Já pensou você achar que ganhou uma super oportunidade de melhorar a sua qualidade de vida em um país diferente e quando chega nesse país você descobre que, na verdade, irá ser explorado(a) sexualmente? Essa é a realidade de muitas vítimas de tráfico humano, um crime que tem chamado a atenção da comunidade internacional.
Considerada uma prática que fere e viola os princípios dos direitos humanos, o tráfico humano movimenta, de acordo com o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas, mais de 30 bilhões de dólares anualmente. Ou seja, o crime é totalmente lucrativo, gerando milhares de vítimas em diversos países no mundo.
Sendo assim, neste texto do Equidade vamos buscar entender o que é exatamente essa prática, como ela é feita, quais seus efeitos e quais são as garantias internacionais de combate a esse crime.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre o tráfico humano, como ele funciona e como combatê-lo? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
O que significa o tráfico humano?
Antes de tudo, é importante entendermos o que o tráfico humano significa e qual é o seu conceito. Dada a sua amplitude e complexidade, esse tipo de tráfico é resultado de uma combinação de diversos fatores sociais, econômicos e políticos que envolvem não só o contexto dos países de maneira geral, mas também a vida individual.
Nesse sentido, a definição de tráfico humano é complexa, abrangendo diversos elementos que compõem o seu conceito. De maneira objetiva, o tráfico humano é o ato de comercializar, transportar e explorar uma pessoa, violando os seus direitos humanos por meio de ameaças, coerção, sequestro ou abuso de poder.
Isso significa que o tráfico de pessoas possui relação direta com o fluxo migratório no mundo, visto que envolve diretamente o deslocamento de uma pessoa, seja internamente ou entre países.
De maneira ampla e mais completa, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), que é responsável pelo Programa contra o Tráfico de Seres Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), define o tráfico humano como:
“Recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração”.
Dessa forma, o tráfico humano possui como objetivo principal a exploração e o controle da vida da pessoa traficada. Essa exploração pode se dar na forma de prostituição, exploração sexual, trabalhos forçados, escravidão, remoção de órgãos, entre outras práticas semelhantes.
A diferença entre tráfico humano e contrabando de migrantes
Apesar de parecerem a mesma coisa, na verdade, o termo contrabando de migrantes possui uma conceituação diferente do tráfico de pessoas. Essa diferença se deve principalmente em relação ao aspecto da voluntariedade e em vista dos objetivos e motivos de cada prática, que acabam divergindo.
Já vimos que o tráfico humano possui como finalidade a exploração da vida humana pelos traficantes. O contrabando de migrantes, por sua vez, possui como objetivo somente o benefício financeiro e material pela entrada irregular de um migrante em um Estado que não é o seu de origem.
Sendo assim, de acordo com o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea (2000), o contrabando de migrantes significa:
“A promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente”.
Além disso, outros pontos de diferença destacados pelo UNODC são os aspectos do consentimento e da transnacionalidade. No tráfico humano, o consentimento da vítima é irrelevante, já no contrabando de migrantes, a ação envolve o conhecimento e o consentimento da pessoa contrabandeada.
Em relação à transnacionalidade, o contrabando é sempre transnacional, ou seja, realizado de um país para o outro. Já o tráfico de pessoas, pode ocorrer de maneira internacional ou dentro de um mesmo país.
Breve histórico do tráfico humano
Há indícios históricos de que essa prática é executada desde a Antiguidade Clássica (3.500 a.C – 476 d.C), visto que, em locais como na Grécia antiga, havia a comercialização de prisioneiros de guerra para serem escravizados.
Contudo, foi somente a partir do século XIV que o tráfico humano começou a ser estimulado e intensificado. De acordo com o historiador Philip D. Curtin (1972), os primeiros casos de tráfico de seres humanos com a obtenção de lucros ocorreram a partir do Renascimento (século XIV – século XVII).
Nesse período, com o evento da colonização das Américas pelos países europeus, essa prática foi comum na comercialização de mão de obra escrava, especialmente vinda de África. Os africanos eram sequestrados e transportados em navios sob condições degradantes e desumanas, para serem escravizados ao chegar nas colônias americanas, entre elas o Brasil.
Foi somente no século XIX que se iniciou um movimento contra o tráfico de africanos escravizados, quando a Inglaterra passou a reprimir esses atos, especialmente após o Congresso de Viena (1814-1815). No Brasil, essa prática teve fim em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz.
Contudo, o mundo começou a encarar o problema do tráfico humano apenas no século XX, quando acordos internacionais foram firmados na busca de combater especialmente o tráfico de mulheres e crianças para fins de prostituição. Como a Convenção Internacional relativa à repressão do tráfico de mulheres maiores, de 1933; e a Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio, elaborada pela ONU, em 1950.
Os instrumentos jurídicos de combate ao tráfico humano
Mesmo com os avanços no século XX, os tratados internacionais elaborados até então tratavam especificamente sobre a questão da prostituição relacionada ao tráfico humano, na busca pela proteção das mulheres, que eram as mais afetadas por essa realidade.
Assim, para lidar com o tráfico humano de maneira ampla, como uma violação aos direitos humanos, no ano de 2003 a ONU promulgou o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.
O Protocolo é o principal documento de combate ao tráfico humano no mundo, sendo responsável pela conceituação atual do termo, explicada anteriormente, e por determinar que os Estados signatários adotem medidas legislativas e jurídicas necessárias para punir esse tipo de crime.
Além disso, prevê que os países adotem procedimentos de assistência e proteção das vítimas, que permitam a sua recuperação física, psicológica e social, fornecendo alojamento adequado, assistência médica, oportunidades de emprego, educação, entre outras medidas.
No Brasil, o documento foi internalizado na legislação nacional em 2004, por meio do Decreto nº 5.017. Com isso, a partir de 2006 o país iniciou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Decreto nº 5.948/2006), que estabeleceu diretrizes como o fortalecimento de atuação nas regiões de fronteira, apoio de campanhas de conscientização, cooperação entre órgãos policiais nacionais e internacionais, entre outras.
Além disso, no ano de 2016 foi aprovada no país a Lei nº 13.344, conhecida como a Lei de Tráfico de Pessoas. Ela dispõe sobre a prevenção e repressão ao tráfico humano interno e internacional e estabelece como pena a reclusão de quatro a oito anos e multa, podendo ser aumentada caso a vítima seja uma criança, adolescente, pessoa idosa ou com deficiência.
E como o tráfico humano é feito?
As organizações criminosas que realizam esse tipo de tráfico possuem diferentes métodos para executar as suas ações. Segundo Annie Carvalho, especialista em assistência social do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) da Secretaria de Justiça do DF, em reportagem para a Agência Brasil, um dos principais métodos é a enganação com base na promessa de um emprego melhor.
É o que constata uma vítima brasileira em entrevista ao site G1. Ela recebeu uma promessa de emprego nos Estados Unidos para trabalhar como secretária em uma empresa do ramo da construção civil.
Contudo, ao chegar em território norte-americano, a vítima foi sequestrada e colocada para trabalhar em cárcere privado, sendo escravizada. Ela conseguiu escapar após viver 5 meses nessa situação, conseguindo procurar por ajuda.
Muitas dessas organizações criminosas trabalham em rede, estando espalhadas em diversos países ao redor do mundo e, por atuarem a partir de falsas promessas e enganação, dificultam o seu combate. Então, o que podemos fazer para combater o tráfico humano? É o que veremos a seguir.
Os números do tráfico humano e como combatê-lo
De acordo com o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas (2020), cerca de 50 mil pessoas foram detectadas e denunciadas em 148 países como vítimas de tráfico humano somente no ano de 2018. O estudo elaborado pela UNODC também aponta que o número real de vítimas pode ser maior, devido à dificuldade de identificação desse tipo de crime.
Em relação ao perfil das vítimas, do total de pessoas traficadas, 46% correspondem a mulheres adultas, 20% são homens adultos e 34% são crianças, de ambos os sexos. Além de uma maior proporção feminina entre as vítimas, as formas de exploração também diferem em relação ao gênero.
Aproximadamente 77% das mulheres são traficadas para a prostituição e exploração sexual. Os homens, por sua vez, em 67% dos casos são traficados para o trabalho forçado, em uma espécie de escravidão contemporânea.
Já quando todos os perfis são analisados, constata-se que 50% do tráfico humano no mundo é feito por motivos de exploração sexual.
No Brasil, de acordo com o Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas (2020), entre os anos de 2017 e 2020, cerca de 203 pessoas foram resgatadas pela Polícia Federal como vítimas de tráfico humano interno e internacional.
Além disso, o relatório aponta que cerca de 615 possíveis vítimas de tráfico de pessoas foram atendidas pelo sistema de saúde entre os anos de 2017 e 2020. Sendo que aproximadamente 74% delas eram mulheres.
Nesse sentido, segundo o Conselho Nacional de Justiça, existem algumas medidas que podemos tomar para enfrentar o tráfico humano. São elas:
- Duvide de propostas de emprego fáceis e lucrativas;
- Leia atentamente o contrato de trabalho, buscando informações sobre a empresa contratante e procurando auxílio jurídico especializado;
- Evite tirar cópias de documentos pessoais e deixá-las em mãos de terceiros;
- Deixe o endereço, telefone e/ou localização do lugar para onde estiver indo viajar para alguém;
- Se informe sobre o endereço e contato de consulados, ONGs e autoridades da região em que estiver indo viajar;
- Sempre que puder, se comunique com familiares e amigos.
E, se por acaso identificar uma suspeita de tráfico humano, denuncie no Disque 100 do governo federal e procure ajuda no Ministério Público Federal e/ou em delegacias da Polícia Federal.
Conclusão
A humanidade levou séculos para efetivamente começar a lidar com um problema sério como o tráfico humano. E mesmo com os avanços legislativos e jurídicos possibilitados, principalmente no século XXI, essa prática continua a ser comum no mundo, configurando um crime lucrativo.
Como vimos, é um crime complexo e de difícil identificação por muitas vezes envolver a persuasão da vítima, que acaba saindo de seu local de origem por ser enganada. Nesse sentido, apenas o reforço e a implementação dos direitos humanos e dos direitos dos refugiados e migrantes se mostra insuficiente para combater o tráfico humano.
Toda a sociedade civil precisa se mobilizar e se conscientizar sobre essa prática, pois o acesso à informação é um importante fator de prevenção contra esse crime.
Além disso, os Estados devem cooperar entre si para agir de maneira coordenada, visto que as vítimas de tráfico de pessoas podem ter dificuldade de escapar e denunciar a sua situação por serem migrantes em um país diferente, podendo sofrer com a discriminação e a xenofobia.
Isso porque muitas vezes os migrantes enfrentam desafios e dificuldades para se integrarem socialmente, tendo os seus direitos desrespeitados. E é sobre isso que vamos falar no nosso próximo texto, em que vamos tratar sobre os desafios dos migrantes e refugiados na garantia dos seus direitos. Não perca!
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos dos Refugiados e Migrantes“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Bárbara Correia Florêncio Silva
Bianca dos Santos Waks
Camila Bravim Oliveira
Carolina Bigulin Paulon Moreno
Daniela Halperin
Eduardo de Rê
Gabriela Gomide Runha
Juliana Midori Kuteken
Maria Cecília de Oliveira Reis e Alves
Yvilla Diniz Gonzalez
Fontes:
2- BRITO, Camila; GOMES, Luís. Evolução histórica da legislação incidente sobre o tráfico de pessoas. ETIC – Encontro de Iniciação Científica, vol. 11, nº 11, 2015. Disponível em: <http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/view/4869/4622>. Acesso em: 15 de setembro de 2021.
3- CAMPOS, Bárbara. O tráfico de pessoas à luz da normativa internacional de proteção dos direitos humanos. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, vol. 7, nº 7, p. 37-49, 2007.
4- CARVALHO, Candice. Vítima de tráfico de pessoas, brasileira conta como escapou de cárcere privado nos EUA. G1, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/11/13/vitima-de-trafico-de-pessoas-brasileira-conta-como-escapou-de-carcere-privado-nos-eua.ghtml>. Acesso em: 16 de setembro de 2021.
5- CNJ. Saiba como ajudar a combater o tráfico de pessoas. Conselho Nacional de Justiça, 2012. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/saiba-como-ajudar-a-combater-o-trafico-de-pessoas/>. Acesso em: 16 de setembro de 2021.
6- CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade: a Census. London: University of Wisconsin, 1972.
7- GONÇALVES, Carolina. Tráfico humano: crime começa com promessa de realização de sonhos. Agência Brasil, 2018. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-07/trafico-humano-crime-comeca-com-promessa-de-realizacao-de-sonhos>. Acesso em: 16 de setembro de 2021.
8- SOARES, Mariana; CHAVES, Carlos. Tráfico de Pessoas: as inovações legais e as consequências penais. Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), 2019. Disponível em: <https://bdtcc.unipe.edu.br/wp-content/uploads/2019/04/TR%C3%81FICO-DE-PESSOAS.pdf>. Acesso em: 16 de setembro de 2021.
9- UNODC. Tráfico de pessoas e Contrabando de migrantes. Disponível em: <https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/index.html>. Acesso em: 15 de setembro de 2021.