É possível assumir que a diversidade é uma característica não só humana, mas também da natureza. A existência é plural, assim como nós enquanto seres humanos. E essa pluralidade afeta diversos aspectos da vida, dentre eles, as religiões e crenças.
Contudo, muitas vezes, as divergências acabam sendo motivo de desavenças, e quando o assunto é religião isso não é diferente, visto que a tolerância religiosa ainda é um princípio que não foi implementado de forma plena no mundo.
Segundo o Pew Research Center (2020), a perseguição religiosa se faz presente na maioria dos países do mundo, sendo os cristãos e os muçulmanos os grupos religiosos mais perseguidos em termos numéricos absolutos.
Essa intolerância religiosa marca uma violação contra os direitos humanos, afetando diretamente as liberdades fundamentais e a dignidade da pessoa humana.
Neste texto do Equidade vamos compreender a tolerância religiosa como uma expressão dos direitos humanos, a fim de identificar o seu conceito e a sua importância na proteção da liberdade religiosa.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, a Civicus e o Instituto Mattos Filho voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender sobre a tolerância religiosa como expressão dos direitos humanos? Segue com a gente!
Confira também o nosso podcast sobre o assunto, no qual conversamos com a Luiza Muniz, Advogada de Seguros, Resseguros e Previdência do escritório Mattos Filhos:
O que significa a tolerância religiosa?
Para entendermos o que a tolerância religiosa quer dizer, é importante compreendermos o conceito do termo tolerância e como ele é aplicado para o caso do respeito entre religiões e crenças.
A origem da palavra tolerância vem da expressão em latim “tolerare”, que pode ser entendido como o ato de aceitar, ou de suportar algo ou alguém. Nesse sentido, a tolerância estaria relacionada com o comportamento de consentimento de um indivíduo perante uma situação, pessoa e/ou coisa.
Um importante pensador iluminista que tratou sobre o conceito de tolerância foi Voltaire. Em seu “Tratado sobre a Tolerância”, escrito em 1763, o filósofo expressa que o princípio da tolerância se baseia na ideia de que todos são iguais.
Dessa forma, para Voltaire, a tolerância está diretamente ligada aos valores da liberdade individual e da igualdade, em que os indivíduos devem ser livres para pensar e se manifestar, assim como devem ser tratados de maneira igualitária.
Um ato pode ser considerado como tolerante quando respeita e aceita as divergências nos diversos âmbitos da vida. A partir dessa concepção, pode-se entender que a tolerância religiosa se relaciona com o respeito mútuo e a aceitação da existência de diversas crenças religiosas.
Assim, a tolerância religiosa se trata do ato de aceitar e consentir sobre a existência de diferentes religiões, em que o respeito aos seus cultos e convicções são preservados. Como consequência, essa tolerância pode ser vista como fundamental para que a liberdade religiosa seja protegida e preservada.
Sabia que milhares de pessoas perdem a vida devido à violência motivada pela intolerância religiosa? O ODS 16 se dedica a combater essa e outras formas de violência, além de promover a paz e a justiça social. Leia mais sobre esse ODS em: Como o ODS 16 ajuda a combater a violência e promover uma cultura de paz?
E no que consiste a intolerância religiosa?
Bem, se a tolerância religiosa representa a aceitação da diversidade de crenças e a sua livre manifestação, a intolerância diz respeito ao repúdio de práticas religiosas, em que o comportamento discriminatório ganha força.
A intolerância religiosa não pode ser interpretada somente como um ato isolado e individual, mas também como um fenômeno social que envolve o sentimento coletivo de aversão à determinada religião ou religiões.
Nesse sentido, por questões sociais, históricas, culturais e/ou políticas, muitos indivíduos são induzidos a serem intolerantes com aquilo que muitas vezes desconhecem de forma profunda, indicando que a intolerância carrega em si o aspecto do preconceito.
O preconceito normalmente está ligado a um julgamento antecipado, em que generalizações e estereótipos são formados a partir de uma concepção que não se baseia na racionalidade dos fatos. Com isso, esse fenômeno pode gerar sentimentos hostis e repulsivos.
No caso da intolerância religiosa, o preconceito se baseia em convicções em relação ao sagrado, em que os dogmas, cultos e divindades seguidos são tidos como moralmente “certos” e resultam na negação de outra crença.
Como aponta o babalorixá Sidnei Nogueira, no centro da noção de intolerância religiosa, está a necessidade de estigmatizar (julgar, condenar negativamente), de modo a fazer oposição entre o que é visto como “normal” ou “padrão” e o que é “anormal”. Como resultado, tem-se a exclusão, segregação e afastamento do grupo considerado “anormal”.
A efetivação da tolerância religiosa busca valorizar não apenas o respeito à diversidade, mas também o reconhecimento de que, independentemente dos aspectos culturais, étnicos e religiosos, todos são iguais e precisam ter os seus direitos humanos garantidos.
A tolerância religiosa na defesa dos direitos humanos
Desde a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 1948, pela Organização das Nações Unidas (ONU), a liberdade religiosa é reconhecida em nível internacional como parte dos direitos humanos.
Assim, o direito à liberdade religiosa garante a livre manifestação de crenças, cultos e práticas religiosas, assim como a liberdade de adotar ou não uma religião.
Como consequência, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, documento de direitos humanos válido mundialmente e com caráter obrigatório, determina que ninguém pode ser restringido de ter a sua crença e que a liberdade religiosa está sujeita apenas aos limites da lei.
Isso significa que a prática da tolerância religiosa garante a implementação dos direitos humanos e assegura o respeito à dignidade humana. Com isso, além da liberdade religiosa ser protegida, no âmbito prático, essa tolerância favorece a eliminação da violência, da discriminação e da exclusão social contra indivíduos ou grupos por motivos de religião.
Esse combate às atitudes discriminatórias é ainda mais importante na preservação e na proteção de grupos minoritários, que possuem uma maior condição de vulnerabilidade. Nesse sentido, a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convições, adotada pela ONU em 1981, expressa que:
“A discriminação entre os seres humanos por motivos de religião ou de convicções constitui uma ofensa à dignidade humana e uma negação dos princípios da Carta das Nações Unidas, e deve ser condenada como uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais […].”
No Brasil, especificamente, a Lei nº 9.459 de 1997 configura a intolerância religiosa como crime, determinando a pena de 1 a três anos de reclusão e multa para o ato de discriminar alguém por motivos de raça, etnia, religião ou procedência nacional.
Além disso, expressa que fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo, é crime com pena de dois a cinco anos de reclusão e multa.
Sendo assim, em casos de intolerância ou discriminação religiosa, deve-se prestar denúncia para as autoridades competentes lidarem com o caso. Essa denúncia pode ser feita para o Disque 100 do governo federal, para o Ministério Público, para qualquer unidade policial, assim como para as Secretarias Municipais de Direitos Humanos.
O cenário atual da intolerância religiosa no mundo
Milhares de pessoas no mundo possuem as suas vidas ameaçadas em vista das suas crenças religiosas. Como trouxemos no início do texto, um estudo de 2020 do Pew Research Center aponta que há registros de casos de intolerância religiosa em cerca de 90% dos países no mundo.
Os cristãos formam o grupo com o maior número de registros de discriminação (145 países); seguidos dos muçulmanos (139); judeus (88); religiosidade popular, que abrangem as religiões africanas, dos nativos americanos e dos aborígenes australianos (37); budistas (24) e hindus (19).
Em termos proporcionais, os cristãos lideram a lista, visto que o cristianismo é a maior religião do mundo, representando 31,2% da população mundial, seguido pelo islamismo (24,1%) e pelo hinduísmo (15,1%) segundo o próprio Pew Research Center.
Proporcionalmente, portanto, a discriminação contra judeus chama a atenção, visto que reprensentam apenas 0,01% da população mundial, assim como a religiosidade popular, que abrange cerca de 0,4%.
Alguns casos práticos são citados pelo relatório para ilustrar a discriminação, como o episódio no Libano, onde três irmãos mataram um homem acusando-o de blasfêmia (difamação daquilo que se considera sagrado). E na França, onde uma sobrevivente do holocausto foi morta a facadas e o presidente Emmanuel Macron declarou publicamente que o crime foi cometido pela vítima ser judia.
Para além de episódios isolados, vale mencionar a perseguição contra os Rohingyas em Mianmar, considerados hoje, um dos povos mais discriminados do mundo. Os Rohingyas são um grupo étnico minoritário perseguidos por conta de sua etnia e de sua religião muçulmana. Conforme a ONU (2021), essa perseguição já gerou cerca de 864 mil refugiados apenas para a região de Bangladesh.
No caso do Brasil, segundo reportagem do Brasil de Fato (2019), com base em dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), foram registradas cerca de 1.376 denúncias de intolerância religiosa no país entre os anos de 2015 e 2019.
Já de acordo com o Metrópoles, também baseado em dados do MMFDH, em 2020 e 2021 foram registradas 243 e 586 denúncias, respectivamente. Isso significa que nos últimos 7 anos, o Brasil teve mais de 2,2 mil casos de discriminação por questões religiosas, sendo que, conforme vimos em nosso texto sobre a liberdade de culto no Brasil, as maiores vítimas são religiões de matriz africanas e afro-brasileiras.
Conclusão
Em sua grande maioria, as religiões celebram a paz e a união entre as pessoas como princípios fundamentais de sua existência. Contudo, muitas vezes, é em nome da religião e daquilo que se considera sagrado que atos violentos e comportamentos discriminatórios são praticados.
Essa incoerência está relacionada com preconceitos e estigmas nos quais se constroem as relações sociais. A busca pela paz de forma violenta marcou historicamente os casos de perseguição religiosa, em que a liberdade individual era negligenciada por motivos de crença.
Assim, o reconhecimento da liberdade religiosa como direito humano marca a exaltação da tolerância e do respeito mútuo como meio para o convívio harmônico entre grupos religiosos.
Dessa forma, a tolerância religiosa precisa ser fortalecida, por meio de ações individuais, coletivas e institucionais. Assim, desafios que afetam a liberdade em manifestar a fé podem ser superados. Quer entender melhor sobre esses desafios? Então fique ligado que no nosso próximo texto vamos falar sobre os desafios do livre exercício da fé!
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Liberdade Religiosa“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Bernardo Zahran Rache de Almeida
Eduardo de Rê
Felipe Lima Matthes
Giovanna de Cristofaro
Juliana Meneghelli de Barros
Mariana Carneiro Campos Niccoli
Mariana Carolina Rezende
Fontes:
2- Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Rohingya. 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/rohingya/>. Acesso em: 06 de abril de 2022.
3- FERREIRA, Edimar. Voltaire e tolerância. Dissertação (Mestrado em Filosofia Moderna). Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), 101 f, 2016. Disponível em: <https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/11570/1/Edimar%20Goncalves%20Ferreira.pdf> Acesso em: 05 de abril de 2022.
4- FONSECA, Dagoberto; PESTANA, Mauricío. Tolerância religiosa. Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Governo de São Paulo, 2013.
5- HOLANDA, Letícia. Denúncias de intolerância religiosa cresceram 141% no Brasil em 2021. Metrópoles, 2022. Disponível em: <https://www.metropoles.com/brasil/denuncias-de-intolerancia-religiosa-cresceram-141-no-brasil-em-2021>. Acesso em: 06 de abril de 2022.
6- NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância Religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen (Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro), 2020.
7- Pew Research Center. Harassment of religious groups continues to be reported in more than 90% of countries. 2020. Disponível em: <https://www.pewresearch.org/religion/2020/11/10/harassment-of-religious-groups-continues-to-be-reported-in-more-than-90-of-countries/>. Acesso em: 05 de abril de 2022.
8- SILVA, Antonio. Sobre a intolerância religiosa. Revista Espaço Acadêmico, nº 203, 2018. Disponível em: <https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/42312/751375137520>. Acesso em: 05 de abril de 2022.
9- SOUZA, Guilherme; FICAGNA, Lais. Do preconceito à intolerância religiosa. Revista EDUC-Faculdade de Duque de Caxias, vol. 03, nº 2, 2016.
10- SOUZA, Marina. Denúncias de intolerância religiosa aumentaram 56% no Brasil em 2019. Brasil de Fato, 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/01/21/denuncias-de-intolerancia-religiosa-aumentaram-56-no-brasil-em-2019>. Acesso em: 05 de abril de 2022.