Deixar o lar nem sempre é uma tarefa fácil. Memórias sentimentais, familiares e amigos são deixados para trás em busca de uma vida melhor. A escolha pela mudança pode ser voluntária e racional, na procura por melhores condições de vida ou simplesmente por vontades individuais.
Mas pode também ser forçada, quando as pessoas se veem obrigadas a abandonar suas casas, como aconteceu no recente episódio em Cabul no Afeganistão, onde centenas de pessoas invadiram a pista do aeroporto da cidade buscando uma forma de fugir de uma realidade do regime Talibã.
Essas realidades são vividas por migrantes e refugiados ao redor do mundo, que deixam os seus lugares de origem para enfrentar processos migratórios. Os processos migratórios, apesar de existirem há muito tempo na humanidade, possuem grande complexidade em relação às suas causas e consequências, que podem ser tanto individuais, quanto coletivas.
Assim, na tentativa de regulamentar esses processos e proteger as pessoas envolvidas, existem os direitos dos refugiados e dos migrantes. E é isso que vamos entender melhor neste texto do Equidade.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender quais são os direitos dos refugiados e migrantes? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
Primeiramente, o que significa estar refugiado?
O deslocamento de pessoas no planeta não é um fenômeno novo, e pode-se dizer que foi e é fundamental para a maneira como a sociedade global se organiza e se comporta. Podemos utilizar como exemplo o Brasil, nosso próprio país, para entender a importância desse fenômeno.
Foi devido às chamadas Grandes Navegações, que consistiram na exploração marítima com finalidades comerciais, executadas especialmente por Portugal e Espanha nos séculos XV e XVI, que ocorreu a ocupação do Brasil por europeus em 1500.
Mesmo após esse período, o Brasil continuou a receber diversos povos estrangeiros ao longo das décadas e séculos que se passaram, resultando em uma grande miscigenação étnica e cultural que hoje contribui para a diversidade e a pluralidade da nossa sociedade.
Contudo, nem sempre o deslocamento e a migração humana ocorrem de maneira voluntária, possuindo como objetivo uma melhor qualidade de vida.
Se pensarmos mais uma vez no recente caso do Afeganistão, percebe-se que a tomada do país pelo Talibã resultou na saída em massa de afegãos da região, pelo medo da perseguição e da violência do grupo.
Sendo assim, a ação humana de se locomover para outro lugar pode ser involuntária e forçada, por motivos de conflitos armados, perseguição política, racial, religiosa e social e/ou graves violações de direitos humanos, sendo que as pessoas que passam por essa situação podem ser caracterizadas como refugiadas.
Nesse sentido, os refugiados se diferenciam dos migrantes por demandarem a proteção internacional de um outro Estado uma vez que suas vidas se encontravam em risco em seus países de origem, devido a uma das hipóteses de perseguição ou conflito acima mencionadas. Vamos entender melhor essa diferença a seguir.
A diferença entre refugiado e migrante
Muitas vezes esses termos acabam sendo confundidos por se tratarem de assuntos relacionados à motivação da saída de determinada pessoa do seu lugar de origem.
Contudo, a diferenciação entre refugiados e migrantes é profundamente importante, visto que os termos possuem não só significados distintos, mas implicações e efeitos diferentes.
As pessoas podem migrar pelos mais variados motivos. Podem deixar um lugar pelo desejo de viver em um ambiente com o clima mais agradável, podem buscar melhores condições financeiras, uma melhor educação, ou podem fazê-lo por questões familiares e pessoais, entre outros exemplos.
Essas pessoas que escolhem se deslocar são consideradas migrantes e a sua principal diferença para os refugiados e os migrantes forçados está na voluntariedade do movimento de mudança.
O refugiado, por outro lado, é um migrante involuntário, obrigado a se deslocar em decorrência de conflitos armados, perseguição política, racial, religiosa e social e/ou graves violações de direitos humanos, que colocam suas vidas em risco.
Para o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), os refugiados são definidos como:
“pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados”.
Mas e em relação aos migrantes forçados, não seria a mesma coisa? Em princípio, sim, mas tecnicamente, não. O migrante forçado também se desloca por motivos de desequilíbrios econômicos, fome, pobreza, desastres naturais, conflitos, violação de direitos, etc.
Contudo, ao contrário do refugiado, que se encontra em uma situação ainda mais vulnerável por não possuir a proteção estatal do seu país, o migrante forçado continua tendo acesso seguro ao seu país de origem. Isso significa que, muitas vezes, o responsável pelas ameaças e perseguições contra os refugiados é justamente o Estado dos países onde nasceram.
Nesse sentido, o migrante forçado, que teve que se deslocar, ainda possui os direitos e as seguranças que lhe são garantidas como cidadão dentro do seu país original.
O refugiado, por sua vez, não pode retornar ao seu país, pois além de ter seus direitos violados, muitas das vezes, não possui sequer proteção estatal e pode até mesmo perder a sua vida. Para simplificar, pode-se dizer que todo refugiado é um migrante forçado, mas nem todo migrante forçado é um refugiado.
E quais são os direitos dos refugiados e dos migrantes?
Entendido quem são os refugiados e quem são os migrantes, agora podemos compreender quais são os direitos garantidos a essas pessoas.
Os direitos dos refugiados e dos migrantes são normas, regras e princípios que visam proteger a dignidade e os direitos humanos dessas pessoas, garantindo-lhes direitos fundamentais como educação, saúde, liberdade e trabalho.
Esses direitos surgiram especialmente no século XX, após a Segunda Guerra Mundial, que impactou de maneira profunda os países europeus e seus vizinhos. O conflito gerou uma mobilização da comunidade internacional no sentido de criar regras para o grande fluxo de pessoas que se deslocaram por conta da guerra.
Nesse sentido, em 1951 foi fundado o ACNUR pela Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo permanente de garantir que os direitos individuais e coletivos previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) sejam respeitados e aplicados aos refugiados.
Como meio de assegurar e concretizar tal objetivo, foi elaborada a Convenção de 1951, também conhecida como Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto do Refugiado, representando grande conquista de direitos aos refugiados e aos migrantes no mundo.
Inicialmente, o documento se aplicava apenas às pessoas que se encontrassem em situação de refúgio em decorrência de acontecimentos anteriores a 1951.
Tendo isso em vista, e com o intuito de ampliar os direitos previstos para todos aqueles que deles necessitassem, em 1967 foi elaborado o Protocolo de 1967, aplicando os direitos da Convenção de 1951 para todos os refugiados, sem limites de data e espaço geográfico.
Assim, hoje, os Estados signatários do documento, como o Brasil, devem garantir direitos sociais, econômicos e jurídicos tanto dos refugiados, quanto de qualquer migrante estrangeiro, sendo proibidos de expulsar ou rechaçar um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou liberdade possa ser ameaçada.
Essa proibição de expulsão ou rechaçamento é baseada no princípio do non-refoulement, em que os países, de maneira alguma, podem afastar as pessoas refugiadas para as fronteiras de locais onde podem sofrer perseguições de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou políticas.
Além disso, os Estados devem garantir tratamento em condições de igualdade com os demais cidadãos, sendo o refugiado e o migrante obrigados a se conformar com as leis e regulamentos nacionais do país que o acolhe.
E no Brasil?
Atualmente, o Brasil possui um amplo conjunto legislativo de proteção aos refugiados e migrantes, podendo ser considerado referência na efetivação dos seus direitos.
Além de formalizar e internalizar os tratados internacionais de direitos dos refugiados e migrantes, o país possui legislações específicas para essas pessoas no contexto brasileiro.
A Constituição Federal de 1988, por exemplo, responsável pela promoção dos direitos humanos no país, garante o princípio da dignidade humana aos refugiados e migrantes. Em seu artigo 5º, caput, é disposto que todos são iguais perante a lei, garantindo aos brasileiros e estrangeiros residentes no país os direitos fundamentais previstos na Constituição.
Além disso, a Lei nº 9.474, elaborada em 1997, prevê a implementação dos direitos previstos na Convenção de 1951 no país e ampliou a definição de refugiado, passando a abranger a grave e generalizada violação de direitos humanos.
Essa lei também gera a formação do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), órgão nacional responsável pelo auxílio e proteção aos refugiados no país.
Outra importante lei brasileira é a chamada Nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), que ampliou os direitos dos migrantes no país, permitindo, por exemplo, a sua manifestação política.
A realidade dos refugiados e migrantes
A importância dos direitos comentados se deve principalmente a difícil realidade das pessoas que deixam os seus países de origem, que acabam enfrentando obstáculos para serem integradas socialmente, especialmente os refugiados.
Segundo um estudo publicado pela ONU em 2020, cerca de 40 milhões de pessoas deslocadas no mundo se encontram em situação de alto risco de violência, discriminação e abusos.
Para Gillian Triggs, assistente para Proteção do ACNUR, o principal fator que contribui para esse alto índice é o grande volume de conflitos armados ao redor do mundo. Desses conflitos, destaca-se a Guerra na Síria, que é considerada o epicentro da maior crise de refugiados dos últimos tempos, com cerca de 6,6 milhões de sírios tendo sido obrigados a deixar o seu país de origem.
Além disso, outra dificuldade enfrentada por migrantes e refugiados diz respeito à exclusão e o preconceito nos países em que são recebidos.
De acordo com Mariana Echandi, assistente oficial do ACNUR no México, a discriminação, a depressão, a ansiedade e o estigma são algumas das situações enfrentadas pelos refugiados ao procurarem um lugar seguro para viver.
Esse problema é também conhecido como xenofobia, situação em que o preconceito da população nacional contra os estrangeiros compromete o acolhimento e o desenvolvimento humano dessas pessoas.
No Brasil, o maior número de refugiados e migrantes são venezuelanos, totalizando aproximadamente 253 mil pessoas em 2019, segundo o relatório Global Report (2019), elaborado pelo ACNUR. Já em 2020, de acordo com o Observatório das Migrações Internacionais, o Brasil registrou mais 17.385 solicitações de refúgio provindas da Venezuela, representando cerca de 60% do total das solicitações registradas durante o ano.
Além disso, no infográfico abaixo é possível conferir alguns dados que refletem a situação atual dos direitos dos refugiados e migrantes no mundo:
Por fim, ressaltamos que vamos falar melhor sobre as migrações e as suas garantias internacionais, sobre os direitos dos refugiados e migrantes no Brasil e também sobre a xenofobia em textos específicos aqui no Equidade, então continue acompanhando o projeto para saber mais.
Conclusão
O fluxo e a movimentação de pessoas entre as nações é um tema que faz parte da agenda dos direitos humanos. Assim, os direitos dos refugiados e dos migrantes expressam a necessidade de reconhecimento do ser humano como portador de direitos independentemente da sua nacionalidade.
Com isso, os Estados são responsáveis por aplicar medidas e ações que correspondam na proteção dessas pessoas, exercendo a solidariedade internacional.
Mas o princípio da solidariedade não deve ser exclusivo do Estado, todos os cidadãos nacionais devem ter esse princípio em suas vidas, contribuindo para o combate à discriminação e ao preconceito contra refugiados e migrantes.
Até porque, se hoje temos uma sociedade global espalhada pelo mundo, foi graças aos deslocamentos feitos pela humanidade ao longo de sua história. E para entender sobre esse processo histórico, no próximo texto do Equidade vamos falar sobre a história dos direitos dos refugiados e migrantes, não deixe de conferir!
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos dos Refugiados e Migrantes“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Bárbara Correia Florêncio Silva
Bianca dos Santos Waks
Camila Bravim Oliveira
Carolina Bigulin Paulon Moreno
Daniela Halperin
Eduardo de Rê
Gabriela Gomide Runha
Juliana Midori Kuteken
Maria Cecília de Oliveira Reis e Alves
Yvilla Diniz Gonzalez
Fontes:
2- ACNUR. Refugiados. Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/refugiados/>. Acesso em: 25 de agosto de 2021.
3- COSTA, Marli; REUSCH, Patrícia. Migrações Internacionais (Soberania, Direitos Humanos e Cidadania). Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro, vol. 8, nº 2, p. 275-292, 2016.
4- ECHANDI, Mariana. Da discriminação à integração: refugiados urbanos no México. Review: a integração, Genebra, nº 5, 2007.
5- ONU News. Quase 40 milhões de deslocados em alto risco de violência, discriminação e abusos. Organização das Nações Unidas, 2020. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2020/11/1734522>. Acesso em: 26 de agosto de 2021.
6- SALAHUDDIN, Sayed. O medo se espalha no Afeganistão: “ninguém nos ajudou a deter o Talibã”. El País, 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-08-14/o-medo-se-espalha-no-afeganistao-ninguem-nos-ajudou-a-deter-o-taliba.html>. Acesso em: 26 de agosto de 2021.
7- TEIXEIRA, Paula A. Direitos humanos dos refugiados. Prismas: Dir. Pol. Publ. e Mundial. Brasília, vol. 6 nº 1, p. 15-34, 2009.
8- UBER, Francielle. O Estado diante da Questão dos Refugiados. In: SILVA, César A. (org). Direitos Humanos e Refugiados. Editora UFGD: Dourados. Universidade Federal da Grande Dourados, p. 99-123, 2012.