãos e cidadãs fosse reconhecida.
No Brasil, o movimento negro organizou diversas associações de luta por igualdade e direitos. Estima-se que somente em São Paulo entre os anos 1907 e 1937, 123 associações negras foram criadas. A força do movimento resultou na conquista do direito ao voto para negros, por meio da promulgação da Constituição de 1934.
E, mais tarde, em 1951, na determinação de racismo como crime, por meio da promulgação da Lei Afonso Arinos (Lei nº 1.390/1951).
Nos EUA, a segregação racial se deu de maneira diferente. Cinco anos depois da abolição da escravatura no país, em 1870, os estados do sul do país adotaram um conjunto de leis que oficializou a marginalização racial.
Dessa forma, os negros não podiam frequentar os mesmos lugares que os brancos, não tinham acesso aos mesmos direitos e eram discriminados em previsões legais explícitas. Em 1955, Rosa Parks, uma mulher negra, por não ceder o seu lugar no banco do ônibus a um passageiro branco, foi presa e libertada apenas após pagar fiança.
A partir desse momento, ela se uniu ao movimento negro do país que lutava pelos direitos civis dos negros nos EUA, que tinha como uma das lideranças Martin Luther King Jr. Juntos, organizaram boicotes ao sistema de ônibus do país e conseguiram, um ano depois, que a Suprema Corte declarasse inconstitucional a segregação racial em transportes públicos.
Contudo, foi apenas na década seguinte, em 1963, após a Marcha sobre Washington, que reuniu aproximadamente 250 mil pessoas, que as suas reivindicações foram reconhecidas.
Assim, em 1964 foi promulgada a Lei dos Direitos Civis, encerrando a segregação racial no país e garantindo direitos fundamentais aos negros, como direito à igualdade, justiça e liberdade, uma grande vitória na história dos direitos étnico-raciais.
Os direitos étnico-raciais em nível mundial
As décadas de 50 e 60 podem ser vistas como um marco para a história dos direitos étnico-raciais. Foi nesse período que esses direitos ganharam um reconhecimento global, sendo reafirmados para todos os povos e grupos do mundo.
Isso ocorreu, entre outros motivos, graças à fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, que já no seu documento inicial, a Carta das Nações Unidas, prevê a liberdade para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
Esses valores são reforçados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em que pela primeira vez na história é estabelecido que todos os seres humanos, sem exceção, devem ter a sua dignidade e os seus direitos fundamentais garantidos.
Esse reconhecimento internacional colabora para a promoção dos direitos civis e políticos de grupos vulneráveis historicamente, que sofrem com a discriminação e a segregação, como os grupos étnico-raciais minoritários.
Com isso, em 1957 é elaborada pela ONU a Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais (Convenção OIT nº 107). O documento reconhece que esses povos precisam de uma proteção legal especial, por conta das suas condições sociais e econômicas.
Dessa forma, prevê que os Estados signatários devem tomar providências para assegurar a proteção das populações indígenas, tribais e semi tribais (pessoas que apesar de já não terem todas as características do grupo étnico, não se identificam com a comunidade nacional).
Mais tarde, em 1963, a ONU promulga a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, visando acabar com toda e qualquer discriminação com base em raça do mundo.
Os dispositivos e garantias do documento foram reafirmados em 1965, com a elaboração da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, principal documento atualmente dos direitos étnico-raciais no mundo.
Conclusão
A distinção entre povos com diferentes culturas e modos de vida é algo presente na história dos direitos étnico-raciais. Ao longo da história, essas diferenças foram exploradas de maneiras distintas, levando a situações extremas como a submissão de estrangeiros e prisioneiros de guerra à escravização nas civilizações antigas, e posteriormente a escravização de povos e grupos étnicos, apenas por apresentarem características físicas e costumes distintos.
Como consequência, principalmente nas sociedades ocidentais, os negros e indígenas tiveram grande dificuldade para serem inseridos socialmente, sofrendo todos os tipos de discriminação e preconceitos.
Assim, muitos anos de lutas foram exigidos para que os direitos étnico-raciais fossem reconhecidos, sendo uma conquista recente, em que a sua garantia internacional foi afirmada apenas no século XX.
A ONU foi uma das responsáveis por essa conquista. Mas será que você sabe sobre o papel da organização e qual o seu impacto nas questões étnicas-raciais ao redor do mundo? Então confira o nosso próximo texto aqui do Equidade, em que vamos falar sobre a ONU e a questão racial.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos Étnico-raciais“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Eduardo de Rê
Isabela Campos Vidigal Takahashi de Siqueira
Julia Reis Romualdo
João Pedro de Faria Valentim
Leonardo Gabriel Reyes Alves da Paes
Fontes:
2- DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Revista Tempo, vol. 12, n. 23, p. 100-122, 2007.
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5- OLIVEIRA, Anderson. Igreja e escravidão africana no Brasil Colonial. Cadernos de Ciências Humanas – Especiaria. vol. 10, nº 18, p. 355-387, dez. 2007.
6- OLIVEIRA, Kelly; PIMENTA, Sonia. O Racismo nos anúncios de emprego do século XX. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, vol. 16, nº 3, p. 381-399, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ld/v16n3/1518-7632-ld-16-03-00381.pdf>. Acesso em: 05 de março de 2021.
7- PETRONI, Camila. Movimento dos direitos civis nos EUA. Infoescola. Disponível em: <https://www.infoescola.com/historia/movimento-dos-direitos-civis-nos-eua/>. Acesso em: 23 de fevereiro de 2021.
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11- WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1. ed. 1975.