Violência racial no Brasil e no mundo

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Violência racial no Brasil e no mundo
14 jul 2021
14 / jul / 2021

Violência racial no Brasil e no mundo

Há um ditado no Brasil que diz que em países como Brasil, a violência tem cara, cor e endereço. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, esse ditado popular não está completamente errado.

Segundo a organização, entre 2008 e 2018 o número de pessoas negras vítimas de homicídio no Brasil aumentou 11,5%. Enquanto entre pessoas não negras houve uma queda de 12,9%. 

Como já vimos em textos anteriores, a desigualdade e a discriminação racial ainda persistem em nossa sociedade. Nesse sentido, a violência racial, ou seja, a violência contra determinados grupos étnico-raciais, pode ser vista como mais uma manifestação dessa discriminação.

Mas será que vivemos em uma sociedade na qual a violência racial é uma realidade? É sobre isso que vamos falar neste texto do Equidade.

O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre a violência racial no Brasil e no mundo? Segue com a gente!

Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:

Origens históricas da violência racial

Para Bernard Charlot, doutor em educação, a violência pode ser entendida como um ato, uma palavra ou situação em que determinado indivíduo é tratado como um objeto.

Assim, seus direitos e a sua dignidade como ser humano lhe são negados. Nesse sentido, a violência se torna racial quando essa objetificação e negação de direitos são postas a um grupo étnico-racial específico. 

Sendo assim, as raízes da violência racial, em muitos países ocidentais como o Brasil, estão ligadas a séculos atrás, quando a inferiorização de um grupo em relação a outro resultou em um longo período de escravidão e exploração. Ou seja, na total inexistência de direitos e na máxima objetificação de grupos de pessoas.

Em vários de nossos textos, como a história dos direitos étnico-raciais, a desigualdade racial e o racismo estrutural, falamos sobre esse período escravocrata, que no nosso país durou aproximadamente 400 anos.

Dessa forma, aqui iremos enfatizar que o sistema de mão de obra escrava gerou consequências negativas para certos grupos étnico-raciais, como os indígenas e os negros. Visto que no processo pós-abolição, em 1888, práticas discriminatórias persistiram na sociedade mesmo com a conquista da liberdade dos negros.

Não havia políticas voltadas para a inclusão dos ex-escravizados no sistema social, econômico e político da época. Isso, somado ao fato de que esses grupos continuavam sendo vistos como inferiores culturalmente, levou à marginalização dos grupos de ex-escravizados.

Consequentemente, segundo a historiadora Gizlene Neder, o abuso e a violência dos senhores de escravos foi sendo substituída pela violência do Estado, por meio da força policial.

Ou seja, as funções da opressão e da repressão no fim do século XIX e no século XX acabam sendo transferidas das autoridades privadas para as autoridades públicas.

Esse processo histórico não foi exclusivo no Brasil. Em outros países, como os Estados Unidos e a África do Sul, a segregação racial baseada no racismo fez com que episódios de violência extrema contra negros no século XX fossem aceitos na sociedade. Vamos falar melhor sobre dois deles.

Quer entender mais sobre desigualdade social? Confira o conteúdo do Projeto Direito ao Desenvolvimento: Desigualdade social no Brasil: conheça o Novo Pacto Nacional das OSCs

O massacre de Tulsa

Um dos maiores casos de violência racial em massa na história dos Estados Unidos ocorreu em maio de 1921, na cidade de Tulsa. Pela manhã do dia 31, uma multidão de pessoas brancas invadiram o distrito de Greenwald da cidade de Tulsa.

O distrito era conhecido na época como “Wall Street Negra”, pois era uma das comunidades negras mais prósperas do país. 

A multidão destruiu as propriedades comerciais e privadas dos negros na região. Os 35 quarteirões que formavam o distrito eram compostos por hotéis, restaurantes, joalherias, diversos estabelecimentos de pequeno porte e diversas casas elegantes.

A região sofreu grandes destruições por conta da violência dos invasores brancos, que durou cerca de 18 horas. 

Imagem das mãos de uma pessoa negra com sangue representando a violência racial no Brasil e no mundo

Estima-se que aproximadamente mais de mil casas e estabelecimentos que pertenciam às pessoas negras foram saqueados e incendiados. Resultando em cerca de 10 mil desabrigados, 800 feridos e 300 mortos. O massacre de Tulsa recentemente voltou à tona por ser retratado na série de televisão “Watchmen”, que foi ao ar no fim de 2019.

Quer entender mais sobre violência e cultura de paz? Confira o conteúdo do Projeto Direito ao Desenvolvimento: Como o ODS 16 ajuda a combater a violência e promover uma cultura de paz?

O massacre de Sharpeville

Em 21 de março de 1960, no bairro de Sharpeville, em Joanesburgo, ocorreu um dos mais marcantes eventos do apartheid na África da Sul.

Nesse dia, diversos manifestantes foram às ruas protestar contra a segregação racial no país e o regime do apartheid que legalmente discriminava os negros na sociedade sul africana. 

Os protestos pediam pelo fim da Lei do Passe, que obrigava os negros a usarem um documento que limitava as suas mobilidades dentro do país. Para impedir as manifestações e encerrar os protestos, as tropas armadas do país foram convocadas pelo governo e entraram em confronto contra os pacíficos manifestantes negros.

A violência das tropas policiais e militares resultou na morte de 69 pessoas negras e cerca de 200 feridos. Devido ao trágico evento, a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1966, decretou o dia 21 de março como o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial

A violência racial atual e os seus impactos

A herança da escravidão e da discriminação racial resultaram não apenas em eventos singulares como os comentados. Mas também em uma violência sistêmica contra negros em sociedades como a brasileira. Sistêmica pois ela não se manifesta apenas entre indivíduos ou grupos, mas também institucionalmente.

Ou seja, por meio de normas e padrões que condicionam o comportamento dos indivíduos, contribuindo para a exclusão social e econômica dos negros. 

O exemplo dado por Hamilton e Ture no livro “Black Power: Politics of Liberation in America” pode ser bem elucidativo para essa questão:

“Quando terroristas brancos bombardeiam uma igreja negra e matam cinco crianças negras, isso é um ato de racismo individual, amplamente lamentado pela maioria dos segmentos da sociedade. Mas quando nessa mesma cidade quinhentos bebês negros morrem a cada ano por falta de comida adequada, abrigos e instalações médicas, e outros milhares são destruídos e mutilados física, emocional e intelectualmente por causa das condições de pobreza e discriminação, na comunidade negra, isso é em função do racismo institucional”.

 Aqui no Brasil isso pode ser observado, entre outros dados, nos índices de violência policial contra os negros. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020), no ano de 2019 houve 6.357 mortes violentas em decorrência de intervenções policiais.

Dessas vítimas, 79,1% eram negras. Em muitos desses casos, crianças e jovens negros da periferia são as principais vítimas desse tipo de violência. Como o caso da menina Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos de idade, que foi morta com um tiro, no Complexo do Alemão (comunidade do Rio de Janeiro), quando voltava para casa com sua mãe, no ano de 2019. 

 As estatísticas revelam que os negros estão em uma situação de maior vulnerabilidade em relação à violência. De acordo com o Atlas da Violência (2020), para cada não negro assassinado, 2,7 negros são vítimas de homicídio. Fazendo com que o risco de um homem negro ser assassinado seja 74% maior em relação a não negros. Para as mulheres negras, essa taxa é de 64,4%

Imagem de um homem negro de cabeça baixa representando a violência racial no Brasil e no mundo

No caso das mulheres negras, a violência doméstica e sexual se destaca. Em 2019, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020), houve 266.310 registros de violência doméstica e sexual. Destes, 85,7% contra o gênero feminino e, entre essas mulheres, 66.6% eram negras.

Encarceramento em massa

Os dados revelam que os negros se encontram em uma situação de maior exposição à violência no país. E uma das consequências dessa maior exposição é o encarceramento em massa de pessoas negras e a superlotação dos presídios brasileiros. 

No ano de 2019, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020), o sistema prisional contava com 755.274 pessoas privadas de liberdade, sendo que 66,7% eram negras.

Esse número coloca o Brasil  em terceiro lugar no ranking mundial de encarceramento, perdendo apenas para a China e os EUA.

Isso ocorre, em certa medida, devido a uma lógica punitivista implementada pelo Estado brasileiro, em que o problema da segurança pública é tratada com políticas de punição ao invés de políticas de prevenção.

O encarceramento em massa é um dos principais responsáveis pela violação dos Direitos Humanos em nossa sociedade. Pois, a superlotação do sistema carcerário deixa em evidência as suas deficiências, como a estrutura precária, a insalubridade, a falta de segurança, a dificuldade do acesso à saúde e educação, entre outros. 

Em 2009, por exemplo, o relatório da CPI do sistema prisional brasileiro informou que nenhum presídio cumpria as exigências dadas pela Lei de Execução Penal.

Racismo religioso

Outra manifestação da violência racial no Brasil pode ser observada nos crimes de ódio e no tratamento discriminatório que as religiões de matriz africana sofrem. 

Na história da população negra no país, diversos mecanismos para limitar as possibilidades de organização e desenvolvimento dos negros foram utilizadas.

A discriminação religiosa foi um desses mecanismos. Durante muito tempo, principalmente durante a escravidão, os ataques às religiões de matriz africana tinham o objetivo de anular a identidade, a cultura, a organização social e a resistência dos negros.

Esses ataques ainda são uma realidade. De acordo com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, durante o ano de 2018 foram registrados 500 casos de intolerância religiosa, sendo que mais de dois terços desses casos tiveram como alvo religiões como o candomblé e a umbanda.

Além disso, segundo o Relatório de Intolerância Religiosa, da ONG Ceap, 71% das 1.014 ocorrências de ataques a templos religiosos no Rio de Janeiro entre 2012 e 2015 foram contra religiões afro-brasileiras.

Em 2007, a partir da promulgação da Lei nº 11.635/2007, a invasão a templos e agressões religiosas de qualquer credo passaram a ser crimes inafiançáveis. No entanto, percebe-se que mesmo com a modificação na legislação brasileira, a violação de direitos atinge de maneira direta as religiões de matriz africana.

Conclusão

Os reflexos de um racismo fruto de quase quatro séculos de escravidão ainda são sentidos pela sociedade brasileira. Além disso, a falta de integração dos povos negros à sociedade durante todo o século XX fez com que os negros fossem afastados do processo político e econômico do país, ficando expostos à violência racial. 

Enquanto toda a sociedade não lutar pelo fim da discriminação e da desigualdade racial, haverá a manutenção da organização social, política e econômica atual que contribui para a marginalização dos povos negros e, consequentemente, para sua vulnerabilidade a questões como a violência. 

Uma das formas de políticas públicas de inclusão racial já existentes e que podem ser reforçadas, são as ações afirmativas. Visto que buscam reduzir as desigualdades e discriminações existentes contra grupos étnico-raciais em instituições de ensino e no mercado de trabalho.

Aliás, esse será o assunto do nosso próximo texto, em que vamos falar sobre a discriminação racial no mercado de trabalho, não perca!

Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos Étnico-raciais“, confere o vídeo abaixo!

Autores:

Eduardo de Rê
Isabela Campos Vidigal Takahashi de Siqueira
Julia Reis Romualdo
João Pedro de Faria Valentim
Leonardo Gabriel Reyes Alves da Paes

Fontes:

1- Instituto Mattos Filho;

2- ARAUJO, Eloi. O massacre de Sharpeville: lembrar para jamais repetir, ou imitar. Correio Braziliense, 2021. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/03/4913200-o-massacre-de-shaperville-lembrar–para-jamais-repetir-ou-imitar.html>. Acesso em: 23 de março de 2021.

3- BARROS, Patrícia et al. Direitos humanos x encarceramento: o sistema prisional brasileiro como violador dos direitos humanos. Jus, 2020. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/83413/direitos-humanos-x-encarceramento>. Acesso em: 24 de março de 2021.

4- CHARLOT, Bernard. Prefácio. In: ABRAMOVAY, Miriam (Coord). Cotidiano das escolas: entre violências. Brasília: UNESCO, p. 17-25, 2005.

5- CORRÊA, Alessandra. O massacre que destruiu a ‘Wall Street Negra’ há quase cem anos e voltou à tona na série ‘Watchmen’. BBC News Brasil, 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50188869>. Acesso em: 23 de março de 2021.

6- COSTA, Camille; MARCHIORO, Pedro. É preciso celebrar o Dia de Luta Contra a Discriminação Racial. Gazeta do Povo, 2021. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/e-preciso-celebrar-o-dia-de-luta-contra-a-discriminacao-racial/>. Acesso em: 23 de março de 2021.

7- FREITAS, Felipe. A Naturalização da violência racial: escravismo e hiperencarceramento no Brasil. Revista Perseu: História, Memória e Política, nº 17, ano 12, 2019. 

8- HAMILTON, Charles; TURE, Kwane. Black Power: Politics of Liberation in America. Nova York: Random House. Vintage Edition, 1992. 

9- MARTON, Fábio. Relatos apontam proliferação de ataques à religiões afro-brasileiras. Folha de São Paulo, 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/09/relatos-apontam-proliferacao-de-ataques-as-religioes-afro-brasileiras.shtml>. Acesso em: 24 de março de 2021.

10- NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, ICC, 2000, p. 178.

11- SANTOS, Tahinan. As Consequências de Escravidão na História do Negro no Brasil. Diamantina Presença “Educação e Pesquisa”, vol. 2, nº 1, p. 47-57, 2019.

12- SINHORETTO, Jacqueline; MORAIS, Danilo. Violência e racismo: novas faces de uma afinidade reiterada. Revista de Estudios Sociales, 64, p. 15-26,  2018. Disponível em: <https://journals.openedition.org/revestudsoc/10010>. Acesso em: 23 de março de 2021. 

13- Tulsa Historical Society and Museum. 1921 Tulsa Race Massacre. Disponível em: <https://www.tulsahistory.org/exhibit/1921-tulsa-race-massacre/#flexible-content>. Acesso em: 23 de março de 2021.

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