O Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos não opera somente no âmbito global, mas também no âmbito regional, por meio da reunião de países de um determinado continente.
São os chamados Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos, que têm como função defender e proteger juridicamente os Direitos Humanos previstos em acordos internacionais nos países que fazem parte do sistema.
O continente Americano – do qual nós, brasileiros, fazemos parte – possui o seu próprio sistema, denominado de Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), responsável por tutelar os países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), como o Brasil.
Lendo isso, você pode estar se perguntando: “Mas se já existe o Sistema Global, que abrange todos os seres humanos e povos do mundo, qual a necessidade dos Sistemas Regionais?”
Antes de mais nada, precisamos entender que eles não são sistemas excludentes. Todos os Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos são subordinados ao Sistema Global, ou seja, precisam respeitar e seguir a universalidade dos Direitos Humanos e todas as disposições previstas nos tratados internacionais de Direitos Humanos do sistema ONU.
A grande vantagem da existência de um sistema regional está na sua proximidade com as características culturais, históricas e sociais dos países de uma região. Isso permite que ele tenha um aparato e normas jurídicas próprias que dialoguem com os padrões comuns e peculiaridades dessa região.
O Sistema Global, por ser muito amplo, não consegue suprir esses detalhes, muitas vezes essenciais para o ordenamento jurídico, político e social de uma sociedade.
Neste texto do projeto Equidade falaremos sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e os dois outros sistemas regionais vigentes atualmente: o Sistema Europeu de Direitos Humanos e o Sistema Africano de Direitos Humanos.
O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre os Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos e a sua importância? Segue com a gente!
Como surgiu o Sistema Interamericano?
Os Estados do continente Americano se reuniram para criar, pela primeira vez, um sistema compartilhado de normas e instituições em 1889, com a realização da Conferência Internacional Americana, em Washington D.C, nos Estados Unidos.
Como resultado da Conferência, os dezoito países participantes, entre eles o Brasil, decidiram fundar a União Internacional das Repúblicas da América, que mais tarde passaria a se chamar União Pan-Americana.
O objetivo principal da União era elaborar um plano de solução de conflitos e disputas que poderiam surgir entre os Estados membros, buscando melhorar as suas comunicações e as suas relações comerciais.
A Conferência ainda estabeleceu as bases jurídicas da União Pan-Americana, produzindo recomendações para a redação dos seus tratados e apresentando orientações sobre como resolver desavenças entre as nações americanas. Essas bases serviram de alicerce para o que depois viria a ser o Sistema Interamericano.
Na primeira metade do século seguinte, o século XX, eclodem as maiores guerras já feitas na história, as duas guerras mundiais. Com as suas drásticas consequências surge a necessidade de reconstrução de uma nova ordem internacional fundamentada no respeito aos Direitos Humanos.
Como resultado, foi fundada a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945. Já vimos em textos anteriores, como no texto sobre a história dos Direitos Humanos, que o estabelecimento do sistema ONU fez com que os Direitos Humanos fossem impulsionados internacionalmente.
Nesse contexto, é realizada a nona Conferência Internacional Americana, em Bogotá, no ano de 1948, onde foram adotados os documentos que marcam o nascimento do Sistema Interamericano, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e a Carta da Organização dos Estados Americanos, criando a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Os Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos e o ODS 17 estão interligados através da promoção de cooperação, fortalecimento das capacidades institucionais, e mobilização de recursos e parcerias para a realização dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Você conhece o ODS 17? Saiba mais em ODS 17: parcerias que promovem o desenvolvimento sustentável.
Como atua o Sistema Interamericano?
A Declaração Americana foi promulgada dois meses antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), existindo grande similaridade entre os seus conteúdos. No seu preâmbulo, a Declaração Americana expressa que:
“todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, como são dotados pela natureza de razão e consciência, devem proceder fraternalmente uns para com os outros”.
Com isso, fica evidenciado o caráter universal dos Direitos Humanos e o reconhecimento da dignidade humana, assim como na Declaração Universal.
A Carta da OEA, por sua vez, é caracterizada por trazer aspectos e disposições gerais sobre a organização, indicando seus princípios e objetivos.
Nela é estabelecida a vinculação da OEA ao sistema ONU, funcionando como um sistema regional, em que seus Estados membros devem seguir os regulamentos previstos na Carta das Nações Unidas.
O documento ainda diz que a OEA é desenvolvida para atingir uma ordem de paz e de justiça no continente, para promover a solidariedade, intensificar a colaboração e defender a soberania e a integridade territorial das nações americanas.
Nesse sentido, a OEA incidiu sobre o processo de internacionalização dos sistemas jurídicos de vários países da América Latina, na busca pela garantia de que esses países respeitem os Direitos Humanos e tenham meios jurídicos para implementá-los.
Isto é, atuou de modo a influenciar os ordenamentos jurídicos nacionais dos países americanos a reconhecer a legitimidade do direito internacional sobre os seus territórios, fortalecendo a universalização dos Direitos Humanos e as suas obrigações.
O principal instrumento para isso foi a confecção e assinatura de diversos acordos multilaterais de Direitos Humanos no âmbito da OEA. Além da já citada Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, os principais tratados interamericanos de Direitos Humanos são:
- Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José (1969);
- Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985);
- Protocolo de San Salvador (1988);
- Protocolo à Convenção Americana de Direitos Humanos para Abolição da Pena de Morte (1990);
- Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994);
- Convenção Interamericana sobre Desaparecimentos Forçados (1994);
- Convenção Interamericana sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação sobre Pessoas Portadoras de Deficiências (1999);
Dentre eles, destacamos a importância do Pacto de San José. Ele enfatiza os direitos civis e políticos dos indivíduos americanos, como por exemplo, a liberdade de expressão, a integridade pessoal e moral, o direito à vida, a proibição da servidão humana, a liberdade de consciência e a liberdade religiosa.
Além disso, o Pacto é responsável por determinar as funções dos dois principais órgãos pelos quais o Sistema Interamericano opera, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que já existia desde 1959 mas não possuía um papel delimitado, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
Mas afinal, o sistema funciona?
Por meio dos seus principais órgãos, o Sistema Interamericano busca assegurar o cumprimento dos tratados internacionais de Direitos Humanos.
Sediada em Washington e fundada em 1959, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é integrada por sete membros eleitos na Assembleia Geral da OEA, com o papel de assegurar e promover o respeito aos Direitos Humanos pelos países membros.
A Comissão é responsável por receber petições que relatam violação de Direitos Humanos e a denúncia pode ser feita por qualquer pessoa, grupo de pessoas ou entidades não governamentais legalmente reconhecidas em um ou mais Estados membros da Organização.
Além disso, possui a função de elaborar relatórios sobre a situação dos Direitos humanos nos países americanos, indicando recomendações a serem seguidas internamente pelas nações.
Um exemplo é o Relatório sobre o Brasil, publicado em 1997, que recomendava a simplificação e aceleração dos procedimentos judiciais em relação aos Direitos Humanos e uma melhor defesa efetiva dos povos indígenas do Brasil, especialmente em relação à integridade e controle de suas terras e culturas.
Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em San José (Costa Rica), funciona como o órgão judicial do Sistema Interamericano, no qual os seus membros detém o título de juízes.
Ao contrário da Comissão, que elabora um relatório com recomendações, a Corte é responsável por proferir uma sentença definitiva, em que os Estados são obrigados a cumprí-las internamente.
Nesse caso, indivíduos não podem recorrer à Corte IDH, apenas os Estados Parte da Convenção ou a Comissão podem submeter ou não um caso a ela.
Para além da função judicial, a Corte também produz pareceres consultivos aos Estados membros da OEA, guiando os Estados com base na sua interpretação dos tratados regionais de Direitos Humanos, indicando o alcance das normas e a sua compatibilidade com as leis nacionais dos países em questão.
Um exemplo prático foi o parecer consultivo OC-21/14 solicitado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, em 2011, sobre as obrigações dos Estados em relação à migração de crianças em seus territórios.
Ainda pensando em eventos práticos da atuação do Sistema Interamericano, temos o caso Barrios Altos, no Peru.
Após um massacre que envolveu a execução de 15 pessoas por agentes policiais ocorrido em 1991, a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou o caso e decretou, em 2001, a condenação do Estado peruano pelo acontecido, sendo obrigado a reparar de maneira integral e adequada os danos materiais e morais sofridos pelos familiares das vítimas.
Os demais sistemas regionais vigentes no mundo
Agora que já vimos sobre o sistema que nos rege, podemos analisar brevemente sobre os outros Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos ao redor do mundo.
Apenas para relembrar e reforçar, as esferas regionais devem respeitar as disposições previstas nos tratados internacionais de Direitos Humanos do sistema ONU.
Desse modo, funcionam a partir de um modelo de prestação de contas, em que os Estados membros que não cumpram ou violem os acordos podem ser submetidos a sanções.
Atualmente, além do Sistema Interamericano, há outros dois sistemas regionais em vigor: o Sistema Europeu e o Sistema Africano. Vejamos brevemente cada um deles.
O que é o Sistema Europeu de Direitos Humanos?
É o sistema regional de proteção de Direitos Humanos mais antigo, servindo de base para os sistemas regionais subsequentes, como o Interamericano.
Surgiu no contexto da 2ª Guerra Mundial após a criação do Conselho da Europa, em 1949, que tinha como objetivo a integração política e econômica da Europa, com três diretrizes indispensáveis: Direitos Humanos, democracia e Estado de Direito.
Com isso, em 1951 há a elaboração da Convenção Europeia de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (Convenção EDH), que entrou em vigor em 1953, focando em liberdades fundamentais, especialmente nos âmbitos civil e político.
A Convenção EDH é um documento de assinatura obrigatória para a entrada no Conselho da Europa e foi o primeiro documento vinculante em matéria de Direitos Humanos na Europa.
E o que é o Sistema Africano de Direitos Humanos?
É o mais recente dos sistemas regionais em vigor, atuando sob a égide da União Africana (UA), que busca o desenvolvimento socioeconômico dos Estados membros, o fortalecimento de suas soberanias e a proteção de sua integridade territorial.
O seu principal documento é a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (Carta de Banjul), aprovada pela Assembleia da então Organização da Unidade Africana (OUA) em 1981 e em vigor desde 1986.
A Carta trabalha com a ideia da indivisibilidade dos direitos, tratando em igual medida os direitos econômicos, sociais e ambientais dos direitos civis e políticos que abrangem os Direitos Humanos.
Vale ressaltar que uma das questões centrais da Carta de Banjul é a luta contra o colonialismo e o racismo, fazendo referências diretas ao direito à independência.
Aliás, a UA substituiu a OUA apenas no ano de 2001, após uma reformulação da organização, que resultou na criação da Comissão Africana dos Direitos do Homem e do Povo, no mesmo ano.
Conclusão
A aplicabilidade dos Direitos Humanos após o estabelecimento do Sistema Global de Proteção de Direitos Humanos ganhou novos meios, principalmente com a elaboração e assinatura dos tratados e convenções internacionais sobre o tema por parte dos países.
Porém, os mecanismos previstos em âmbito global não seriam suficientes para conseguir lidar com todas as nações do mundo ao mesmo tempo.
Dessa necessidade, se configuram os Sistemas Regionais de Proteção de Direitos Humanos, atuando sob a tutela do sistema ONU e servindo como um amparo jurídico mais próximo da realidade dos países que fazem parte de determinada região.
Com isso, a garantia de direitos fundamentais como o direito à vida e à liberdade são fortalecidas, exigindo cada vez mais que os Estados consigam implementar os seus preceitos internamente para a sua população.
Sendo assim, nós como cidadãos, se quisermos defender os princípios democráticos e a pluralidade de nossos direitos, devemos reivindicar de nossos governantes que respeitem e sigam as determinações dos organismos multilaterais.
Exaltar os valores democráticos é um dos objetivos do Equidade, pois acreditamos que ao se fechar para o mundo e, no caso do sistema regional, para os nossos próprios vizinhos, nos tornamos cada vez mais distantes da plural realidade dos povos e sociedades do planeta, perdendo o vínculo e o sentimento de igualdade que existe entre todos.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos Humanos”, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Bárbara Correia Florêncio Silva
Eduardo de Rê
Helórya Santiago de Souza
Julia Piazza Leite Monteiro
Luíza da Camara Chaves
Marcella Caram Zerey
Marília Lofrano
Yvilla Diniz Gonzalez
Fontes:
2- BERNARDI, Bruno B. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a Justiça de Transição: Impactos no Brasil, Colômbia, México e Peru. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 327(f), 2015.
3- CAMBIAGHI, Cristina; VANNUCHI, Paulo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH): Reformar para Fortalecer. Lua Nova, São Paulo, vol. 90, p.-133-163, 2013.
4- Carta da Organização dos Estados Americanos, 1948.
5- CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. 5ª edição, São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
6- Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948.
7- GORENSTEIN, Fabiana. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. In: LIMA JR, Jayme B. Manual de Direitos Humanos Internacionais: Acesso aos Sistemas globais e Regional de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora Loyola, 2002.
8- PIOVESAN, Flávia. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Impacto Transformador, Diálogos Jurisdicionais e os Desafios da Reforma. Revista Direitos Emergentes na Sociedade Global, Santa Maria, vol. 3, nº 1, jan.jun/2014.