No ano de 2020, a morte de George Floyd, afro-americano de 40 anos morto asfixiado por um policial, nos Estados Unidos, desencadeou uma sequência de protestos que denunciavam não só a violência policial, mas o preconceito e a discriminação racial presente na sociedade estadunidense.
Com o slogan “Vidas negras importam”, as manifestações popularizaram o debate sobre esse episódio não ser apenas um ato de violência policial, mas a consequência de um racismo estrutural no país.
O debate se intensificou justamente pelos negros serem um grupo étnico-racial em situação de vulnerabilidade nos EUA, desfavorecidos socioeconomicamente e mais prováveis de serem vítimas de violência.
Aqui no Brasil não é diferente. De acordo com o Mapa da Violência (2016), morrem cerca de 30 mil jovens entre 15 e 29 anos por ano, sendo que 77% deles são negros, resultando na morte de um jovem negro a cada 23 minutos no país. Será que isso é reflexo do racismo estrutural também presente no Brasil?
Bem, é justamente sobre racismo estrutural que vamos falar neste texto do Equidade, buscando explicar o seu significado e o que ele representa para a sociedade.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre o que é racismo estrutural? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
Primeiro, o que é racismo?
Para entendermos sobre o racismo estrutural, precisamos primeiro entender sobre o racismo, seu significado e a sua origem. De maneira geral e direta, o racismo está ligado à uma ideia discriminatória entre os seres humanos baseada nas diferenças externas e corporais que possuem.
E que essas diferenças são uma manifestação de superioridade ou inferioridade de determinados grupos em detrimento de outros.
Isso significa que o racismo estabelece uma visão de hierarquia entre raças. Raça, como já vimos no nosso texto sobre direitos étnico-raciais, pode ser entendida como um grupo de pessoas que possui determinadas características físicas e hereditárias em comum. Isto é, características como o formato dos olhos, a cor da pele, a cor do cabelo, entre outros.
Dessa forma, segundo o professor universitário Silvio Almeida, o racismo se diferencia do preconceito e da discriminação racial.
O preconceito é entendido como a definição de um conceito sobre determinada pessoa ou grupo. Isso ocorre, por exemplo, na frase pejorativa “negros são mais violentos”, visto que ela pressupõe e conceitua que negros são violentos.
A discriminação racial é entendida como dar tratamento diferenciado a alguém ou a um grupo em razão da raça. Um caso hipotético de discriminação racial seria proibir um negro de frequentar determinado ambiente ou estabelecimento apenas por sua cor de pele.
E o racismo, por fim, é entendido como uma forma sistemática de discriminação, por meio de práticas conscientes ou inconscientes que resultam em desvantagens a determinado grupo racial.
Nesse sentido, o racismo engloba não apenas o preconceito e a discriminação, mas também todas as relações sociais, políticas, jurídicas e econômicas que desfavorecem uma pessoa ou grupo por conta de sua raça. Um exemplo hipotético seria uma tendência de realização de abordagens policiais truculentas contra indivíduos apenas devido à sua raça.
Qual a origem do racismo?
Em grande parte das civilizações ocidentais, em especial nas Américas, o racismo, entre outros fatores, tem origem na dominação imposta pelos colonizadores nas populações nativas dos países colonizados.
No caso do Brasil, essa dominação perdurou durante todo o período colonial (1500-1822) e imperial (1822-1889) do país, em que os povos indígenas e africanos foram escravizados no território nacional.
A escravização desses grupos ocorreu justamente pela concepção de inferioridade que lhes era atribuída pelos colonizadores.
Ou seja, o modo de vida, a cultura e a forma de se relacionar desses grupos eram vistas como algo não civilizado pelos colonizadores e, portanto, era preciso implementar um processo civilizatório para ensinar esses povos a viverem a partir do modelo de vida europeu.
A escravidão e a exploração foram as marcas desse processo civilizatório, que entre outros efeitos gerou intensa miscigenação (mistura de povos e etnias) no Brasil, o que também pode ser explicado pelo fato de que uma das formas de dominação adotada pelos colonizadores, além da violência física e psicológica, os trabalhos forçados, a imposição da negação da identidade desses povos, foi a violência sexual contra mulheres indígenas ou negras.
A imposição de uma cultura sobre a outra e a inexistência de direitos para os grupos negros e indígenas por aproximadamente quatro séculos, fez permanecer a visão de inferioridade desses grupos em países como o Brasil e EUA, mesmo após a abolição da escravidão.
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As consequências da escravidão
Os longos anos do sistema escravocrata geraram uma herança racista na sociedade atual em relação aos fatores sociais, econômicos, políticos e culturais que a compõem.
A herança pode ser entendida como tudo aquilo que é transmitido individualmente e coletivamente com base nas ações que foram tomadas no passado.
No caso do racismo, a herança está em todas as relações que foram construídas durante anos na sociedade com base na crença equivocada de inferioridade das raças escravizadas, incluindo costumes, valores e comportamentos.
Nos EUA essa herança foi evidente, visto que o país manteve um sistema legal de segregação racial durante boa parte do século XX. Nesse período, os negros foram marginalizados social e legalmente, não podendo frequentar os mesmos ambientes que os brancos.
Como no caso dos ônibus, em que as primeiras filas de assentos eram reservadas para brancos. Além disso, os negros não possuíam os seus direitos civis reconhecidos.
No Brasil, após a abolição da escravatura, com a promulgação da Lei Áurea, em 1888, os negros sofreram com a falta de políticas inclusivas que os integrassem na sociedade.
A discriminação racial continuou presente nas relações sociais e econômicas, visto que a libertação não trouxe garantias fundamentais diretas aos negros, como o ingresso ao mercado de trabalho, direito à educação, saúde, moradia, entre outros.
O processo de incentivo estatal para imigração de europeus durante o início do século XX ao país foi um sintoma disso, visto que os imigrantes brancos eram priorizados na contratação para trabalhos remunerados.
Os negros não eram aceitos para assumir novos trabalhos e ocupar novos cargos. Muitos eram simplesmente expulsos das fazendas e outros continuavam trabalhando nos engenhos em troca de sustento e moradia.
Nesse sentido, a vinda dos europeus foi uma estratégia governamental utilizada para que os imigrantes brancos fossem beneficiados no acesso ao trabalho e na posse de terras, impossibilitando a propriedade de terras por parte dos negros e índios.
Isso significa que esses povos continuaram sendo excluídos socialmente, não tendo de forma igualitária o acesso aos mesmos recursos, oportunidades e condições de vida das pessoas brancas.
Com isso, a abolição não mudou de maneira substancial as estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais que foram estabelecidas.
Pode-se dizer que as bases da sociedade construídas até então possuíam o racismo como seu elemento de sustentação. E essas bases não deixaram de existir após a libertação dos escravos.
Mas afinal, o que quer dizer racismo estrutural?
A herança discriminatória da escravidão (todas as relações com base na ideia de inferioridade dos negros que foram transmitidas) em conjunto com a falta de medidas e ações que integrassem os negros e indígenas na sociedade, como políticas de assistência social ou de inclusão racial no mercado de trabalho, gerou o que se entende por racismo estrutural, ou seja, uma discriminação racial enraizada na sociedade.
Isto é, o racismo estrutural não diz respeito ao ato discriminatório isolado (como xingar pejorativamente alguém por conta da cor da sua pele) ou até mesmo um conjunto de atos dessa natureza.
Ele representa um processo histórico em que condições de desvantagens e privilégios a determinados grupos étnico-raciais são reproduzidos nos âmbitos políticos, econômicos, culturais e até mesmo nas relações cotidianas.
Vamos tentar simplificar. Em uma sociedade, como a brasileira, na qual as suas instituições (normas e padrões que condicionam o comportamento dos indivíduos) foram criadas e consolidadas a partir de uma visão racista de mundo, temos que a estrutura dessa sociedade possui o racismo como seu componente.
Uma manifestação prática dessa estrutura pode ser observada na ocupação dos negros em cargos de chefia nas 500 maiores empresas do país, que segundo a pesquisa da Ethos, é de apenas 10%, mesmo os negros sendo a maioria da população nacional. Isso significa que o racismo estrutural é parte da própria ordem social e é reproduzido de forma consciente ou inconsciente em todos os aspectos políticos, econômicos e sociais da sociedade.
Dessa forma, o racismo estrutural se expressa nas desigualdades raciais presentes na sociedade, sejam elas políticas, econômicas ou jurídicas.
No Brasil, por exemplo, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de homicídios de pessoas negras aumentou 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto que o de pessoas não negras diminuiu 12%. Além disso, das 4.519 mulheres assassinadas no país em 2018, 68% delas eram negras.
No âmbito econômico, segundo o IBGE, a diferença salarial entre negros e não negros, tanto em ocupações formais quanto informais, chega a até 73%. Sendo que, de acordo com a pesquisa realizada pelo Instituto Ethos, a participação de negros no quadro executivo e de gerência nas 500 maiores empresas do país é de apenas 4,7% e 6,3%, respectivamente.
Como combater o racismo estrutural?
Bem, se o racismo estrutural significa que a discriminação racial é inerente a todas as estruturas da sociedade, é possível combatê-lo? Sim, é possível, mas não é uma tarefa fácil e exige esforços conjuntos e individuais. De forma simples e direta, para combater o racismo estrutural é preciso que sejam implementadas práticas antirracistas efetivas.
Nesse sentido, segundo Silvio Almeida, uma instituição que se preocupa com a questão racial deve investir em políticas que visem:
- promover a igualdade e a diversidade, tanto de modo interno quanto externo, como por exemplo, na publicidade;
- remover obstáculos para a ascensão de minorias;
- manter espaços para debates e eventual revisão de práticas institucionais;
- promover o acolhimento de conflitos raciais e de gênero.
Uma forma de combate no Brasil são as ações afirmativas. Que podem ser definidas como políticas que visam beneficiar pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no presente.
Assim, as ações afirmativas buscam aumentar a participação desses grupos no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, entre outros.
Um exemplo é a Lei nº 12.990, de 2014, também conhecida como Lei de cotas. Ela determina que 20% das vagas oferecidas em concursos públicos da administração pública federal, das autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União sejam destinadas a pessoas negras.
Outro exemplo recente foi o programa de trainee feito em 2020 pela empresa Magazine Luiza, em que somente candidatos negros podiam participar da seleção. A ação buscava combater as desigualdades étnico-raciais em empresas privadas, configurando um programa de inclusão racial no mercado de trabalho.
O caso rendeu reações negativas à empresa, que foi acusada de praticar “racismo reverso”. No entanto, o Ministério Público Federal defendeu a constitucionalidade do programa.
Conclusão
Agora que chegamos ao fim do texto, podemos voltar aos casos citados na introdução e nos questionarmos: será que a morte de George Floyd e o grande número de assassinatos de jovens negros no Brasil estão relacionadas ao racismo estrutural presente nessas sociedades?
Bem, o racismo estrutural evidencia que a reprodução, mesmo que inconsciente, de um discurso ou prática, seja no âmbito político, social ou econômico, contém um racismo embutido em suas raízes. Por isso ele é tão difícil de identificar e também de combater.
Em países como o Brasil, o fim do racismo estrutural está ligado com o fim das desigualdades raciais, que afetam de forma mais intensa os grupos étnico-raciais vulneráveis historicamente.
Dessa forma, políticas públicas e iniciativas privadas de inclusão que buscam pela equidade racial precisam ser executadas. Como a promoção de direitos étnico-raciais que reconheçam as necessidades específicas de cada grupo. É o caso dos direitos dos quilombolas no Brasil, que é o assunto do nosso próximo texto aqui no Equidade.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos Étnico-raciais“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Eduardo de Rê
Isabela Campos Vidigal Takahashi de Siqueira
Julia Reis Romualdo
João Pedro de Faria Valentim
Leonardo Gabriel Reyes Alves da Paes
Fontes:
2- ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro. São Paulo: Pólen Livros, 2019.
3- BATISTA, Waleska. A inferiorização dos negros a partir do racismo estrutural. Revista Direito Práxis, Rio de Janeiro, vol. 9, nº 4, p. 2581-2589, 2018.
4- BERSANI, Humberto. Aportes Teóricos e Reflexões sobre o Racismo Estrutural no Brasil. Extraprensa, São Paulo, v. 11, nº 2, p. 175-196, 2018.
5- ESTEVES, Gabriel. As relações étnico-raciais no Brasil: cultura e preconceito. Revista Espaço de Diálogo e Desconexão, vol. 10, n. 2, p. 111-117, 2018. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/redd/article/view/11898/7953>. Acesso em: 12 de março de 2021.
6- FERRAZ, Marina. Trainee do Magazine Luiza é constitucional e deve ser replicado, diz MPF. Poder 360, outubro de 2020. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/brasil/trainee-do-magazine-luiza-e-constitucional-e-deve-ser-replicado-diz-mpf/>. Acesso em: 15 de março de 2021.
7- GUIMARÃES, Antonio. Preconceito de cor e racismo no Brasil. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 47, nº 1, 2004.
8- NASCIMENTO, André; MEDEIROS, Maria. O fim da escravidão e as suas consequências. IV Colóquio de História – Abordagens Interdisciplinares sobre História da Sexualidade, UNICAP, p. 309-316, 2010. Disponível em: <http://www.unicap.br/coloquiodehistoria/wp-content/uploads/2013/11/4Col-p.309.pdf>. Acesso em: 11 de março de 2021.
9- SANTOS, Tahinan. As Consequências de Escravidão na História do Negro no Brasil. Diamantina Presença “Educação e Pesquisa”, vol. 2, nº 1, p. 47-57, 2019.
10- SCHWARCZ, Lilia. Usos e Abusos da mestiçagem no Brasil: uma história das teorias raciais em finais do século XIX. Afro-Ásia, 18, p. 77-101, 1996.