Capacitismo e os desafios das pessoas com deficiência

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Capacitismo e os desafios das pessoas com deficiência
03 nov 2021
03 / nov / 2021

Capacitismo e os desafios das pessoas com deficiência

O fortalecimento da democracia passa pela luta por melhores condições de vida para todos, buscando a liberdade e a autonomia de todo e qualquer cidadão. Contudo, as desigualdades existentes em nossa sociedade dificultam essa luta, fazendo com que grupos sociais vulneráveis, como no caso das pessoas com deficiência (PcD), não tenham pleno acesso às suas garantias e direitos fundamentais.

Muito dessa realidade de difícil acessibilidade se deve às práticas discriminatórias como o capacitismo, que contribui para a construção de desafios e obstáculos para a participação ativa das pessoas com deficiência nos mais diversos âmbitos sociais, econômicos, políticos e culturais.

Para se ter uma ideia, o Banco Mundial estima que 20% das pessoas mais pobres no mundo possuem alguma deficiência e, consequentemente, tendem a ser consideradas como as mais desfavorecidas em suas comunidades.

Sendo assim, neste texto do Equidade vamos tentar entender sobre o capacitismo e alguns dos principais desafios que as pessoas com deficiência possuem para serem integradas na sociedade e terem uma vida com qualidade. 

O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre o capacitismo e os desafios das pessoas com deficiência? Segue com a gente!

Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:

O que é capacitismo?

Como falamos em nosso texto sobre a história dos direitos das pessoas com deficiência, somente no século XX a humanidade passou a adotar uma abordagem inclusiva para as pessoas com deficiência, deixando de simplesmente ignorá-los ou tratá-los como doentes a partir de uma visão médica.

Isso significa que por muito tempo essas pessoas foram discriminadas, sendo excluídas socialmente e não tendo os seus direitos reconhecidos.

Essa discriminação histórica das pessoas com deficiência também fez com que por séculos construíssemos as nossas estruturas sociais, políticas e econômicas sem considerar a participação e o envolvimento dessas pessoas.

Como consequência, mesmo com o reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência com a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, no caso do Brasil, as PcD ainda possuem dificuldades para ter acesso a serviços e recursos básicos.

Isso significa que a nossa organização social ainda funciona como uma barreira para a inserção das PcD em ambientes vitais para o desenvolvimento social coletivo e individual. Esse comportamento de segregação da sociedade na relação com as pessoas com deficiência pode ser caracterizado como uma manifestação do capacitismo.

O capacitismo consiste na desvalorização e desqualificação das pessoas com deficiência com base no preconceito em relação à sua capacidade corporal e/ou cognitiva.

Sendo assim, segundo Fiona Campbell, pesquisadora e teórica do estudo da deficiência, o capacitismo envolve crenças, práticas e processos tanto nas relações sociais, quanto nas instituições (estruturas sociais que regulam o comportamento coletivo) que considera a deficiência como um estado inferior do ser humano. Consequentemente, isso favorece a marginalização das pessoas com deficiência na sociedade. 

Nesse sentido, a conquista por espaços e oportunidades em ambientes vitais da sociedade, como no mercado de trabalho, na educação e no mundo político, se mostra essencial para a inclusão dessas pessoas e a eliminação do capacitismo. Assim, vamos ver melhor os desafios enfrentados por essas pessoas nesses ambientes.

A desigualdade, um dos maiores problemas no Brasil e no mundo, afeta mais intensamente pessoas com deficiência. Veja como podemos enfrentar esse desafio por meio das metas do ODS 10 Como reduzir a desigualdade no mundo? Conheça o ODS 10

O acesso ao mercado de trabalho

Um dos âmbitos mais desafiantes para a garantia da justiça e da igualdade para as PcD é a sua plena integração no mercado de trabalho.

Mesmo sendo reconhecido como um direito básico pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, o acesso ao trabalho é dificultado pela estrutura organizacional e funcional do ambiente de trabalho, que muitas vezes não está adaptado para atender às características e necessidades das PcD.

De acordo com uma pesquisa de 2020 da doutora em educação física Maiza Hipólito, as maiores dificuldades para a inserção das pessoas com deficiência em empresas do setor industrial são as barreiras arquitetônicas (espaços físicos não adaptados) e as próprias características do setor, como o uso de equipamentos e maquinários pesados e a presença de altas temperaturas.

Outro ponto constatado na pesquisa é a falta de programas de treinamento para a inserção e manutenção das pessoas com deficiência nas empresas.

Imagem de uma pessoa com deficiência intelectual trabalhando representando o capacitismo e os desafios das PcD no mercado de trabalho

Com isso, mesmo com a Lei n° 8.213/1991, que estabelece que empresas com mais de 100 funcionários devem preencher de 2% a 5% dos seus cargos com pessoas com deficiência, segundo dados de 2018 do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, apenas 1% das pessoas com deficiência no Brasil possuíam emprego formal.

Além disso, há uma grande dificuldade no acesso a cargos de liderança pelos profissionais com deficiência no país. De acordo com pesquisa feita pelo Santo Caos em parceria com a Catho, em 2019, somente 10% dos trabalhadores com deficiência ocupavam postos de liderança, sendo que o maior percentual (57%) se concentrava em cargos de baixa valorização.

Além de representar um sintoma do capacitismo, uma das possíveis justificativas para esse baixo índice é o difícil acesso à educação de qualidade pelas pessoas com deficiência. Algo que acaba impossibilitando a qualificação e o desenvolvimento dessas pessoas. 

Saiba mais sobre como a justiça social, igualdade de direitos e desenvolvimento sustentável se conectam: Consumo Consciente, Produção Sustentável: o caminho para o ODS 12

O acesso à educação

Em nosso texto sobre educação inclusiva, comentamos sobre a importância das instituições de ensino serem adaptadas e adequadas para receber e garantir o aprendizado das crianças e jovens com deficiência.

Porém, o desafio de ter um sistema educacional capaz de integrar plenamente os estudantes com deficiência não é exclusivo do Brasil. De acordo com a Organização das Nações Unidas, cerca de 75% das crianças com deficiência no mundo não têm acesso à educação inclusiva e de qualidade.

Esse dado demonstra que, mesmo sendo um direito fundamental, a educação ainda está longe de ser universal e acessível para todos.

No Brasil,  segundo a Agência Brasil, com base em dados do Censo Escolar de 2019, mais de 70% das escolas públicas de ensino fundamental não têm dependências adequadas para pessoas com deficiência. Em relação ao ensino médio, o percentual é de aproximadamente 56%. 

Outro obstáculo aos estudantes com deficiência diz respeito à sua permanência e aprendizagem nas instituições de ensino. De acordo com o Centro de Referências em Educação Integral, no nosso país a taxa de reprovação escolar dos alunos com deficiência é de 13,8%, enquanto que para o grupo sem deficiência a taxa é de 8,7%.

A diferença aponta para a incapacidade do sistema educacional brasileiro em proporcionar, em condições de igualdade, uma educação de qualidade para as pessoas com deficiência. 

Mas para além disso, uma clara manifestação do capacitismo no ambiente escolar é o bullying e as atitudes discriminatórias contra estudantes com deficiência, que podem causar efeitos psicológicos e emocionais negativos.

Segundo uma pesquisa feita em 501 escolas do Brasil pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas (Fipe), em 2009, cerca de 96,5% dos entrevistados tinham algum nível de preconceito contra pessoas com deficiência. 

Todos esses fatores fazem com que o desenvolvimento dessas pessoas seja comprometido e a sua inclusão social negligenciada.

Dessa forma, políticas públicas devem ser promovidas e maiores recursos devem ser destinados para garantir a implementação do direito à educação. Contudo, esse aspecto esbarra em outro desafio das pessoas com deficiência, a representação política.

A representação política das pessoas com deficiência

Mesmo possuindo aproximadamente 24% da população com algum grau de deficiência, segundo o IBGE, a representação política das pessoas com deficiência no Brasil é baixíssima.

Atualmente, há apenas dois parlamentares com deficiência eleitos no Congresso Nacional, a senadora Mara Gabrilli e o deputado federal Felipe Rigoni, o primeiro parlamentar com deficiência visual na história do Brasil.

Imagem de uma pessoa com deficiência física correndo representando o capacitismo e os desafios das pessoas com deficiência

Isso significa que há uma grande dificuldade por parte das PcD em ingressar no mundo político. Para se ter uma ideia, segundo dados levantados pela Agência Pública, apenas 1,2% dos candidatos que concorreram às eleições de 2020 tinham algum tipo de deficiência.

Destes, somente 33 vereadores e 2 prefeitos conseguiram a vitória nas urnas, o que corresponde a 0,055% do total de políticos eleitos, segundo a revista Reação, com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Para a militante pelas causas das PcD e cientista política Leila Lima, apesar dos avanços legislativos em relação aos direitos das pessoas com deficiência, a baixa representatividade política dessas pessoas é resultado do capacitismo na sociedade.

Como consequência, ações e medidas voltadas para a proteção das PcD acabam não possuindo força suficiente para alterar de maneira significativa a realidade atual das pessoas com deficiência.

Conforme o próprio deputado Felipe Rigoni: “somos ¼ da população brasileira e tem um atraso enorme em relação às políticas públicas para as pessoas com deficiência”.

Em uma tentativa de alterar esse cenário, em 2016 o senador Romário de Souza apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 34/2016, com a intenção de estabelecer uma reserva de vagas de deputado e vereador para pessoas com deficiência. Contudo, até hoje a proposta não foi aprovada.

Conclusão

A promoção da justiça e da equidade a grupos sociais vulneráveis que experimentam a desigualdade, como as pessoas com deficiência, depende de muitos fatores. Um deles são as medidas legislativas que reconhecem os seus direitos fundamentais.

Contudo, essas medidas se mostram insuficientes quando não há um compromisso coletivo com a igualdade e com a valorização dos direitos humanos

Nesse sentido, a eliminação do capacitismo e a superação dos desafios enfrentados pelas pessoas com deficiência dependem não só de políticas públicas e ações governamentais. Dependem também da conscientização social sobre a importância da inclusão e do tratamento justo e adequado para essas pessoas.

Assim, conseguiremos tornar a nossa sociedade mais inclusiva, fortalecendo os valores democráticos e contribuindo para um mundo menos desigual.

Esse é um dos objetivos do projeto Equidade, que busca colaborar para isso por meio da divulgação de conteúdos relacionados aos direitos humanos.

Esse foi o último texto que envolve o tema dos direitos das pessoas com deficiência, mas o projeto não para por aqui. Então fique ligado, pois no nosso próximo tema vamos falar sobre os direitos dos refugiados, não perca!

Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos das Pessoas com Deficiência”, confere o vídeo abaixo!

Autores:

Beatriz Cukierkorn Martins
Beatryz Santoro Pacheco
Caio Carvalho de Matos
Eduardo de Rê
Ernesto Lino de Oliveira
Juliana Meneghelli de Barros
Lucas Custódio Santos

Fontes:

1- Instituto Mattos Filho;

2- BRITO, Raimunda; MARANHÃO, Thércia. Os Principais Desafios das Pessoas com Deficiência em Adentrar o Mercado de Trabalho: Revisão Sistemática da Literatura. Revista Multidisciplinar de Psicologia, vol. 14, nº 15, p. 622-645, 2020.

3- CAMPBELL, Fiona. Refusing Able(ness): A preliminary conversation about Ableism. M/C Journal, vol. 11, nº 3, 2008. Disponível em: <https://journal.media-culture.org.au/index.php/mcjournal/article/view/46>. Acesso em: 02 de agosto de 2021.

4- HIPOLITO, Maiza. Inclusão de pessoas com deficiência em empregos do setor industrial. Tese (Doutorado em Educação Física), Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2020. Disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/349301/1/Hipolito_MaizaVilela_D.pdf>. Acesso em: 03 de agosto de 2021.

5- IVANOVICH, Ana; GESSER, Marivete. Deficiência e capacitismo: correção dos corpos e produção de sujeitos (a)políticos. Quaderns de Psicologia, vol. 22 nº 3, 2020.

6- LIMA, Jessica; SANTIAGO, Henrique. Pessoas com deficiência são apenas 1% dos candidatos nas eleições 2020. Agência Pública, 2020. Disponível em: <https://journal.media-culture.org.au/index.php/mcjournal/article/view/46>. Acesso em: 04 de agosto de 2021.

7- SANTOS, Wederson. Deficiência como restrição de participação social: desafios para avaliação a partir da Lei Brasileira de Inclusão. Ciência & Saúde Coletiva, 21 (10), p. 3007-3015, 2016.

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