Imagine o seguinte cenário: você sai com a sua família para um almoço de domingo em um restaurante que sempre quis ir. O dia está lindo, e tudo indica que vai ser um momento para ficar na memória. Ao chegar no restaurante, contudo, você se depara com uma surpresa negativa.
O lugar não possui estrutura para te receber. As mesas são próximas demais, e dificultam o movimento, não há rampas na entrada, e a sua cadeira de rodas não se encaixa nas mesas.
O que tinha tudo para ser um dia memorável, acaba se tornando uma lembrança negativa de como os espaços públicos ainda estão longe de te oferecerem condições inclusivas e participativas.
Sim, nesse cenário você é uma pessoa com uma deficiência (PcD) motora que necessita de uma cadeira de rodas para se locomover.
Mas assim como essa, existem séries de outras diferenças físicas e mentais que afetam milhões de pessoas pelo mundo, e pedem por políticas públicas de inclusão. A humanidade sempre conviveu com elas, mas ainda hoje, nem sempre essas diferenças são respeitadas como deveriam.
Foi com o objetivo de proteger e garantir justiça a todas as pessoas, independentemente de suas características físicas e mentais, que nasceram os direitos das pessoas com deficiência.
É sobre isso que vamos falar neste texto do Equidade, em que tentaremos entender melhor o que são esses direitos e qual a sua importância para todos dentro de uma sociedade.
O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender sobre o que são os direitos das pessoas com deficiência? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
O que significa ser uma pessoa com deficiência?
Para entendermos os direitos das pessoas com deficiência, precisamos primeiro compreender quem são essas pessoas e quais são as suas características e necessidades.
A deficiência já foi vista como um problema unicamente pessoal, em que o indivíduo era considerado incapaz de viver de maneira independente e realizar determinadas funções na sociedade. Nesse cenário, não havia muito o que fazer a não ser aceitar as limitações e privações de espaços e funções públicas existentes.
Atualmente, a deficiência é entendida como o resultado da interação de uma pessoa com o meio no qual vive. Portanto, ela é relacional e não se trata de incapacidade, mas sim de uma característica de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que pode ser um impedimento a partir da sua interação com o ambiente.
Olhando desse modo, fica claro que o desafio não é só da pessoa que possui a deficiência, mas também do ambiente no qual ela vive. Assim, a inclusão dessas pessoas passa por adaptações do ambiente.
Vamos tentar simplificar com um exemplo real. Na aldeia de Bengkala, na Indonésia, devido a uma questão congênita (condição ou característica existente desde o nascimento de uma pessoa), uma grande quantidade de pessoas nasceu surda.
Por conta disso, acabaram desenvolvendo uma língua de sinais própria, chamada de kata kolok, e tornaram a experiência da aldeia um tanto quanto única. Isso porque quase todas as pessoas ouvintes da região também aprenderam kata kolok, fazendo com que a comunicação na aldeia seja socialmente efetiva e a distância socioeconômica entre pessoas surdas e não surdas seja mínima.
Nesse sentido, pode-se interpretar que a surdez em Bengkala não prejudica a comunicação e não é uma desvantagem social para os seus habitantes. Ou seja, com base na interação com o ambiente, essa característica não gera impedimentos e obstruções, o que não é verdade para fora da aldeia, claro.
Essa mudança conceitual sobre deficiência foi definida pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, proclamada pela Organização das Nações Unidas, em 2006, que declara:
“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interações com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas”.
Ficou mais claro? Entendido o conceito de pessoa com deficiência, podemos partir para o que significam os seus direitos.
O que são os direitos das pessoas com deficiência?
Os direitos das pessoas com deficiência são normas e valores que buscam a proteção, o amparo e a inclusão das pessoas com impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. Esses direitos se baseiam no princípio da igualdade, em que todos devem ter condições de participação ativa na sociedade.
Nesse sentido, esses direitos lutam contra qualquer tipo de discriminação contra PcD, ou seja, toda diferenciação (ato de diferenciar), restrição (imposição de limites) ou exclusão (ato de segregar) baseada em deficiência. A discriminação impede que as pessoas com deficiência aproveitem e exerçam suas liberdades fundamentais e seus direitos humanos.
Como consequência, além do princípio da igualdade, os direitos das pessoas com deficiência também abrangem o princípio da equidade, em que o tratamento diferenciado ou preferencial deve ser adotado pelo Estado para promover a integração e o desenvolvimento social das pessoas com deficiência, como forma de reduzir desigualdades e desequilíbrios.
Se você quiser saber melhor a diferença entre igualdade e equidade, veja o nosso texto específico sobre isso.
Assim, é possível garantir diversos direitos fundamentais às pessoas com deficiência. No Brasil, eles são garantidos principalmente pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei Federal nº 13.146/2015, também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência.
No mundo, esses direitos são garantidos especialmente pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Vamos tratar sobre os direitos das pessoas com deficiência no Brasil e no âmbito global de maneira mais específica em textos futuros. Por agora, vamos falar brevemente sobre alguns deles: os direitos à acessibilidade, à saúde e à educação.
Direito à acessibilidade
A acessibilidade é um direito vital para PcD, pois ela é a garantia de que os outros direitos fundamentais poderão ser exercidos. Quando dizemos que algo é acessível, estamos dizendo que todos podem ter acesso a isso. Assim, a acessibilidade trata do acesso de todo e qualquer cidadão aos espaços e serviços públicos e privados da sociedade.
Dessa forma, esse direito garante que haja a eliminação de barreiras e obstáculos que dificultem ou impossibilitem o acesso das pessoas com deficiência a espaços públicos, ao transporte, à informação, à educação, ao trabalho, à participação política, à saúde, ao lazer, entre outros.
Com isso, a acessibilidade promove o direito à igualdade, possibilitando que qualquer pessoa, independentemente de sua deficiência, possa usufruir dos espaços e das relações sociais com segurança e autonomia.
Exemplos práticos em nosso cotidiano são as rampas, elevadores e banheiros adaptados, os transportes coletivos adaptados, as calçadas com piso tátil, os textos em braile, a presença de intérpretes de Libras em eventos em geral, as vagas exclusivas em estacionamentos, entre outros.
O cenário com o qual começamos o texto é um exemplo claro de falta de acessibilidade em um espaço. O restaurante descrito não possuía condições de receber uma pessoa que necessita de cadeira de rodas para se locomover.
Direito à saúde
O Estado é responsável por oferecer serviços de saúde pública especializada em habilitação e reabilitação de pessoas com deficiência, garantindo o tratamento prioritário e adequado tanto na rede pública, quanto particular.
Nesse sentido, a pessoa com deficiência tem o direito de receber medicamentos e equipamentos, como órteses (aparelhos externos aplicados ao corpo para alinhar, regular ou auxiliar uma parte do corpo) e próteses que compensem as suas limitações.
Além disso, o poder público deve garantir o acesso a hospitais e postos de saúde às pessoas com deficiência, sejam eles públicos ou privados. Bem como o atendimento domiciliar em casos em que não há a possibilidade de locomoção do paciente.
Pensando em casos cotidianos, você já deve ter precisado pegar senha para ser atendido em algum hospital ou posto de saúde, né? Se sim, foi possível observar que nesses locais as pessoas com deficiência não precisam aguardar atendimento em filas comuns. Elas podem retirar senhas exclusivas e devem ter preferência para serem atendidas.
Direito à educação
O acesso à educação de qualidade é outro importante direito fundamental que deve ser assegurado às pessoas com deficiência. Nesse sentido, a educação básica, média e superior devem ser adaptadas às suas necessidades, com as instituições de ensino eliminando as barreiras de estrutura física e de comunicação e informação que impeçam o aprendizado das pessoas com deficiência.
O poder público deve garantir o pleno acesso ao currículo escolar em condições de igualdade, em que a educação inclusiva é assegurada, oferecendo o suporte especializado sempre que necessário.
Também vamos falar melhor sobre a educação inclusiva em um texto próprio aqui no Equidade, continue acompanhando o projeto para saber mais.
Pensando em exemplos práticos de acesso à educação, temos a construção de infraestruturas adequadas nas escolas, como rampas de acesso e a instalação de equipamentos que possibilitem a locomoção dos estudantes, a elaboração e oferta de livros em braile, a capacitação de professores em Língua de Sinais, a disponibilização de recursos tecnológicos que permitam a comunicação, incluindo a informática adaptada, entre outros.
Além disso, no infográfico abaixo é possível conferir alguns dados que refletem a situação atual dos direitos das pessoas com deficiência no mundo.
A importância dos direitos das pessoas com deficiência
A relevância desses direitos se concentra principalmente na busca pela inclusão social dessas pessoas e no combate a qualquer tipo de discriminação. Isso porque as pessoas com deficiência ainda encontram grandes dificuldades para participarem inteiramente nas suas respectivas comunidades.
Fatores como a negligência, a pobreza, a falta de estrutura e recursos e a discriminação generalizada geram ambientes de segregação social, em que muitas vezes os direitos mais básicos acabam sendo negados.
Dessa forma, os direitos das pessoas com deficiência visam a promoção da qualidade de vida para PcD, bem como a melhoria da organização social e do funcionamento de serviços para atender essas pessoas de maneira adequada. Além disso, a necessidade desses direitos é uma consequência da grande quantidade de PcD no planeta.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, quase 1 bilhão de pessoas no mundo possuem algum tipo de deficiência.
Sendo que, de acordo com o Banco Mundial, as pessoas com deficiência têm mais chances de enfrentar adversidades, como condições socioeconômicas desfavoráveis, menor acesso à educação, condições sanitárias mais precárias e menos oportunidades de emprego.
Aqui no Brasil, segundo dados de 2010 do IBGE, ajustado pela Nota Técnica nº 01/2018, quase 13 milhões de pessoas possuem deficiência, apresentando uma grande ou total dificuldade para enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus, ou tendo deficiência mental ou intelectual.
Mesmo com esse alto número, de acordo com o Ministério da Economia, apenas 46.900 PcD foram contratados com carteira assinada no país em 2018, indicando a dificuldade do acesso a emprego e renda por essas pessoas.
Conclusão
O reconhecimento atual dos impedimentos físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais de uma pessoa como a manifestação da diversidade humana, e não como uma incapacidade, exige que muitas medidas e mudanças sejam implementadas na sociedade para que as pessoas com deficiência possam viver com dignidade.
O pleno exercício dos direitos das pessoas com deficiência prevê garantir um ambiente social totalmente acessível a PcD, eliminando qualquer barreira que obstrua a acessibilidade.
Isso porque as desvantagens sociais vivenciadas pelas pessoas com deficiência não são uma sentença natural, mas sim o produto da forma como construímos as estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais da nossa sociedade, que acabam gerando desigualdades e a exclusão social.
Essas estruturas foram construídas em um processo histórico em que por muito tempo a deficiência foi vista como uma anormalidade e uma doença a ser tratada. Dessa forma, para entendermos sobre esse processo histórico, no nosso próximo texto vamos falar sobre a história dos direitos das pessoas com deficiência, não perca!
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos das Pessoas com Deficiência”, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Beatriz Cukierkorn Martins
Beatryz Santoro Pacheco
Caio Carvalho de Matos
Eduardo de Rê
Ernesto Lino de Oliveira
Juliana Meneghelli de Barros
Lucas Custódio Santos
Fontes:
2- Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, 2006.
3- DAMASCENO, Luiz. Direitos humanos e proteção dos direitos das pessoas com deficiência. Jus, 2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/32710/direitos-humanos-e-protecao-dos-direitos-das-pessoas-com-deficiencia>. Acesso em: 05 de julho de 2021.
4- DINIZ, Debora et al. Deficiência, Direitos Humanos e Justiça. Revista Internacional de Direitos Humanos, vol. 6, n. 11, p. 65-77, 2009.
5- EVELEIGH, Mark. A cidade onde a maioria da população usa linguagem de sinais. BBC News Brasil, 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/revista-47615587>. Acesso em: 05 de julho de 2021.
6- ISAAC, Rebecca et al. Integrating people with disabilities: their rights – our responsibility. Disability & Society, vol. 25, n. 5, p. 627-630, 2010.
7- LAQUALE, Adonis. A pessoa com deficiência e o direito à acessibilidade. Jus, 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/58520/a-pessoa-com-deficiencia-e-o-direito-a-acessibilidade>. Acesso em: 05 de julho de 2021.
8- Ministério Público do Estado de Rondônia. Principais Direitos das Pessoas com Deficiência. Disponível em: <http://www.mpgo.mp.br/portalweb/hp/41/docs/cartilha_do__deficiente.mpro.pdf>. Acesso em: 05 de julho de 2021.