Assunto frequente nos meios de comunicação e que envolveu toda a população mundial, a Covid-19 se tornou um dos temas mais debatidos em esfera global desde seu surgimento em 2019. Diante das consequências geradas pelo vírus nas mais diversas áreas da sociedade, surgiram estudos e debates em diferentes áreas do conhecimento. Na área jurídica, os debates atingiram discussões relacionadas à vacinação compulsória, possibilidade de demissões aos funcionários que não tomarem a vacina, limitação da liberdade de ir e vir em função das determinações de lockdown e toques de recolher e etc.
A temática que a princípio poderia encontrar seu contorno – na área jurídica – apenas em questões relacionadas ao direito de saúde, avançou para outras esferas. Pois, o Poder Público imbuído da responsabilidade de cuidar da saúde da população esbarrou em diversos direitos buscando atingir este objetivo, com o intuito de diminuir o nível de contaminação do vírus.
Assim, faz-se importante questionar, pode o Estado limitar o direito fundamental de ir e vir, em função da proteção do direito fundamental da saúde? Ou, pode o Estado instituir uma campanha de vacinação obrigatória, mesmo se contrária às convicções morais, filosóficas ou religiosas de alguns cidadãos?
A questão central é, existe algum direito absoluto no Brasil?
Afinal, existe direito absoluto?
Embora muitas respostas exijam aprofundamentos para a sua apresentação – e tal situação é comum na área jurídica -, para o questionamento acima, podemos afirmar que não existe direito absoluto.
As Leis e, em especial, a Constituição Federal, tem o papel de organizar a sociedade para que todos os brasileiros possam viver em harmonia, prevendo direitos e deveres a todas as pessoas.
Assim sendo, todo o comportamento humano que tem potencial de causar danos a outra pessoa, supera convicções políticas, filosóficas, morais e religiosas, deve ser ponderado na esfera jurídica.
Na estrutura das normas brasileiras, a Constituição Federal ocupa o topo da hierarquia e serve como parâmetro de validade para todas as demais normas jurídicas (leis, decretos, resoluções e etc.), logo, para que uma lei, decretos e medidas provisórias possam ser criadas, deve a lei observar as previsões contidas na Constituição Federal.
Contudo, as normas que estão na Constituição Federal, possuem o mesmo grau de hierarquia, isto é, estas simplesmente por estarem na Constituição Federal, possuem presunção de validade e não necessitam da convalidação de uma nova norma superior para serem editadas. Para as normas que estão abaixo da Constituição Federal, a solução do conflito é fácil de se presumir, pois se a lei contraria a Constituição, a lei é inconstitucional e não há qualquer irregularidade sobre a norma constitucional.
Ato contínuo, surge o questionamento: e quando há choque de direitos fundamentais (direitos previstos na Constituição)? Esse fenômeno é correto? Há resolução?
Por exemplo, o direito fundamental a liberdade de locomoção (art. 5º, XV), pode ser restringido pelo Estado em tempos de guerra, até mesmo porque o art. 5º, inc. XV registra que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz (…)”.
Um outro exemplo, muito famoso, se dá em relação à liberdade de manifestação (protesto) previsto no art. 5º, inc. XVI que registra:
Art. 5º [….]
XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
Ou seja, existe a liberdade de manifestação, contudo, o próprio inciso que registra o direito na Constituição Federal, impõe que sejam observadas condições para que o exercício do direito – fundamental – não se torne ilegal.
Nenhum direito é tão absoluto que se sobreponha em relação ao outro, é preciso haver um equilíbrio, respeitando as individualidades, sem esquecer o interesse comum de todo o povo.
Contudo, nem tudo é tarefa fácil no direito, tanto é verdade que muitas discussões que chegam ao Supremo Tribunal Federal (STF) levam anos para serem finalizadas.
Assim, muitas soluções ou restrições de direitos tidos como fundamentais, não são solucionadas pela própria norma constitucional que o prevê (como os dois exemplos acima). Muitos conflitos, são apresentados nas situações práticas do cotidiano e, para solucionar esses impasses, tais conflitos são apresentados ao Poder Judiciário, para que as sentenças judiciais possam resolver estes problemas.
Isto porque, os direitos das pessoas concorrem entre si, ou seja, são simultâneos, o exercício de um, não anula o outro e a mesma lógica é válida ao tratar de direitos individuais e direitos da coletividade.
Como resolver os conflitos de direitos fundamentais?
Os conflitos entre direitos fundamentais existem, até mesmo porque nenhum direito é absoluto – como já dissemos –, pois se assim o fosse pouca valia teria este pequeno artigo e, possivelmente, a sociedade pouca organização teria.
O conjunto de normas que formam o complexo das leis brasileiras (Constituição Federal, Leis, Decretos etc.), formam um conjunto harmônico entre si, de tal forma que ainda que exista um conflito (choque) de direitos fundamentais, estes conflitos são meramente aparentes, pois existem soluções previstas para a resolução.
Para não perder o norte deste artigo, trataremos apenas das soluções previstas em relação aos direitos fundamentais, ou como propõe este artigo, em prol da proteção do direito à saúde – e a saúde é um direito fundamental de todos os cidadãos – é possível o Poder Público limitar o exercício de outros direitos fundamentais?
A resolução deste conflito de direitos se dá por meio de um método chamado “ponderação’.
A ponderação de direitos é um método de decisão baseado principalmente no princípio jurídico da proporcionalidade e visa obter – em determinado caso isolado – um ponto de equilíbrio entre os direitos em conflito, ou seja, a resolução é aplicada sobre um conflito existente, como por exemplo, em função do risco de contaminação, pode o Município impedir que estrangeiros ou brasileiros de outras cidades ingressem no território da cidade?
O princípio da proporcionalidade prevê como requisitos a adequação (a medida judicial apresentada é adequada para resolver o conflito), a necessidade (a intervenção do Poder Judiciário se faz necessária) e a proporcionalidade (adequação entre o meio utilizado e o fim alcançado), para decidir qual direito deve prevalecer.
Isso significa dizer que é preciso verificar se as normas sanitárias impostas pela covid-19 são adequadas, necessárias e proporcionais.
Sobre as restrições de direitos impostas pela COVID-19
A Saúde é um conceito definido pela Organização Mundial da Saúde – OMS que abrange vários aspectos da vida humana, disposto como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”. O direito à saúde é previsto nos arts.6º e 196 da Constituição Federal.
Em outras palavras, quando se trata de saúde, há outros direitos que devem ser verificados para garantir que o direito à saúde seja exercido de forma plena, podendo ser citado o direito à cultura, ao lazer e a locomoção como bons exemplos.
O direito à saúde tem como objetivo garantir uma vida de qualidade englobando medidas de prevenção ou agravamento de doenças, o que é feito mediante normas sanitárias.
Nesse sentido, a Constituição Federal prevê:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Portanto, cumpre ao Estado, aqui se tratando de todos os entes federativos que compõem o Brasil, em se abster de praticar atos prejudiciais à saúde e implementar políticas para sua proteção e preservação.
A pandemia por covid-19 evidenciou os riscos de um colapso nos sistemas de saúde mundial, gerando, por parte do Poder Público a necessidade de produção de uma série de medidas para o combate ao vírus, algumas delas representando verdadeira restrição de direitos, tais como a limitação a locomoção, a suspensão de serviços considerados não essenciais, a obrigatoriedade ao uso de máscara de proteção, dentre outros.
Mas, esse cenário leva a algumas questões jurídicas como: A Covid-19 justifica restrições de direitos?
Ora, numa pandemia, ao ponderar direitos, dar peso maior à saúde é razoável, haja vista que a saúde neste caso é direito de toda a coletividade e ainda não existe uma forma segura de garantir que o indivíduo contaminado não espalhe o vírus da covid-19. Tanto é verdade que o próprio STF decidiu “que o Estado pode determinar aos cidadãos que se submetam, compulsoriamente, à vacinação contra a Covid-19, prevista na Lei 13.979/2020 (…)” e impor “aos cidadãos que recusem a vacinação as medidas restritivas previstas em lei (multa, impedimento de frequentar determinados lugares, fazer matrícula em escola), mas não pode fazer a imunização à força” [1].
Com efeito, as medidas de prevenção da covid-19 manifestadas através de restrições de direitos e imposição de comportamentos sanitários, que visam impedir o avanço da doença, estão em conformidade com a garantia da saúde.
O Estado cumprindo seu dever de proteger a saúde, ao impor multa seja por aglomeração ou pela falta do uso de máscara de proteção, ou, ainda quando restringe o acesso a cidades turísticas, impõe quarentena ou lockdown, está promovendo a defesa dos direitos e interesses da coletividade.
Em adendo, é importante ressaltar que a imposição de multas não impede as devidas responsabilizações na esfera penal. Como já dito, nenhum direito é absoluto e o código penal pune os desvios inclusive quando se trata de saúde pública. Assim, condutas que possam colocar a saúde de outros em risco, como o desrespeito às normas sanitárias em uma pandemia, também pode ser enquadrado como crime.
Na sequência, as medidas restritivas devem estar estritamente ligadas a ciência para que se justifiquem (proporcionalidade), pois é através de estudos técnicos e comprovados que se podem adotar as medidas profiláticas de cura e prevenção, dessa forma se evitam os excessos de restrições, garantindo o mínimo essencial de direitos.
Ora, o direito à saúde revela sua importância, ao vislumbrar uma vida sem saúde, em que o indivíduo não tem a plenitude da sua vida e outros direitos podem ser ceifados pela condição da doença.
Por fim, resta dizer que as restrições de direitos em razão da covid-19 são possíveis durante a pandemia, contudo não deverão perdurar ao final dela já que se esgotará a justificativa para a restrição dos demais direitos.
Referências
[1] Plenário decide que vacinação compulsória contra Covid-19 é constitucional. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1>. Acesso em: 24/06/2021.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF). Texto Constitucional promulgado em 05 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 24/06/2021.
BRASIL, Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 24/06/2021.
BRASIL, Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735>. Acesso em: 24/06/2021.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado – 22ª ed. São Paulo. Saraiva, 2018.
NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Manual de direitos difusos. São Paulo. Editora Verbatim, 2009.