Na busca por um mundo pacífico e pela convivência harmoniosa entre os seres humanos, a comunidade internacional vem adotando medidas que visam a proteção de grupos sociais considerados vulneráveis. É nesse sentido que surgem os Princípios de Yogyakarta, que buscam pela aplicação dos direitos humanos, previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), à comunidade LGBTQIAP+.
Os princípios representam a primeira tentativa de criação de normas internacionais relacionadas à defesa da liberdade de identidade de gênero e de orientação sexual. Nesse texto, do projeto Equidade, explicamos tudo sobre os Princípios de Yogyakarta e qual a sua importância para os direitos LGBT+.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre os Princípios de Yogyakarta e os direitos LGBT+? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
Primeiramente, o que são os Princípios de Yogyakarta?
No ano de 2006, especialistas em direito internacional dos direitos humanos de 25 países diferentes se reuniram para elaborar um material voltado especialmente para a proteção da comunidade LGBTQIAP+. A reunião entre os especialistas ocorreu na cidade de Yogyakarta, na Indonésia, e resultou na formação de um documento final intitulado de “Princípios de Yogyakarta”.
Os Princípios de Yogyakarta são um documento internacional que reconhece as violações de direitos por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero como violações de direitos humanos. O documento possui o objetivo de que seus princípios e dispositivos sejam aplicados na legislação internacional de direitos humanos. Nesse sentido, o seu texto observa que os integrantes da comunidade LGBTQIAP+ fazem parte de um grupo marginalizado socialmente e, por isso, precisam ser protegidos no âmbito do direito internacional.
Em 2007 o material foi apresentado no Conselho de Direitos Humanos da ONU, com o objetivo principal de mapear as experiências de violação de direitos humanos sofridas por pessoas devido a suas orientações sexuais e identidades de gênero. Buscando averiguar a possibilidade da aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos conforme os princípios do documento, criando a obrigação dos Estados em cumpri-los e aplicá-los.
Entretanto, os Princípios de Yogyakarta não foram incorporados como legislação oficial do direito internacional. Visto que os seus redatores não eram representantes governamentais oficiais dos seus respectivos países.
Isso não significa que o documento não possui uma grande relevância na defesa dos direitos LGBT+. Na verdade, ele é tido como um dos documentos internacionais mais importantes para a comunidade LGBTQIAP+ global. Isso porque não há outro documento de nível internacional que aborde de forma tão específica e ampla os direitos LGBT+ e a sua relação com os direitos humanos.
E o que diz o documento?
Os direitos tratados nos Princípios de Yogyakarta são divididos em grupos temáticos que totalizam os 29 princípios declarados no documento. São os temas: a universalidade dos direitos humanos, os direitos e liberdades fundamentais (como direito à vida, saúde, trabalho, liberdade, segurança, e privacidade), a não-discriminação, a liberdade de expressão, o direito a migração e asilo, o direito à participação e, por fim, a promoção dos direitos humanos.
Por conta da grande extensão dos princípios, destacamos alguns dos direitos que fazem parte dos temas comentados.
- Direito da população LGBTQIAP+ ao gozo universal dos direitos humanos: estabelece que os Estados devem emendar leis, reconhecer a indivisibilidade de todos os aspectos da identidade humana e implementar programas de educação e conscientização para garantir o gozo dos direitos humanos por todos. (Princípio 1).
- Direito da população LGBTQIAP+ à igualdade e à não-discriminação: estabelece que os Estados devem incorporar os princípios de igualdade e não-discriminação por motivos de orientação sexual e identidade de gênero nas suas constituições nacionais e outras leis apropriadas. Visando eliminar atitudes ou comportamentos preconceituosos ou discriminatórios contra a comunidade LGBTQIAP+. (Princípio 2).
- Direito ao reconhecimento da população LGBTQIAP+ perante a lei: determina que todas as pessoas devem usufruir de capacidade jurídica (ter direitos e deveres). Sendo que ninguém pode ser forçado a realizar procedimentos médicos para ter a sua identidade de gênero reconhecida legalmente. Assim como nenhuma pessoa deve sofrer pressões para esconder, reprimir ou negar sua orientação sexual ou identidade de gênero. (Princípio 3).
- Direito da população LGBTQIAP+ de constituir família: determina que os Estados tomem medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para garantir o direito de constituir família. Incluindo acesso à adoção ou reprodução assistida, sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero. (Princípio 24).
- Direito da população LGBTQIAP+ a recursos jurídicos e medidas corretivas eficazes: estabelece que toda pessoa vítima de violação dos direitos humanos tem direito a recursos jurídicos eficazes e adequados. Sendo que o Estado deve estabelecer procedimentos jurídicos necessários, incluindo a revisão de leis e políticas, para garantir que vítimas de violação dos direitos humanos por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero tenham acesso a esses recursos jurídicos. (Princípio 28).
Além disso, no ano de 2017 o documento passou por uma atualização, em que mais 9 princípios foram incluídos aos originais, resultando em 38 princípios totais. Os novos princípios tratam sobre o direito à integridade física e mental, à liberdade de criminalização e sanção, à proteção da pobreza, ao saneamento, à verdade, ao gozo dos direitos humanos em relação às tecnologias da informação e comunicação e o direito de praticar, proteger, reviver e preservar a diversidade cultural.
A importância dos princípios
Como já foi falado, o documento não faz parte do direito internacional. Fazendo com que os países membros da ONU e signatários dos tratados internacionais de direitos humanos não sejam obrigados a seguí-lo. Mesmo assim, os Princípios de Yogyakarta causaram um grande impacto internacional em relação ao respeito dos direitos LGBT+ no mundo.
Depois de sua publicação, vários países passaram a citar ou utilizar o documento como referência na garantia dos direitos fundamentais à comunidade LGBTQIAP+. Um exemplo é a Holanda, em que o governo federal publicamente endossa os Princípios de Yogyakarta, que serviram de base para a elaboração de uma lei federal para a proteção dos transgêneros, em 2014. A nova lei permite que pessoas transgêneras possam mudar a sua identidade de gênero nos documentos de identificação oficiais do país, para qualquer gênero de sua preferência.
No Uruguai, a Lei 18.620, que reconhece a identidade de gênero de todo cidadão uruguaio, assim como o direito de mudar o seu nome e sexo em documentos de identificação oficias do país, foi decretada em 2009, seguindo o terceiro princípio dos Princípios de Yogyakarta. Além disso, a elaboração da Resolução 17/19 de 2011 da ONU, a primeira resolução a reconhecer os direitos LGBT+ como integrantes dos direitos humanos, ocorreu somente após a existência dos princípios.
E no Brasil?
O documento também influenciou a tomada de medidas e políticas pelo Estado brasileiro. Em 2008, por exemplo, o Brasil apresentou na Assembleia Geral da OEA o projeto de resolução AG/RES. 2435 (XXXVIII-O/08), sob o título “Direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero”. O projeto citava explicitamente os Princípios de Yogyakarta como referência para que atos violentos, motivados por orientação sexual ou identidade de gênero, representassem violação dos direitos humanos.
Além disso, também no ano de 2008, a Secretaria Especial de Direitos Humanos republicou o documento para distribuição na 1ª Conferência Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. O texto final da conferência também faz menção direta aos princípios, destacando a sua importância.
Conclusão
Os Princípios de Yogyakarta são uma manifestação internacional sobre a necessidade de incluir toda a comunidade LGBTQIAP+ como sujeitos dos direitos humanos. A relevância desse documento se concentra justamente em apontar o reconhecimento dessa inclusão de maneira mundial. As declarações expostas em seus 38 princípios influenciaram a implementação de políticas públicas e de medidas legislativas por Estados voltadas para a proteção da população LGBTQIAP+, mesmo que de maneira indireta.
Assim, o documento demonstra que existe a necessidade de que haja um documento de caráter jurídico, reconhecido pelo direito internacional, que aborde sobre esse tema. Ou até mesmo que os próprios Princípios de Yogyakarta conquistem esse caráter. Podendo assim, exigir formalmente dos Estados uma atuação ativa na garantia dos direitos LGBT+ como direitos humanos.
Como vimos, algumas ações feitas pelo Brasil com o objetivo de garantir esses direitos ocorreram especialmente depois dos princípios serem publicados para o mundo. Isso porque muitos esforços são necessários para eliminar os preconceitos existentes contra essa população. Um desses preconceitos é a transfobia, que será o assunto do nosso próximo texto aqui no Equidade, em que vamos falar sobre o que isso significa e quais são os seus impactos na sociedade. Então continue com a gente!
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos LGBT+“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Bárbara Correia Florêncio Silva
Bianca dos Santos Waks;
Caio Rigon Ortega;
Carina Janson Odfjell;
Edgard Prado Pires;
Eduardo de Rê
Francisca Guerreiro Andrade;
Lucas Henrique De Lucia Gaspar;
Yvilla Diniz Gonzalez;
Fontes:
2- ALAMINO, Felipe; VECCHIO, Victor. Os princípios de Yogyakarta e a proteção de direitos fundamentais das minorias de orientação sexual e de identidade de gênero. Rev. Fac. Dir. Univ. São Paulo, vol. 113, p. 645-668, 2018.
3- CUNHA, Neon. Da sobrevivência LGBTS aos Princípios de Yogyakarta e o Observatório no Grande ABC. In: BLASS, Nicole. Gênero e Diversidade Sexual percursos e reflexões na construção de um Observatório LGBT. São Paulo: Editora pontocom, 1. ed, 2016.
4- LIMA, Andréia; COSTA, Priscila. As leis LGBT no Brasil e no Uruguai: a Experiência da CEDSRIO na Realização da Política Pública para Diversidade Sexual. Rev. Episteme Transversalli, Volta Redonda-RJ, vol. 10, n. 1, p. 258-271, 2019.
5- MONTESINOS, Carlos. Los Princípios de Yogyakarta en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Trabajo Académico para optar el título de Segunda Especialidad en Derecho Internacional Público. Pontificia Universidad Católica del Perú, Facultad de Derecho, 2019.
7- PULGARÍN, Mauricio. Teoría y práctica de los princípios de Yogyakarta en el derecho internacional de los Derechos Humanos. Revista Análisis Internacional, n. 3, 2011.
8- VIANA, Thiago. Da (in)visibilidade à cidadania internacional: a longa caminhada das pessoas LGBTI nos sistemas global e interamericano de Direitos Humanos. Revista Publius, v. 1, n. 1, 2014. Disponível em: <http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpublius/article/view/2237/4310>. Acesso em: 17 de maio de 2021.