Para que um evento, um fenômeno social ou um acontecimento possa ser compreendido em sua totalidade, é preciso olhar para a sua história. Com os Direitos Humanos, não poderia ser diferente, visto que sua conquista não ocorreu do dia para a noite, mas foi construída socialmente.
A história dos Direitos Humanos é, antes de tudo, fruto de um processo de lutas e conquistas que representam o nosso progresso enquanto humanidade. E é sobre ela que conversaremos um pouco nesse texto do projeto Equidade.
O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender e conhecer essa história tão importante? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
Qual é a história dos Direitos Humanos?
Antes de mais nada, é importante entendermos que “direitos”, para além do sentido jurídico da palavra, são constituídos de valores que orientam a sociedade e as próprias normas elaboradas dentro dela.
Como vimos no texto sobre o que são Direitos Humanos, os valores e normas são elementos essenciais na construção de uma sociedade organizada.
E não há maneira melhor para analisarmos como e porque a humanidade foi se organizando em sociedade e estabelecendo direitos e deveres de convivência, do que pensando sobre e conhecendo o passado.
Em alguns estudos antropológicos, por exemplo, um dos critérios utilizados para determinar o nível de civilização de um povo é a sua capacidade coletiva de seguir regras, e é analisando a história desse povo que conseguimos observar se esse nível cresceu ou diminuiu e por quais motivos isso aconteceu.
Assim, pensar o passado é pensar no processo de lutas e conflitos que conduziram a existência de determinado evento, lugar, feito ou sistema. E isso não é diferente quando se trata dos Direitos Humanos.
Pensar e entender o passado desses direitos nos permite compreender o presente e possibilita enxergar todos os aspectos nos quais evoluímos com o passar do tempo, bem como os aspectos que ainda precisamos melhorar.
Dessa forma, a seguir veremos juntos alguns dos principais capítulos da história de construção dos Direitos Humanos, desde suas origens até o estabelecimento definitivo do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, vigente até os dias de hoje.
A origem dos Direitos Humanos
Por mais que hoje o termo Direitos Humanos seja bem conhecido e os tenhamos como direitos garantidos, importante destacar que nem sempre foi assim.
Essa história é longa e tem seus primeiros momentos quando o ser humano manifestou a consciência da necessidade de viver em grupo, se organizando em sociedades.
Na medida em que esses grupos foram surgindo, a vida dos indivíduos pertencentes a eles passou a ser baseada em relações sociais, como a interação cultural, religiosa, econômica e a comunicação, que exerciam um papel muito importante para a harmonia daquelas sociedades.
Mas, para que essas relações funcionassem bem, as regras passaram a ser um fator essencial, conduzindo as condutas e o comportamento de todos os que estão submetidos a elas. É nesse contexto de regras das sociedades nascentes que surgiram os primeiros elementos dos Direitos Humanos.
Foi em 539 a.C que o primeiro desses elementos apareceu na história da humanidade. Conhecido como Cilindro de Ciro, ele marcava a libertação do povo hebreu da Babilônia, além de permitir a liberdade religiosa e estabelecer a igualdade racial na região da Pérsia (atual Irã).
Mas, ainda assim, a ideia de Direitos Humanos ainda estava longe de ser um consenso global nessa época.
Para efeitos de comparação, em 450 a.C (cerca de 89 anos depois do Cilindro de Ciro) foi decretada a Lei das Dozes Tábuas na Roma Antiga, que diferente da concepção social e humana do documento da Babilônia, permitia a execução de bebês que nasciam com deficiências ou deformidades.
Dessa forma, apesar de seu elemento original ter nascido na antiguidade, os Direitos Humanos tiveram de passar por um longo processo de aprimoramento.
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A evolução dos Direitos Humanos na história
Foi só na Idade Média e na Idade Moderna que começaram a surgir mais documentos que continham em seus artigos fundamentos relacionados aos Direitos Humanos.
Um exemplo é a Carta Magna da Inglaterra, de 1215, que tem como maior contribuição a afirmação de que todo poder político tem de ser legalmente limitado.
Parece pouco, não é mesmo? Mas vale lembrar que na Idade Média os direitos civis eram praticamente inexistentes. O ordenamento social era claramente dividido entre classes socioeconômicas, que destacavam a noção de que as pessoas não eram iguais entre si e que, consequentemente, não podiam ser regidas por leis iguais.
Outro importante documento, já na Idade Moderna, foi a Declaração de Direitos (Bill of Rights) na Inglaterra, em 1689, um período que evidencia o início da transição do absolutismo presente na Europa para um Estado liberal de governo, com um poder menos centralizado.
Esse período de transição foi marcado por muitas lutas e guerras, como a guerra civil inglesa que se iniciou em 1642 e se encerrou apenas em 1688, com a Revolução Gloriosa.
Assim, foi nesse contexto que a Declaração de Direitos emergiu, consolidando a vitória do parlamentarismo inglês sobre o monarquismo, limitando o poder dos soberanos e proclamando a liberdade da eleição dos membros do Parlamento.
Apesar dos avanços, o povo continuou sem diversos direitos civis, como o direito de participar do processo de eleição.
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A Declaração de Independência dos EUA e a questão da escravidão
Já no fim na Idade Moderna, um importante evento histórico que também representa um avanço dos Direitos Humanos foi a Declaração de Independência dos EUA, em 1776. Nela é proclamado que:
“todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis”.
É o primeiro documento que declara a evidente igualdade entre todos, servindo de referência para todos os movimentos de independência dos povos colonizados na América. Mesmo assim, uma das maiores mazelas dessa época continuava existindo, a escravidão.
O colonialismo ainda era muito presente, e com ele a escravidão ainda era uma realidade. No Brasil, os primeiros contingentes de negros que foram escravizados vieram no ano de 1538, num processo que duraria três séculos, ou seja, só se encerraria após o fim da Idade Moderna.
A escravidão sofrida por tanto tempo em um território como o brasileiro, deixou enormes consequências negativas, pois é uma das principais causas da desigualdade social, mazela que perdura em nossa realidade até os dias de hoje.
Nesse sentido, é importante ressaltar que os Direitos Humanos estão diretamente ligados ao jusnaturalismo moderno, ou teoria dos direitos naturais, que rompe com a tradição do direito medieval.
A ideia do direito natural é justamente supor a existência de uma lei universal estabelecida pela natureza, diferindo do direito positivo que é caracterizado pelas leis estabelecidas pelos humanos em uma sociedade.
No período medieval, contudo, a ideia foi vinculada à religião, com base no princípio da vontade divina. Dessa forma, muitas vezes essa ideia era utilizada para justificar a superioridade de alguns sobre a inferioridade de outros, como no caso da escravidão.
Na modernidade, o princípio da vontade divina passou a ser questionado, e desse questionamento surge o jusnaturalismo moderno, que rompeu com o vínculo teológico e religioso existente.
O direito natural passou a ter ideais de liberdade, de respeito à propriedade privada e rejeição de um poder centralizador.
O jusnaturalismo moderno foi muito influenciado pelo movimento iluminista e seus pensadores, como Locke e Kant, que tinham a razão e liberdade como princípios fundamentais e, por sua vez, o jusnaturalismo influenciou as grandes revoluções liberais do século XVII e XVIII, entre elas a inglesa e a norte americana, já comentadas – bem como a Revolução Haitiana, que durou de 1791 a 1804, e que após inúmeros conflitos resultou na independência do Haiti, sendo o primeiro país do mundo a abolir a escravidão.
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A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
Indo na esteira de todo esse contexto, acontece a mais importante das revoluções liberais dessa época, a Revolução Francesa, em 1789, que marca o início da Idade Contemporânea e é tida como grande progresso em relação aos Direitos Humanos. Isso porque, o evento resultou na aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no mesmo ano.
O documento chamou a atenção da comunidade internacional pela universalidade na qual abordava o tema e muitos dos termos utilizados. A Declaração proclamava, por exemplo, que:
“Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos“.
Ou seja, os artigos não tratavam como referência apenas o povo francês da época, mas todos os povos, atraindo a opinião mundial sobre os direitos do homem.
Entretanto, o documento não possuía um caráter normativo internacional, isto é, ele não era válido para todas as nações ao redor do mundo, apenas para a França. A conquista global dos Direitos Humanos veio apenas no século XX, e é o que trataremos a seguir.
O caráter universal dos Direitos Humanos
É na primeira metade do século XX que dois eventos de proporções e consequências mundiais acontecem: a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. As destruições e os danos gerados são gigantescos e, mais do que isso, foi um momento em que enormes violações e desrespeito aos Direitos Humanos foram cometidos.
Em especial a Segunda Guerra, que registrou o maior número de vítimas (entre 70 milhões e 85 milhões), custou mais dinheiro e provocou mais mudanças mundiais do que qualquer outra guerra na história.
Além disso, ela foi marcada pela discriminação e extermínios de grupos minoritários, sendo o mais conhecido deles o Holocausto.
As crueldades vivenciadas tiveram um impacto na comunidade internacional e, após o fim da guerra, cinquenta nações, sendo o Brasil uma delas, se sensibilizaram e se reuniram na Conferência de São Francisco (1945) e assinaram a Carta das Nações Unidas, fundando a Organização das Nações Unidas (ONU).
Os objetivos da Carta, e da Organização como um todo, eram de estabelecer a paz mundial e a segurança internacional, urgindo para todas as nações adotarem meios pacíficos para resolver os seus conflitos, a fim de não repetirem os erros do passado e evitar que uma nova guerra mundial se tornasse realidade.
É nesse espírito de responsabilização e harmonização internacional que a ONU elabora a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 1948.
O episódio é considerado um marco para o direito internacional, por ser a primeira estrutura formal e material de proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana em âmbito global.
Aprovada por meio da Resolução 217 A (III), a Declaração é alçada como uma norma para ser alcançada por todos os povos e nações do mundo.
Os Direitos Humanos, então, se tornam uma preocupação mundial e o processo de universalização é consolidado, formando o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos. Com isso, há o reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Em seu artigo 1º, a DUDH afirma que:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Grande semelhança com a expressão citada anteriormente do documento da Revolução Francesa, não é mesmo?
Baseado no caráter universal do documento, toda pessoa passa a ser protegida simplesmente pelo fato de existir e ser um ser humano. Pois, antes de ser cidadão de seu respectivo país, todo indivíduo é um cidadão do mundo perante os olhos do direito internacional.
Ou seja, todo ser humano, independentemente de sua nacionalidade, origem, nacionalidade, etnia, raça, sexo, língua ou religião, possui garantidos todos os direitos fundamentais e inalienáveis estabelecidos na Declaração Universal.
Dentre esses direitos, destacamos o direito à vida, à liberdade, à justiça, ao acesso à segurança social, à nacionalidade, ao trabalho, educação, habitação, lazer, saúde, serviços sociais, bem-estar, vestuário e alimentação.
Em outras palavras, os Direitos Humanos buscam assegurar que todos, sem exceção, tenham todas as condições adequadas para levar uma vida digna.
Atualmente, a Assembleia das Nações Unidas adota, além da Declaração, nove principais tratados internacionais de Direitos Humanos, sendo que cada um deles conta com um Comitê de especialistas independentes que monitoram a sua implementação por parte dos Estados membros.
Inclusive, o Brasil é signatário de quase todos os principais acordos internacionais relacionados aos Direitos Humanos. Você pode conferir mais sobre os principais tratados internacionais de Direitos Humanos e sobre os Direitos Humanos no Brasil aqui no projeto Equidade.
Conclusão
O que pode ser percebido ao analisar, mesmo que de maneira breve, toda a história dos Direitos Humanos, é que seus pilares de construção e sustentação sempre foram baseados na liberdade e no princípio de que o sujeito em destaque é o ser humano, em seu maior valor individual de existência.
Conforme observado, durante muito tempo a humanidade viveu sob um regime de centralização quase total de poder, em que os direitos civis e políticos eram praticamente nulos.
Os indivíduos não eram tratados como iguais, pois não tinham o reconhecimento de igualdade, eram diferenciados e discriminados pelos mais diversos aspectos, fossem eles sociais, econômicos, de gênero, religiosos, entre outros.
A conquista da igualdade custou para acontecer e hoje, pelo menos no papel, ela existe. Isto é, os Direitos Humanos não nascem integrados a uma ideia de universalidade, essa ideia foi se desenvolvendo de modo gradual na história e, agora que alcançamos essa vitória, temos a responsabilidade de defender esses direitos.
Só assim conseguiremos fazer com que as suas garantias sejam efetivamente estabelecidas na vida de todos.
Essa é a vontade e o objetivo maior do projeto Equidade, que busca contribuir para uma sociedade mais justa, democrática e humana, por meio da disseminação de conhecimento sobre os Direitos Humanos.
E agora que você compreendeu melhor sobre a história desses direitos, você pode conferir o nosso texto sobre o Sistema Internacional de Proteção e os tratados internacionais de Direitos Humanos, para saber mais sobre como funcionam e são aplicados os Direitos Humanos no mundo.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos Humanos“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Bárbara Correia Florêncio Silva
Eduardo de Rê
Helórya Santiago de Souza
Julia Piazza Leite Monteiro
Luíza da Camara Chaves
Marcella Caram Zerey
Marília Lofrano
Yvilla Diniz Gonzalez.
Fontes:
2- CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. 5ª edição, São Paulo: Saraiva Educação 2018.
3- Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), 1948.
4- Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789;
5- Declaração de Independência dos EUA, 1776.
6- Declaração de Direitos (Bill of Rights), 1689
7- FONSECA, Ricardo M. Para uma possível teoria da história dos Direitos Humanos. Revista Pensar. Fortaleza. Vol. 16, n. 1, p. 273-291, 2011
8- HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
9- LIMA JR, Jayme B. Manual de Direitos Humanos Internacionais: Acesso aos Sistemas globais e Regional de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora Loyola, 2002.
10- Lei das XII Tábuas, 450 a.C
11- TOSI, Giuseppe. História conceitual dos Direitos Humanos. In: TOSI, Giuseppe, Direitos Humanos: História, teoria e prática. João Pessoa: Editora UFPB, 2005, p. 105-135.
12- VANIN, Carlos E. Um breve resumo do direito natural. Jus Brasil. Artigo de site. Disponível em: <https://duduhvanin.jusbrasil.com.br/artigos/190252298/um-breve-resumo-do-direito-natural>. Acesso em: 04/11/2020