Após um longo processo histórico, crianças e adolescentes passaram a ser vistos como sujeitos de direitos, em que o Estado, a família e a sociedade passaram a ter responsabilidade em proteger esses indivíduos em condição única de desenvolvimento.
Os avanços legislativos possibilitaram a existência de um sistema de garantia de direitos, no qual integra ações, políticas públicas e medidas jurídicas para garantir a proteção integral das crianças e adolescentes. Contudo, a eficácia da garantia desses direitos ainda passa por desafios.
Uma das consequências de um contexto de violação dos direitos de crianças e adolescentes é a execução das chamadas medidas socioeducativas, que no Brasil atingem mais de 22 mil jovens, segundo o Conselho Nacional de Justiça (2018).
Assim, neste texto do Equidade vamos entender melhor o que são as medidas socioeducativas, para que servem e qual a sua relação com os desafios enfrentados pelas crianças e adolescentes na garantia dos seus direitos fundamentais.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize! e o Instituto Mattos Filho voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os importantes temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender sobre medidas socioeducativas e os desafios dos direitos das crianças e dos adolescentes? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
Breve histórico das medidas socioeducativas no Brasil
Antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, o tratamento dado às crianças e aos adolescentes tinha como foco medidas corretivas em relação ao seu comportamento, bem como medidas assistencialistas aos abandonados e muito pobres.
Durante o período colonial, por exemplo, crianças e adolescentes que cometiam ilegalidades eram enviados para as “Casas de Meninos”. Essas instituições visavam a correção de comportamentos julgados inadequados pela concepção de educação e moral da época.
Mais tarde, no século XIX, surgiram as “Casas de Correção”, que eram destinadas ao acolhimento de crianças e adolescentes menores de 14 anos acusados de cometer algum crime. Nesse período, crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos podiam ser privados de sua liberdade como pessoas adultas.
Já no século XX, com a promulgação do Código de Menores, em 1926, a maioridade penal (idade em que o indivíduo passa a responder legalmente por seus atos) foi estabelecida em 18 anos.
Contudo, o Código também incorporava uma visão correcional e repressiva contra crianças e adolescentes, em especial os considerados em situação irregular, que englobava os abandonados, os pobres, os que tinham comportamentos tidos como inadequados ou que cometiam algum delito.
Essa visão contribuiu para um maior abismo social e marginalização de crianças e adolescentes de comunidades periféricas, que formavam o perfil majoritário das Fundações Estaduais para o Bem-Estar do Menor (FEBEMs).
Para a mestra em educação Allyne da Silva (2013), as Fundações realizavam ações imediatistas e filantrópicas, marcadas por irregularidades e violência. Nesse sentido, a autora aponta que a FEBEM ficou reconhecida negativamente no tratamento de crianças e adolescentes, pelo seu histórico de fugas, rebeliões e práticas violentas.
Assim, somente com a publicação do ECA foi estabelecida a visão de que as crianças e adolescentes são pessoas em condição única de desenvolvimento e precisam de proteção integral. Com isso, surgiram as medidas socioeducativas para adolescentes que praticam infração perante a lei.
E o que são as medidas socioeducativas?
Entendido a origem das medidas socioeducativas, podemos compreender melhor o que elas significam e quais as suas funções em relação aos direitos das crianças e dos adolescentes.
As medidas socioeducativas são medidas repreensivas e pedagógicas voltadas a crianças e adolescentes entre 12 e 18 anos acusados de cometer algum ato infracional perante a legislação nacional.
Essas medidas são baseadas na proteção integral e no princípio da prioridade absoluta dos direitos das crianças e dos adolescentes, devendo, assim, ser adaptadas com a condição especial de desenvolvimento desses indivíduos.
Como já comentado, as medidas socioeducativas foram estabelecidas pelo ECA e se aplicam em casos de atos infracionais cometidos por adolescentes. Atos esses definidos pelo seu artigo 103 como “conduta descrita como crime ou contravenção penal”.
Sendo assim, a partir da comprovação de crime praticado por adolescentes, as medidas socioeducativas são implementadas como forma de responsabilizar esses indivíduos pelas ilegalidades. Porém, por ter caráter socioeducativo, elas devem oferecer condições de reinserção social desses indivíduos.
Conforme o ECA, as medidas podem ser caracterizadas como: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação em estabelecimento educacional. Vamos ver melhor cada uma delas.
- Advertência: consiste em uma espécie de repreensão verbal feita pelo magistrado ao acusado, que deve ser reduzida a termo (documentada) e assinada.
- Obrigação de reparar o dano: em caso de prejuízo patrimonial, o infrator deve devolver, restituir e compensar a vítima.
- Prestação de serviços à comunidade: consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse coletivo, junto a hospitais, entidades assistenciais, escolas e outros estabelecimentos, não podendo ultrapassar 6 meses.
- Liberdade assistida: pressupõe certa restrição de direitos em que o adolescente passa a ser auxiliado, acompanhado e orientado sistematicamente por profissionais, sem o afastamento do convívio familiar. Essa medida tem um prazo mínimo de 6 meses, podendo ser prorrogada quando necessário.
- Semiliberdade: consiste em colocar o adolescente infrator em uma unidade de atendimento para o cumprimento de atividades pedagógicas e formativas. Dessa forma, priva parcialmente a sua liberdade visto que sua estadia na unidade não é integral e há a garantia do convívio familiar.
- Internação em estabelecimento educacional: trata-se de uma medida privativa da liberdade, apenas para atos infracionais graves, com base no respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. O adolescente infrator é designado para unidades socioeducativas, ficando afastado da família e da comunidade por um período mínimo de 6 meses e máximo de 3 anos.
Cabe destacar que a imposição de qualquer medida socioeducativa ao adolescente só pode ser feita por um juiz, após a tramitação do devido processo legal, e desde que reunidas as provas suficientes.
A violação de direitos e as medidas socioeducativas
A implementação das medidas socioeducativas muitas vezes se justifica pela necessidade de responsabilização de um adolescente infrator para que crie conscientização social por seus atos e plena capacidade de conviver harmoniosamente em sociedade.
Contudo, em relação ao sistema de garantia de direitos, essas medidas são aplicadas em vista da falha de medidas preventivas que contribuem para a proteção integral dos adolescentes e para o cumprimento dos seus direitos.
Isso porque quando o Estado é incapaz de fornecer todas as condições necessárias e adequadas às crianças e adolescentes para se desenvolverem, corre-se o risco de esses indivíduos terem comportamentos que fogem dos padrões legais estabelecidos em lei.
Esse raciocínio é fortalecido quando observamos o perfil dos jovens infratores no Brasil. De acordo com o Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) de 2016, publicado em 2018, quase 60% dos adolescentes em restrição de liberdade são negros.
E, segundo o G1, com base em uma pesquisa do Instituto Sou da Paz, 67,7% dos jovens infratores em São Paulo não frequentavam a escola, representando violação ao direito à educação. Isso significa que de forma majoritária as medidas socioeducativas são aplicadas a adolescentes em condição de vulnerabilidade.
Isso porque a população negra é a que mais sofre com a desigualdade (75% vive em situação de pobreza segundo o IBGE) e com a violência no Brasil (chance de um homem negro ser assassinado é 74% maior do que um não-negro segundo o Atlas da Violência 2020).
Como consequência, essa população é mais exposta a violações dos seus direitos fundamentais. Essa maior exposição também ocorre com os adolescentes fora da escola, visto que segundo estudo do IPEA (2016), a educação é um instrumento preventivo para afastar os jovens do crime.
Ou seja, existe certa correlação entre as crianças e adolescentes que vivem em um contexto de violações dos seus direitos e a implementação das medidas socioeducativas. Nesse sentido, como destaca o professor de políticas públicas Vicente Faleiros ao Correio Braziliense, “não podemos culpar o indivíduo sem olhar as políticas em volta de onde vive”.
A realidade das medidas socioeducativas
Além de tudo isso, o extenso conjunto de medidas socioeducativas previsto na legislação brasileira não é aplicado de maneira plena e efetiva no Brasil. Os problemas relacionados à aplicação eficaz das medidas socioeducativas se encontram essencialmente ligados à falta de investimento pelo Poder Público.
A ausência de infraestrutura e programas de capacitação técnica para os responsáveis resulta em uma situação que propicia a reincidência, já que o objetivo primário de ressocialização desta população não é cumprido.
Segundo uma pesquisa do Instituto Sou da Paz (2018), por exemplo, cerca de 66,3% dos adolescentes infratores em São Paulo são reincidentes. Além disso, a pesquisa aponta que 90% dos jovens entrevistados foram agredidos pela polícia durante as abordagens ou apreensões.
Além disso, a escassez de recursos e investimentos faz com que a Resolução nº 46/96 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que determina que centros socioeducativos devem abrigar, no máximo, 40 adolescentes, não seja cumprida.
Diante disso, ao final de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do Habeas Corpus 143988, determinou que caso ultrapassada a capacidade projetada das unidades de internação, novas medidas devem ser tomadas para suprir a necessidade de internação. Como é o caso, por exemplo, da conversão da internação em internação domiciliar.
Para além de tudo isso, em razão das novas regras de distanciamento e da restrição ao recebimento de visitas devido à pandemia do Covid-19, foi editada a Recomendação Conjunta nº 1/2020, pelo Conselho Nacional de Justiça e outros órgãos, para tentar diminuir os impactos da crise sanitária.
Com isso, foi recomendada a suspensão do cumprimento das medidas presenciais de prestação de serviços à comunidade e também a utilização de meios eletrônicos para manutenção da comunicação dos jovens com suas famílias.
Conclusão
As medidas socioeducativas são estabelecidas como instrumento de controle e segurança social, em que os adolescentes, sujeitos de direitos e deveres, devem ser educados pedagogicamente pelos atos infracionais que cometem.
Contudo, a implementação dessas medidas possui relação com a inefetividade prática e a não garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes no país. Assim, os avanços legislativos se mostram insuficientes para proteger de maneira integral esses indivíduos, que necessitam de condições e recursos adequados para se desenvolverem de maneira plena.
Isso significa que o Estado precisa dispor a estrutura e executar as políticas essenciais para o cumprimento e a aplicabilidade dos direitos das crianças e dos adolescentes. Dessa maneira, trabalha-se preventivamente para que se reduza o número de jovens infratores e, consequentemente, o emprego das medidas socioeducativas.
Assim, é possível contribuir para uma sociedade mais justa e próspera, em que crianças e adolescentes possam ter os seus direitos fundamentais respeitados. Esse é um dos objetivos do projeto Equidade, que busca colaborar para isso por meio da divulgação de conteúdos relacionados aos direitos humanos.
Esse foi o último texto sobre o tema dos direitos das crianças e dos adolescentes, mas o projeto não para por aqui. Então fique ligado, pois no nosso próximo tema vamos falar sobre os direitos dos idosos, não perca!
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos das Crianças e dos Adolescentes“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Anna Paula Jacob Gimenez
Bárbara Correia Florêncio Silva
Caroline Sayuri Ogata Graells
Eduardo de Rê
Giovanna de Cristofaro
Mariana Dragone Pires
Mariana Scofano Martins
Fontes:
2- AREIAS, Mariana. Adolescentes infratores relatam o que os levou à violência. Correio Braziliense, 2017. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2017/09/02/interna_cidadesdf,622868/adolescentes-infratores-relatam-o-que-os-levou-a-violencia.shtml>. Acesso em: 26 de novembro de 2021.
3- CARVALHO, Juliana; SANT’ANA, Izabella. O adolescente em conflito com a lei e as medidas socioeducativas: de menor a sujeito de direitos. Educação Básica Online, vol. 1, is. 1, p. 88-97, 2021. Disponível em: <https://periodicos.editorialaar.com/index.php/educacaobasicaonline/article/view/11/10>. Acesso em: 25 de novembro de 2021.
4- Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), 1990.
5- MOREIRA, Celeste. As medidas socioeducativas e as violações de direitos de adolescentes. V Jornada Internacional de Políticas Públicas, 2011. Disponível em: <http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2011/CdVjornada/JORNADA_EIXO_2011/PODER_VIOLENCIA_E_POLITICAS_PUBLICAS/AS_MEDIDAS_SOCIOEDUCATIVAS.pdf>. Acesso em: 25 de novembro de 2021.
6- SEGALIN, Andreia; TRZCINSKI, Clarete. Ato infracional na adolescência: problematização do acesso ao sistema de justiça. Revista Virtual Textos & Contextos, nº 6, ano V, p. 1-19, 2006.
7- SILVA, Allyne. Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS II de Cascavel – PR: Um estudo da medida socioeducativa de liberdade assistida (2001-2011). Dissertação (Mestrado em Educação). UNIOESTE, 144f, 2013.
8- SOUSA, Irma D. Adolescentes em conflito com a lei: as causas que levam os adolescentes a cometerem ato infracional no Estado do Piauí. Revista Fundamentos, vol. 3, nº 2, Revista do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Piauí, 2015.