Entre os anos de 2011 e 2019, o Brasil presenciou um intenso fluxo migratório, registrando mais de 1 milhão de imigrantes, de acordo com dados de 2020 do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra).
Essa migração contou com um grande número de refugiados, visto que entre os anos de 2018 e 2020 foram registradas mais de 272 mil solicitações de refúgio no país, segundo o Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio da Cáritas RJ (PARES Cáritas RJ).
Isso significa que atualmente milhares de migrantes e refugiados vivem no Brasil e, com isso, surgem preocupações acerca da integração social e do acolhimento dessas pessoas, que buscam por uma vida digna.
Nesse sentido, torna-se importante a proteção dessas pessoas, na garantia dos seus direitos fundamentais. Assim, neste texto do Equidade vamos falar sobre os direitos dos migrantes e refugiados no Brasil, buscando compreender quais as garantias previstas a essas pessoas na nossa legislação nacional.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltado a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre os direitos dos migrantes e refugiados no Brasil? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
Breve contexto histórico das migrações no Brasil
A história do Brasil se relaciona com o processo migratório que ocorreu em seu território desde o seu descobrimento pelos europeus, em 1500. A colonização do Brasil por Portugal, que visava a exploração da terra em conjunto com o povoamento da região, estimulou a vinda de estrangeiros ao território nacional.
Durante o período colonial (1530 – 1822) houve um intenso fluxo migratório não apenas de europeus ao país, mas também um grande número de migrações forçadas para o trabalho agrário e rural de exploração dos recursos da terra.
Estima-se que entre os séculos XVI e XIX, cerca de 5 milhões de africanos foram trazidos ao Brasil para serem escravizados, trabalhando como mão-de-obra compulsória.
Assim, a vinda de imigrantes, somado com a existência dos povos indígenas nativos da região, resultou nas bases de fundação da sociedade brasileira que conhecemos hoje. Após a independência, em 1822, a lógica do povoamento continuou sendo um fenômeno praticado no Brasil, resultando na formação de diversas colônias e províncias.
Durante esse período, especialmente no século XIX e início do XX, a imigração de europeus brancos foi estimulada, com base na ideia de um processo “civilizatório” do Brasil, em que o racismo contra negros e indígenas ainda era evidente, mesmo com a abolição da escravidão em 1888.
Um exemplo foi a publicação do Decreto nº 3784 de 1867, que garantia aos colonos europeus recém-chegados 10 dias de hospedagem às custas da coroa portuguesa, a atribuição de um lote de terra, a possibilidade de emprego pelo prazo de 6 meses, entre outros benefícios.
Contudo, os migrantes não possuíam os mesmos direitos e liberdade dos cidadãos brasileiros e ficavam submetidos às leis nacionais, sem proteções específicas. Assim, a origem dos direitos dos migrantes e refugiados no Brasil ocorre somente na segunda metade do século XX. E é o que veremos a seguir.
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A conquista dos direitos dos migrantes e refugiados no Brasil
Além de não possuir proteções legais, os estrangeiros no início do século XX no Brasil passaram a ter maiores restrições em relação à participação social, sob a justificativa da segurança nacional.
Ocorre que grande parte dos operários e trabalhadores nessa época no país eram estrangeiros e, em busca de melhores condições de trabalho, começaram a participar ativamente dos movimentos trabalhistas.
Assim, em 1907 foi publicada a primeira lei de expulsão de estrangeiros do Brasil, o Decreto nº 1.641, que determinava que qualquer estrangeiro que comprometesse a tranquilidade pública poderia ser expulso do território nacional.
Já em 1938, foi aprovada a primeira legislação que regulava a entrada de imigrantes no país, com o objetivo de moldar a composição do povo brasileiro.
Assim, o Decreto nº 406 foi publicado, impedindo a entrada de pessoas com deficiência, pessoas de etnia cigana e os considerados “indigentes” e “vagabundos” (preceitos muitas vezes utilizados para barrar a entrada de não-brancos).
Então, foi somente após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que os direitos dos migrantes e refugiados no Brasil foram reconhecidos. Isso aconteceu devido às consequências da guerra, que geraram um número enorme de refugiados não só na Europa, mas no mundo.
Assim, a Organização das Nações Unidas (ONU) elaborou em 1951 a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, definindo pela primeira vez o conceito de refugiado.
Como resultado, no ano de 1960 o Brasil aprovou a Convenção internamente, integrando os seus dispositivos à legislação nacional no ano seguinte, por meio do Decreto nº 50.215/1961, reconhecendo os direitos dos migrantes e refugiados no Brasil.
Os direitos atuais dos migrantes e refugiados no Brasil
O Decreto nº 50.215 continua em vigor nos dias de hoje, estabelecendo os princípios e as normas previstas na Convenção de 1951. Além disso, em 1972 foi aprovado o Decreto nº 70.946, promulgando o Protocolo de 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados no âmbito nacional.
Assim, fica garantido aos refugiados no Brasil o respeito aos direitos humanos, o direito à não discriminação, à igualdade de tratamento, ao trabalho, à educação pública, à assistência pública, à liberdade, à previdência social, à proibição de expulsão ou rechaço do território nacional, entre outros.
Já com a promulgação da Constituição Federal de 1988, os estrangeiros passaram a ser protegidos constitucionalmente no Brasil, com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Segundo o seu artigo 5º, caput:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”
Assim, em 1991 é editada a Portaria Interministerial nº 394 do Ministério da Justiça, determinando proteção aos refugiados no Brasil na dinâmica processual para solicitação e concessão de refúgio.
Com isso, no prazo de 30 dias após a entrada no país, é possível solicitar uma cédula de identidade para estrangeiros, válida por 2 anos e que pode ser substituída quantas vezes forem necessárias. Além disso, fica garantido o fornecimento de Carteira de Trabalho e Previdência Social.
Mais tarde, em 1997, foi editada a Lei nº 9.474, redigida em parceria com o Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Essa lei é considerada pela ONU uma das mais modernas e abrangentes por adotar um conceito ampliado sobre refugiados no Brasil.
Eles ficam definidos como indivíduos que por perseguição de raça, religião, nacionalidade, grupo social, opiniões públicas ou generalizadas violações de direitos humanos, são obrigados a deixar seu país de origem e, ao se encontrarem fora do seu país, não podem ou não querem retornar para ele.
Sendo assim, para lidar com a situação dos refugiados no Brasil e implementar os direitos previstos na Convenção de 1951, a lei também cria o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), principal órgão de proteção e atendimento dessas pessoas.
O Comitê Nacional para os Refugiados
O CONARE é um órgão colegiado vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que delibera sobre as solicitações de refúgio no Brasil. Atualmente, é composto por representantes governamentais e não-governamentais.
As competências do órgão são determinadas na Lei nº 9.474/1997, que em seu artigo 12 estipula que cabe ao CONARE:
- Analisar o pedido e reconhecer a condição de refugiado;
- Decidir sobre o término, pela força da lei, do reconhecimento da condição de refugiado;
- Determinar a perda da condição de refugiado;
- Orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados;
- Aprovar instruções normativas esclarecedoras para a execução da Lei nº 9.474/1997.
Sendo assim, o CONARE é responsável pela decisão final em relação à solicitação de refúgio no Brasil, sendo que seus representantes realizam entrevistas com os solicitantes e elaboram pareceres enquadrando os indivíduos como refugiados.
Nova Lei de Migração
Recentemente, no ano de 2017, foi aprovada uma lei de regulamentação da migração no país. Chamada de nova Lei de Migração, a Lei nº 13.445/2017 se soma às demais leis sobre migrantes e refugiados no Brasil e, segundo o doutor em direito Marcelo Torelly (2017), torna o país uma referência internacional no aspecto da governança migratória.
Essa lei passa a tratar o movimento migratório como um direito humano, repudiando a xenofobia e garantindo ao migrante, em condição de igualdade com os cidadãos nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, em conformidade com a Constituição de 1988, como vimos anteriormente.
Um grande avanço possibilitado foi a aprovação do visto humanitário para migrantes e apátridas (pessoas que não possuem a nacionalidade reconhecida por nenhum país) que vêm ao Brasil.
O visto permite que essas pessoas ingressem e permaneçam no Brasil por conta de diversos motivos, como grave violação de direitos humanos, desastre ambiental, conflitos armados, instabilidades institucionais, entre outros.
A nova Lei de Migração também regulamentou os procedimentos de deportação, expulsão e extradição (entrega de um imigrante suspeito, investigado ou condenado por crime ao país que requer a entrega).
A deportação fica definida como a retirada obrigatória de migrantes em situação documental irregular no país. A expulsão, por sua vez, fica definida como a retirada obrigatória de migrantes que cometem crimes previstos na lei e são proibidos de reingressar ao Brasil.
Já a extradição é requerida por via diplomática e ocorre em casos de crime cometido no território do Estado requerente, quando o extraditando estiver respondendo a processo investigatório ou penal ou ter sido condenado pelas autoridades do Estado requerente.
A situação dos migrantes e refugiados no Brasil
De acordo com a ONU, estima-se que em 2019 havia cerca de 807 mil estrangeiros residentes no Brasil. Sendo que, segundo o relatório da CONARE, ao final de 2020 havia 57.099 pessoas reconhecidas como refugiadas no Brasil.
Desse total de refugiados reconhecidos, ainda de acordo com o relatório, a maior parte provém da Venezuela (46.412), seguida da Síria (3.594) e Congo (1.050). Já entre os solicitantes da condição de refugiado, as nacionalidades com maiores solicitações foram de venezuelanos (60,2%), haitianos (22,9%) e cubanos (4,7%).
Além disso, o maior volume de solicitações de refúgio no país ocorreram no estado de Roraima (60%), seguido pelo Amazonas (10%) e São Paulo (9%).
Nota-se que o CONARE negou o status de refugiados para a maioria dos haitianos solicitantes, pois considerou que eram vítimas de desastres naturais sem o devido temor de perseguição, que integra o conceito de refugiado.
Os venezuelanos correspondem não só ao maior número de refugiados no Brasil, como mencionado, mas também ao maior número de imigrantes no território brasileiro. A crise econômica e social na Venezuela nos último anos gerou um intenso deslocamento de venezuelanos para países vizinhos, entre eles o Brasil.
Assim, de acordo com dados de 2021 do governo federal, estima-se que cerca de 260 mil migrantes e refugiados venezuelanos vivem atualmente no Brasil. O intenso fluxo migratório motivou a utilização pela primeira vez do critério prima facie pelo CONARE, instrumento que facilita o reconhecimento de refugiados.
Com isso, segundo o ACNUR, no ano de 2019 cerca de 21 mil venezuelanos foram beneficiados com a decisão, tendo a sua solicitação de refugiado aceita por meio de procedimentos facilitados.
Além disso, é importante ressaltar que em vista da pandemia do Covid-19, medidas restritivas foram determinadas em relação às entradas de indivíduos nas fronteiras nacionais.
Como no caso da Portaria Interministerial 658/21, publicada em 2021, que restringe temporariamente a entrada de estrangeiros no país, estabelecendo diversos requisitos para o ingresso ao território nacional.
A situação dos migrantes e refugiados no Brasil, muitas vezes, é desfavorável, resultando em desigualdades sociais e econômicas, principalmente em relação aos refugiados, que se encontram em uma situação de maior vulnerabilidade.
De acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, no ano de 2019 havia cerca de 147,7 mil estrangeiros registrados no mercado de trabalho formal.
Apesar de ser o maior número registrado na década (em 2010 eram 55,1 mil), esse número representa aproximadamente 18,3% do número de estrangeiros residentes no país, se considerarmos os dados da ONU de 2019, já citados. O que indica uma dificuldade dos migrantes e refugiados no Brasil em serem incluídos no mercado de trabalho.
Conclusão
Assim como no mundo, a conquista dos direitos dos migrantes e refugiados no Brasil é recente, marcando um longo período de omissão do Estado brasileiro em como lidar de maneira adequada com os estrangeiros em seu território.
Hoje o país possui uma legislação considerada avançada no que diz respeito à migração, prevendo a proteção e o respeito dos direitos fundamentais dessas pessoas em âmbito nacional.
Mas, como foi visto, o Brasil está passando por um momento de intenso fluxo migratório em suas fronteiras, registrando números recordes de solicitações de refúgio na última década, visto que entre 1998 e 2009, o país recebeu cerca de 5.121 solicitações, em comparação com 272 mil registradas somente entre 2018 e 2020.
Nesse sentido, apesar do avanço legislativo, é preciso que ações e medidas, tanto pelo Estado quanto pela sociedade civil, sejam tomadas para que essas pessoas sejam incluídas socialmente e tratadas de maneira digna.
Até porque, muitas dessas pessoas estão no país em condição de refugiados, vivendo uma situação vulnerável em que foram forçadas a deixar seu país de origem.
Aliás, outro tipo de migração forçada e que decorre de crime é o tráfico humano, no qual pessoas são contrabandeadas como mercadorias. É sobre isso que vamos falar no próximo texto do Equidade, que será sobre como o tráfico humano funciona e como combatê-lo. Então continue acompanhando o projeto!
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos dos Refugiados e Migrantes“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Bárbara Correia Florêncio Silva
Bianca dos Santos Waks
Camila Bravim Oliveira
Carolina Bigulin Paulon Moreno
Daniela Halperin
Eduardo de Rê
Gabriela Gomide Runha
Juliana Midori Kuteken
Maria Cecília de Oliveira Reis e Alves
Yvilla Diniz Gonzalez
Fontes:
2- BÓGUS, Lúcia; RODRIGUES, Viviane. Os refugiados e as políticas de proteção e acolhimento no Brasil: História e Perspectivas. Revista Dimensões, vol. 27, p. 101-114, 2011.
3- COSTA, Luiz R. et al. Um Histórico da Política Migratória Brasileira a partir de seus Marcos Legais (1808-2019). Revista GeoPantanal, Corumbá, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, nº 27, p. 167-184, 2019.
4- Constituição Federal de 1988.
5- ESCOLA, Equipe Brasil. Imigração no Brasil. Brasil Escola. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/brasil/imigracao-no-brasil.htm>. Acesso em: 13 de setembro de 2021.
8- SEYFERTH, Giralda. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, São Paulo, nº 53, p. 117-149, 2002.
9- TORELLY, Marcelo (coord.). Política de refúgio no Brasil consolidada. Brasília: Organização Internacional para as Migrações, Agência das Nações Unidas para Migrações, 2017. Disponível em: <https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/publicacoes/politica_de_refugio_no_brasil_VOLUME2.pdf>. Acesso em: 14 de setembro de 2021.
10 – CAVALCANTI, L; OLIVEIRA, T. MACEDO, M., Imigração e Refúgio no Brasil. Relatório Anual 2020. Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2020. Disponível em: <https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/dados/relatorio-anual/2020/OBMigra_RELAT%C3%93RIO_ANUAL_2020.pdf>. Acesso em: 13 de setembro de 2021.