Religiosidade como direito: do passado ao presente

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Religiosidade como direito: do passado ao presente
31 maio 2022
31 / maio / 2022

Religiosidade como direito: do passado ao presente

A experiência religiosa possui um caráter tanto individual, quanto coletivo, e ela está presente na humanidade desde os seus tempos mais antigos. Isso porque podemos considerar que rituais, cerimônias e o culto a fenômenos naturais são acontecimentos expressos até mesmo em civilizações pré-históricas.

Sendo assim, podemos considerar a religião, bem como a religiosidade, como produções humanas, que englobam fatores culturais e sociais e, normalmente, estão associadas com a ligação do ser humano àquilo que ele considera como sagrado ou divino.

Contudo, o livre culto do sagrado ou a expressão de crenças e práticas religiosas nem sempre foram consideradas como um direito. Ou seja, por muito tempo, em determinadas sociedades, pessoas ou grupos simplesmente não podiam crer naquilo que quisessem.

Na verdade, o reconhecimento da liberdade religiosa como direito fundamental é relativamente recente. Ainda mais recente é a sua inclusão dentro do rol de direitos humanos reconhecido em âmbito mundial.

Nos dois casos, representam conquistas que trazem consigo um contexto histórico de discriminações e perseguições motivadas pela intolerância. 

Assim, para entender melhor sobre esse contexto, neste texto do Equidade vamos abordar sobre a construção histórica da religiosidade como um direito na humanidade, compreendendo sobre a conquista da liberdade religiosa.

O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, a Civicus e o Instituto Mattos Filho voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender sobre a conquista da religiosidade como um direito? Segue com a gente!

Confira também o nosso podcast sobre o assunto, no qual conversamos com a Daniela Halperin, advogada de Compliance e Ética Corporativa do escritório Mattos Filho:

O que é religiosidade?

Antes de entrarmos no contexto histórico em si, é bom termos em mente alguns conceitos básicos sobre o que estamos tratando, como religião e religiosidade .

No sentido etimológico (estudo sobre as origens das palavras) a palavra religião surge do termo em latim “religio”, que pode significar “respeito ao sagrado” ou “reverência aos deuses”.

Dessa forma, a religião seria o que conecta o ser humano com aquilo que se acredita ser o divino. Assim, em uma perspectiva sociológica, a religião também pode ser interpretada como um conjunto de crenças (menos ou mais institucionalizadas) que forma as convicções de espiritualidade e do sagrado, assim como as visões de mundo do ser humano.

A religiosidade, por sua vez, está diretamente relacionada com o exercício das atividades religiosas, englobando as suas práticas, cultos e tradições. Isso significa que a religiosidade pode ser interpretada como o estado de ser religioso, envolvendo a expressão ou a prática da crença.

Em resumo, a religião está voltada ao âmbito organizacional, em que dogmas, crenças e ritos são instituídos e regulamentados. Já a religiosidade está voltada ao lado pessoal, no exercício individual de aspectos religiosos.

Sabia que milhares de pessoas perdem a vida devido à violência motivada pela intolerância religiosa? O ODS 16 se dedica a combater essa e outras formas de violência, além de promover a paz e a justiça social. Leia mais sobre esse ODS em: Como o ODS 16 ajuda a combater a violência e promover uma cultura de paz?

A religiosidade em tempos passados

Indícios históricos apontam que o ser humano esteve voltado a atividades tidas como religiosas desde o período pré-histórico. Isso porque há registros de períodos como o Paleolítico (por volta de 4 a 2 milhões de anos até 10.000 a.C) e o Neolítico (7.500 a.C até 2.500 a.C), que indicam a realização de práticas ritualísticas como o sepultamento.

Essa prática indica uma preocupação com o momento pós-morte e com o sobrenatural. Nesses períodos, também foram encontradas pinturas com simbologias e representações de danças e rituais que podem ser interpretadas como xamânicas (práticas espirituais ancestrais tidas como mágico-religiosas).

Além disso, muitas dessas expressões e símbolos se relacionavam com os fenômenos da natureza, que eram entendidos como manifestações divinas.

Imagem de uma pessoa com as mãos em posição de oração em frente à diversas velas, representando a religiosidade

Mas, mesmo com a religiosidade já fazendo parte da vida humana, foi apenas com a formação das primeiras civilizações sedentárias (aquelas que, por conta do desenvolvimento da agricultura, deixavam de ser nômades e se estabeleciam em lugares fixos) que as primeiras religiões, de fato, surgiram e foram institucionalizadas. E com elas, surgiram também as perseguições e as discriminações.

Na Antiguidade

O continente africano,  berço civilizatório da humanidade, também representou o surgimento da religião: a egípcia

Os egípcios acreditavam na existência de vários deuses, crença conhecida como politeísta. Também acreditavam na vida após a morte e viam os faraós (imperadores que governaram a região) como os intermediários dos deuses.

Isso significa que o Egito Antigo funcionava como uma teocracia (governo fundamentado na religião), em que as crenças religiosas definiam as leis.

Além disso, as práticas religiosas e ritualísticas faziam parte do cotidiano dos egípcios e eram centrais de sua cultura, mas não havia liberdade para práticas que fugiam das diretrizes estabelecidas pelos faraós. Ou seja, a religiosidade não era um direito individual

Alguns milênios depois, olhando para uma outra civilização, que representa uma das matrizes da sociedade ocidental, temos um dos primeiros e mais importantes registros de perseguição religiosa. Estamos falando da Roma Antiga, especificamente do Império Romano, quando ocorreu a perseguição aos cristãos (seguidores dos ensinamentos de Jesus Cristo).

Isso ocorreu em vista do cristianismo, religião nascida na Palestina, passar a negar práticas religiosas comuns da cultura romana, como o sacrifício aos deuses, desagradando os governantes da época. Com isso, se intensificou uma visão social negativa em relação aos cristãos.

Essa perseguição se intensificou com o tempo e chegou ao seu ápice no século IV, quando o imperador Diocleciano decretou a destruição dos edifícios de culto cristão, assim como a extinção dos direitos de cidadania dos cristãos, gerando a morte de milhares de pessoas.

Mas, ainda no mesmo século, após os horrores das perseguições, o imperador Constantino revogou os decretos de opressão e permitiu a religiosidade cristã em Roma.

Esse momento marca o início da aproximação entre o cristianismo e o poder político de Roma. Com isso, o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, em 390 d.C.

Na Idade Média e Moderna

Foi nos períodos da Idade Média e da Moderna que a liberdade religiosa sofreu os seus maiores reveses.

Isso porque, como coloca o doutor em linguística Sidnei Nogueira em seu livro “Intolerância Religiosa”, o cristianismo passou de vítima para uma posição de algoz, em que sua hegemonia resulta em intolerância a outras práticas religiosas.

Os maiores exemplos disso consistem nas Cruzadas e no movimento da Inquisição. As Cruzadas ocorreram entre os séculos XI e XIII e foram expedições promovidas pela Igreja Católica para conquistar territórios na Palestina (tida como Terra Santa) e expandir o cristianismo.

Essas expedições travaram diversas batalhas e resultaram no massacre de judeus e muçulmanos, assim como na conquista de diversos territórios pela Igreja Católica e pela imposição do cristianismo como religião oficial.

 O movimento da Inquisição, por sua vez, consistiu na opressão da Igreja Católica contra os não adeptos ao cristianismo em geral, especialmente contra os judeus e os muçulmanos.

De maneira objetiva, esse movimento estabeleceu um sistema jurídico da repressão a quem não seguia os dogmas e preceitos estipulados pela Igreja.

Essas pessoas eram acusadas de heresia ou bruxaria, sofrendo torturas e sendo condenadas à prisão e penas de morte apenas pela expressão de suas religiosidades serem diferentes dos moldes cristãos.

A Inquisição existiu entre os séculos XIII e XIX e não há um consenso histórico sobre o seu número total de vítimas, isso porque o movimento foi iniciado pelos países ibéricos (Espanha e Portugal), mas não se concentrou apenas na Europa. 

Por exemplo, as colônias portuguesas e espanholas, como as americanas (incluindo o Brasil) e as africanas, também foram diretamente afetadas pela Inquisição. Mas é fato que milhares de vidas foram atormentadas e/ou interrompidas em vista dessa perseguição religiosa.

A conquista pela liberdade religiosa como direito no mundo

Nesse contexto, foi somente no século XX que a livre religiosidade foi reconhecida como um direito em âmbito global. Isso ocorreu como consequência de um movimento histórico, influenciado, dentre vários outros movimentos, pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa movimentos que marcaram o início da Idade Contemporânea (1789-presente).

No Iluminismo e na Revolução Francesa, os princípios de liberdade e igualdade foram altamente valorizados por ambos os movimentos.

Nesse sentido, a Revolução Francesa resultou no estabelecimento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), representando um dos primeiros documentos a expressar que ninguém poderia ser maltratado por conta de suas crenças religiosas.

Além disso, o documento possui forte influência na determinação dos direitos humanos no século XX, que ocorreu com a fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), após a Segunda Guerra Mundial, marcada, dentre diversas outras atrocidades, pela perseguição aos judeus. 

Essa perseguição, também conhecida como holocausto, acarretou no genocídio de aproximadamente 6 milhões de judeus pelo regime nazista, que além da intolerância religiosa contra o judaísmo, perseguiu outras minorias como negros, ciganos e a população LGBTQIAP+.

Nesse contexto, a ONU surge com o objetivo de pacificar a comunidade internacional e garantir o respeito pela dignidade humana, para que as atrocidades cometidas não voltassem a se repetir. 

Assim, em 1948 a organização elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que pode ser considerada como o primeiro tratado internacional que incluiu a determinação da liberdade religiosa como um direito para todos os seres humanos, sem exceção.

Nesse sentido, a Declaração expressa que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, buscando garantir a dignidade humana e o respeito pelos princípios da igualdade, da liberdade e da justiça.

Mas, apesar do avanço conquistado na proteção da livre religiosidade dos indivíduos ao redor do mundo, a intolerância religiosa continuou a ser uma realidade em muitos países, exigindo o fortalecimento desse direito em nível internacional.

O fortalecimento da liberdade religiosa no mundo

A discriminação religiosa continuou a existir no mundo e se intensificou no século XX em determinadas regiões, como no caso do Oriente Médio. Isso porque o conflito Israel-Palestina tomou novas proporções, em que ambos os Estados passaram a reivindicar o território de Jerusalém.

O conflito, além de geopolítico, é também religioso, por representar um embate entre judeus e muçulmanos. Diversas foram as batalhas travadas na segunda metade do século XX entre esses povos, como a Guerra dos Seis Dias (1967), a Guerra de Yom Kippur (1973) e a Primeira Intifada (1987).

Em um claro desrespeito ao direito da livre religiosidade e expressão de crença, além desse conflito, diversos outros países registraram conflitos e intolerâncias religiosas em seus territórios.

Como no caso da Nigéria, no chamado Massacre dos Ibos (1966), do Líbano, em sua guerra civil (1975-1985), entre outros. 

Diante desse contexto, diversos mecanismos foram construídos pela ONU na busca de reforçar a liberdade religiosa no mundo e exigir dos Estados o fim da discriminação e da violência por motivos religiosos.

Assim, em 1966 foi elaborado o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de maneira a aprimorar os direitos humanos reconhecidos até então. Nele, além da liberdade religiosa ser garantida como um direito, fica estabelecido que nenhuma pessoa pode ser submetida a medidas coercitivas que restrinjam a sua livre escolha de adotar uma religião ou crença.

Já na década de 80, foi aprovada pela ONU a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções (1981).  

O documento define o conceito de discriminação religiosa pelo direito internacional, classificando esse comportamento como uma violação de direitos humanos.

Além disso, preza pela não interferência do Estado na religiosidade dos indivíduos e na organização religiosa, desde que as práticas respeitem os limites da lei.

Por fim, o mais recente tratado internacional que envolve a proteção à liberdade religiosa foi publicado em 1992, denominado de Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas

Nele, os Estados que assinaram o documento devem garantir que grupos religiosos minoritários tenham o direito de usufruir de suas próprias culturas e exercer suas religiosidades.

É importante evidenciar que há diversos outros instrumentos internacionais, principalmente regionais, que abordam sobre o assunto, e veremos sobre as suas garantias e direitos especificamente no nosso próximo texto.

Sendo assim, por agora, no infográfico a seguir é possível ver a evolução do direito à livre religiosidade no mundo ao longo do tempo:

Infográfico sobre a linha do tempo das conquistas da liberdade religiosa no mundo, representando a religiosidade como direito

Conclusão

A religião, e a religiosidade como um todo, possuem grandes influências na história e na formação humana e civilizatória. Os aspectos culturais de muitas sociedades foram sendo construídos com base em crenças e atividades voltadas ao sagrado e ao misticismo.

Nesse sentido, as práticas religiosas tiveram grande contribuição no desenvolvimento do pensamento humano e no fortalecimento do sentimento de coletividade, visto que a adoção de uma religião muitas vezes está ligada à uma identificação coletiva comum. 

Contudo, por se basear em crenças e não apenas em bases totalmente racionais, as questões religiosas em muitos momentos na história tenderam ao fanatismo e resultaram na discriminação entre pessoas e povos com diferentes visões de mundo e credo.

Com isso, a recente conquista da livre manifestação de religiosidade e de religião como um direito em nível internacional representa um avanço no combate à repressão por motivos de crença e na preservação de uma vida digna a todos e todas. 

Como vimos brevemente neste texto, organizações internacionais como a ONU tiveram um importante papel nessa conquista, buscando efetivar a liberdade religiosa como uma garantia fundamental. 

Sendo assim, para entendermos melhor sobre como a legislação internacional protege essa liberdade, tanto em âmbito mundial, quanto regional, no nosso próximo texto do Equidade vamos falar sobre a crença como um direito humano no mundo. Não deixe de conferir!

Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Liberdade Religiosa“, confere o vídeo abaixo!

Autores:

Bernardo Zahran Rache de Almeida
Eduardo de Rê
Felipe Lima Matthes
Giovanna de Cristofaro
Juliana Meneghelli de Barros
Mariana Carneiro Campos Niccoli
Mariana Carolina Rezende

Fontes:

1- Instituto Mattos Filho;

2- BEZERRA, Karina. História Geral das Religiões. Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), 2014, artigo online. Disponível em: <https://www1.unicap.br/observatorio2/wp-content/uploads/2011/10/HISTORIA-GERAL-DAS-RELIGIOES-karina-Bezerra.pdf>. Acesso em: 16 de março de 2022.

3- Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.

4- Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, 1981.

5- Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, 1992.

6- DOMINGUES, Joelza Ester. A grande perseguição de Diocleciano aos cristãos. Ensinar História (artigo online). Disponível em: <https://ensinarhistoria.com.br/linha-do-tempo/a-grande-perseguicao-aos-cristaos/>. Acesso em: 17 de março de 2022.

7- FIGUEIREDO, Danniel. Cruzadas: o que foram e como são vistas? Politize!, 2019. Disponível em: <https://www.politize.com.br/cruzadas/>. Acesso em: 17 de março de 2022.

8- GOMES, Nilvete et al. Espiritualidade, Religiosidade e Religião: Reflexão de Conceitos em Artigos Psicológicos. Revista de Psicologia da IMED, 6(2), p. 107-112, 2014.

9- JOHNSON, Noel D.; KOYAMA, Mark. Persecution & Toleration: The Long Road to Religious Freedom. New York: Cambridge University Press, Cambridge Studies in Economics, Choice, and Society, 2018.

10- NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância Religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen (Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro), 2020.

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