O Brasil é um país profundamente religioso. Segundo o relatório Liberdade Religiosa no Mundo, elaborado em 2021 pela organização Aid to the Church in Need, cerca de 90% da população brasileira se identifica como cristã.
Ao mesmo tempo, 4,8% da população é espírita, 1,9% de outras religiões e somente 2,7% se considera agnóstico (não segue nenhuma religião, mas não nega a possibilidade da existência de divindades).
Assim, é possível considerar que a crença religiosa e a liberdade de culto são aspectos de grande importância na cultura brasileira, influenciando a formação sócio-cultural do país. Nesse contexto, a proteção à liberdade religiosa é tida como essencial para que todas as pessoas possam exercer livremente as suas crenças.
Essa proteção é garantida pela legislação nacional, que prevê a liberdade de cultos religiosos como um direito fundamental no país. Mas você sabe exatamente como a liberdade de culto é protegida e quais são as suas garantias? É isso que vamos entender neste texto do Equidade.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, a Civicus e o Instituto Mattos Filho voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender sobre como a liberdade de culto é protegida no Brasil? Segue com a gente!
Confira também o nosso podcast sobre o assunto, no qual conversamos com a a Bárbara Correia, Oficial do Programa sobre Racismo Religioso no Instituto Race and Equality:
Contexto histórico da liberdade religiosa no Brasil
Apesar da grande religiosidade da população brasileira, como vimos anteriormente, não foi desde sempre que os cidadãos tiveram a permissão de manifestar as suas convicções religiosas livremente.
Na verdade, a pluralidade de cultos e a sua expressão foi por muito tempo rechaçada no Brasil. Durante o período colonial (1500-1822), com a chegada dos colonizadores, o cristianismo foi imposto no país como uma forma de dominar os nativos que viviam no território nacional.
Essa imposição, de acordo com o mestre em direito constitucional Walber da Silva Gevu (2017), se dava numa perspectiva de interesses no que diz respeito à relação entre a coroa portuguesa e a Igreja Católica.
Isso porque a unificação em massa em torno de uma religião facilitaria o controle e o domínio português sobre o território e a população, ao mesmo tempo em que beneficiaria o catolicismo manter o seu poder de influência.
Como consequência, durante a maior parte do período colonial, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição esteve ativo no Brasil. Assim, o uso da força e da violência foi utilizado para consolidar o cristianismo em um local onde os indivíduos não conheciam os seus dogmas e ritos.
Com isso, as religiões indígenas cultuadas nesse período sofreram diversas repressões, pois, além do interesse de dominação, os cultos e a religiosidade dos indígenas remetiam às forças da natureza e abrangiam práticas e visões consideradas como “profanas” e “inferiores” pelos colonizadores.
Dessa forma, houve um processo de doutrinação e catequização dos nativos indígenas, por meio das chamadas expedições missionárias, para que fossem obrigados a seguir as convicções cristãs. O resultado disso foi o desaparecimento de muitas culturas indígenas.
A liberdade dos cultos religiosos no Brasil Império
Em 1822, o Brasil se tornou independente, passando a não ser mais controlado por Portugal (pelo menos em teoria). Assim, o país dava os seus primeiros passos como Estado soberano e, com isso, em 1824 outorgou a sua primeira Constituição.
Nela, a Religião Católica Apostólica Romana foi decretada como a religião oficial do Império e o culto de diferentes religiões ficou proibido em espaços públicos, sendo permitido somente em ambientes domésticos.
Além da proibição de manifestação religiosa pública, a celebração de culto que não fosse o oficial passou a ser criminalizada, com a elaboração do Código Criminal do Império em 1830,.
Além disso, o fator social e cultural herdado do período colonial contribuiu para o preconceito e o estigma contra outras religiões, especialmente as de matriz africana (praticadas pelos escravizados) e os rituais indígenas.
Ambos os cultos, muitas vezes, eram enxergados como “feitiçaria” e eram perseguidos e marginalizados socialmente, revelando em si uma discriminação étnica-racial vez que a cultura europeia era valorizada acima das demais.
Dessa forma, os primeiros avanços em direção à liberdade religiosa ocorreram somente após a proclamação da República (1889), com a adoção da Constituição de 1891, que determinou que o Estado não tinha religião oficial.
Além disso, o documento afirmou que todos os indivíduos e religiões podiam realizar os seus cultos de forma livre e pública no país. Mas as ameaças e perseguições às religiões não cristãs continuaram a ser recorrentes.
Muitas vezes, em nome dos “bons costumes” e da “ordem pública”, a liberdade de culto era restringida no país. O próprio Código Penal da República (1890), que ficou em vigor até 1940, criminalizava práticas como o espiritismo e a capoeira.
A conquista da liberdade religiosa no Brasil
Apenas no século XX a liberdade religiosa foi de fato reconhecida como um direito fundamental para todo e qualquer cidadão no país. A legislação vigente mais antiga sobre essa questão é o Código Penal de 1940.
Essa lei foi a primeira a especificar como crime o desrespeito ao culto religioso. Assim, o seu artigo 208 prevê multa, ou detenção de um mês a 1 ano, para quem ridicularizar publicamente alguém por motivos religiosos, impedir a prática de cultos ou desprezar publicamente um ato ou objeto de culto religioso.
Além disso, a pena pode ser aumentada em um terço caso haja o emprego de violência. Contudo, foi anos mais tarde, após o processo de redemocratização do país, que a liberdade religiosa foi amplamente efetivada como um direito fundamental.
Isso ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que traz a dignidade da pessoa humana e a igualdade como princípios essenciais para a garantia da cidadania pelo Estado brasileiro.
Sendo assim, o seu artigo 5º estabelece que a liberdade de consciência e de crença são invioláveis e assegura o livre exercício de cultos religiosos no país. Culto, nesse caso, entendido como um conjunto de ritos ou atos, individuais ou coletivos, realizados para a adoração daquilo que é tido como sagrado.
Nesse sentido, o inciso VI do art. 5º garante que todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país são livres para escolher e praticar a sua religião, tanto em espaço público como doméstico.
Além disso, o inciso VII garante a liberdade e a assistência religiosa para pessoas que estão em entidades de internação coletiva, como hospitais, prisões e quartéis militares. Já o inciso VIII, trata que ninguém pode ser privado dos seus direitos por motivos de crença religiosa, filosófica ou política.
Para além disso, no âmbito da liberdade religiosa, a Constituição garante:
- A laicidade do Estado brasileiro (art. 19, inciso I);
- A isenção de impostos para templos de qualquer culto (art. 150. inciso VI, alínea “b”);
- A autorização da possibilidade de oferta de ensino confessional de diversas crenças (art. 210);
- O efeito civil, nos termos da lei, ao casamento religioso (art. 210, §2º);
- A diversidade das expressões culturais, incluindo crença religiosa, como princípio do Sistema Nacional de Cultura (art. 216, §1º, inciso I).
Outras leis nacionais de proteção à liberdade de culto
A Constituição de 1988 impactou toda a legislação nacional no que diz respeito aos direitos e liberdades fundamentais. Assim, diversas leis foram sendo elaboradas e implementadas posteriormente para que os dispositivos constitucionais fossem efetivados. No caso da liberdade religiosa, isso não foi diferente.
Assim, no ano de 1989 entrou em vigor a Lei 7.716, também conhecida como Lei Caó, que estabeleceu diretrizes relacionadas à liberdade religiosa, visto que muitas religiões e crenças estão ligadas a aspectos culturais étnico-raciais.
Essa lei reconhece como crime impedir a contratação de alguém devidamente apta ao cargo por motivos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Além disso, tendo em vista a intolerância contra religiões de matriz africana, configura a discriminação religiosa como crime de racismo.
Já no ano de 1997, entrou em vigor a Lei nº 9.459, reconhecendo a ofensa por motivos de religião como um crime imprescritível e inafiançável, em que a data quando o crime ocorreu não importa para a condenação e o acusado não pode pagar fiança para responder em liberdade.
Com isso, praticar, induzir ou incitar a discriminação por motivos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional é um crime que resulta em reclusão de um a três anos e multa.
Recentemente, outra lei que fortaleceu a liberdade de culto foi a Lei nº 13.796, publicada em 2019. Ela garante aos estudantes o direito de se ausentar da sala de aula em dias que a sua religião não permite atividades.
A lei foi benéfica e influenciou a alteração da aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em dois domingos consecutivos, em vez de um único fim de semana. Assim, os candidatos sabatistas (pessoas que preservam o sábado por motivos religiosos) puderam realizar a prova no horário regular.
Normas regionais de fortalecimento à liberdade religiosa
Além da legislação válida em todo o território nacional, comentada anteriormente, existem também diversas leis locais de promoção e proteção da liberdade religiosa no Brasil. Dentre elas, destacam-se:
- Lei nº 8.113/2018: Criou, em 2018, o Estatuto Estadual da Liberdade Religiosa no estado do Rio de Janeiro, estabelecendo, entre outras diretrizes, a livre expressão e manifestação da crença religiosa por todos os meios legais permitidos.
- Lei nº 9.451/2019: Instituiu, em 2019, o Estatuto da Igualdade Racial de Combate à Intolerância Religiosa no município de Salvador, com o objetivo de garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades e o combate à discriminação racial e religiosa.
- Lei nº 17.346/2021: Sancionada pelo governo do estado de São Paulo, essa lei regulamenta o princípio da livre manifestação de crença em âmbito estadual. Assim, estabelece multas em casos comprovados de perturbação de cerimônias e cultos religiosos, vandalização de símbolos sagrados e discriminação em escolas.
- Lei nº 9.210/2021: Criou a Política de Combate à Intolerância Religiosa no estado do Rio de Janeiro, em complemento ao Estatuto de 2018. A política visa, dentre outros objetivos, incentivar ações relacionadas à liberdade religiosa e criar mecanismos de denúncia de discriminação motivada por religião.
A real situação da liberdade religiosa no Brasil
Segundo a organização Pew Research Center (2018), para 72% da população brasileira, a religião é muito importante para as suas vidas.
Contudo, apesar dessa valorização e das garantias legais de proteção à liberdade de culto, casos de intolerância e violência religiosa ainda são comuns no país. Um caso memorável ocorrido no ano 2000 ilustra esse cenário.
Foi o caso do crime cometido contra a líder religiosa Mãe Gilda em Salvador, que teve o seu terreiro de Candomblé invadido e depredado por um grupo de cristãos. Em vista do atentado, Mãe Gilda faleceu vítima de infarto.
Dessa forma, em memória da data do ocorrido, foi promulgada em 2007 a Lei nº 11.635, determinando o dia 21 de janeiro como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa no Brasil.
Esse episódio ilustra uma realidade que ainda se faz presente no Brasil. De acordo com o Metrópoles, com base em dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foram registradas 586 denúncias de intolerância religiosa no ano de 2021 no país.
O número indica um crescimento de 141% em relação ao ano anterior (2020). E, além de ser alarmante, pode não representar todos os crimes e casos envolvendo discriminação por motivos de religião.
Isso porque em 2020, apenas no estado do Rio de Janeiro, mais de 1,3 mil crimes registrados podem estar ligados à intolerância religiosa, conforme aponta a CNN com base em números do Instituto de Segurança Pública (ISP).
Além disso, importante destacar que a discriminação ocorre majoritariamente contra adeptos de religiões de origem africana e afro-brasileiras, como Candomblé e Umbanda. Segundo a organização Aid to the Church in Need (2021), apesar de representar apenas 2% da população, os praticantes dessas religiões tem de 130 a 210 vezes mais chance de sofrerem discriminação religiosa.
Conclusão
No Brasil, o direito fundamental de professar (ou não) uma religião ou crença, podendo realizar cultos e cerimônias, é inerente a todo e qualquer indivíduo. Isso significa que todos aqueles que fundamentam as suas convicções no sagrado e, todos aqueles que não acreditam em nada ligado à religião, precisam ter as suas liberdades respeitadas.
Essa é uma conquista recente em nosso país e marca um longo caminho de repressão e discriminações contra a livre expressão religiosa. Nesse sentido, esse direito precisa ser fortalecido de modo a proteger a dignidade humana de todos, em que a implementação prática das garantias existentes elimine a discriminação que ainda é real.
Em uma verdadeira democracia, o respeito mútuo e a tolerância são bases da convivência harmônica, em que mesmo não concordando com as convicções e opiniões de outros, devemos garantir o seu direito de expressá-las. Sendo assim, a defesa da liberdade de culto fortalece, consequentemente, os princípios democráticos na nossa sociedade.
Dessa forma, é preciso que não apenas o Estado construa e aplique mecanismos jurídicos e políticas públicas que promovam esse direito, mas que todo indivíduo se conscientize sobre a importância do respeito à diversidade religiosa.
A intolerância religiosa representa atos e comportamentos, fundamentados em preconceitos e estigmas sociais, tanto individuais quanto coletivos, que são impulsionados pelo fanatismo.
Mas você quer entender mais a fundo sobre isso? Então não perca o próximo texto do Equidade, no qual vamos abordar sobre a tolerância religiosa como expressão dos direitos humanos!
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Liberdade Religiosa“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Bernardo Zahran Rache de Almeida
Eduardo de Rê
Felipe Lima Matthes
Giovanna de Cristofaro
Juliana Meneghelli de Barros
Mariana Carneiro Campos Niccoli
Mariana Carolina Rezende
Fontes:
2- Constituição Federal de 1988.
3- FONSECA, Alexandre; ADAD, Clara (org.). Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015): resultados preliminares. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos – Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, SDH/PR, 2016. 146 p. Disponível em: <https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/RelatorioIntoleranciaViolenciaReligiosaBrasil.pdf>. Acesso em: 31 de março de 2022.
4-GEVU, Walber. Um olhar histórico-jurídico da Liberdade Religiosa no Brasil: do império à Constituição Cidadã (1824-1988). Revista Cantareira – Edição 27, 2017. Disponível em: <https://revistacantareiracom.files.wordpress.com/2018/01/e27a01.pdf>. Acesso em: 31 de março de 2022.
5- Lei 7.716/89.
6- Lei nº 9.459/97.
10- Lei nº 17.346/2021.
12- MORAIS, Márcio. Religião e Direitos Fundamentais: o princípio da liberdade religiosa no Estado Constitucional Democrático Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, nº 18, p. 225-242, 2011.
13- OLIVEIRA, Bruno. Liberdade Religiosa no Brasil Império e no Brasil Contemporâneo. RMDUFAL, Maceió, vol. 1, nº 1, 2010.
14- Pews Research Center. Religion is very important to people in Africa, the Middle East, South Asia, Latin America. 2018. Disponível em: <https://www.pewresearch.org/religion/2018/06/13/why-do-levels-of-religious-observance-vary-by-age-and-country/pf-06-13-18_religiouscommitment-01-00/>. Acesso em: 31 de março de 2022.
15- RIOS, Alan. Religiões de matriz africana são alvos de 59% dos crimes de intolerância. Correio Braziliense, 2019. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/11/11/interna_cidadesdf,805394/religioes-de-matriz-africana-alvos-de-59-dos-crimes-de-intolerancia.shtml>. Acesso em: 31 de março de 2022.
16- SALLES, Stéfano. RJ teve mais de 1,3 mil crimes que podem estar ligados à intolerância religiosa. CNN, 2021. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/rj-teve-mais-de-1-3-mil-crimes-que-podem-estar-ligados-a-intolerancia-religiosa/>. Acesso em: 31 de março de 2022.
17- TEIXEIRA, Angélica. A liberdade religiosa no Brasil. Monografia da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Caratinga. 2013, 59f. Disponível em: ,https://dspace.doctum.edu.br/bitstream/123456789/896/1/Liberdade_Religiosa_no_Brasil._Ang%C3%A9lica_Seghetto.pdf>. Acesso em 31 de março de 2022.