Este é o terceiro texto de uma trilha de conteúdos sobre a administração pública no Brasil. Confira os demais posts: #1 – #2 – #3 – #4
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Seguimos com a História
Nos primeiros textos desta trilha falamos um pouco sobre os dois primeiros modelos de administração pública que predominaram no Brasil desde o seu descobrimento até o fim do chamado Regime Militar. Neste post, iremos dar sequência à nossa trilha abordando o modelo de administração pública que passa a predominar principalmente a partir da segunda metade da década de 1990: o modelo gerencialista. É importante destacar que traços desse modelo já começam a surgir durante o Regime Militar, principalmente com o fortalecimento dos órgãos da administração pública indireta.
Com a redemocratização, principalmente a partir do governo de Fernando Collor de Melo (1990-1992), o modelo gerencialista vai ganhando corpo até tornar-se o cerne da Reforma do Estado implementada já no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998). A seguir iremos tratar um pouco sobre esse modelo, tendo como referencial os fatos históricos que marcaram nosso país no período.
Alô, alô, Marciano: a crise tá virando zona!
Para que possamos compreender como o modelo gerencialista passa a se estabelecer como forma de gestão predominante no Brasil na década de 1990, é necessário espiar as transformações pelas quais o mundo começa a passar no final do século XX. Tais transformações, de cunho estrutural, envolvem: a aceleração do desenvolvimento tecnológico, especialmente no que diz respeito às tecnologias de informação e comunicação; a ruptura de uma política mundial baseada no protagonismo dos Estados Unidos do lado capitalista e da URSS do lado socialista, o que fica ainda mais evidente com a queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da URSS em 1991; e a globalização da economia, refletida especialmente na formação de grandes blocos econômicos, bem como na maior interdependência econômica dos países em função do protagonismo do sistema financeiro mundial na economia.
Como parte dessas transformações, eventos específicos vão impactar diretamente na forma como a gestão pública dos países vai ser feita. Exemplos desses eventos são: a crise do petróleo de 1973 que vai desestabilizar a economia mundial altamente dependente do petróleo; a crise fiscal dos Estados cuja capacidade de financiar os déficits públicos (despesas maiores que as receitas) torna-se cada vez menor, num contexto de demandas sociais crescentes; e o fortalecimento do setor privado que por meio das grandes multinacionais passam a induzir a definição das políticas nacionais, em função da incapacidade dos Estados em fazê-las.
A solução pro nosso povo eu vou dar…
Esse grupo de acontecimentos vai colocar na berlinda a capacidade dos Estados em dar conta das demandas nacionais, o que abre espaço para as chamadas “Reformas Estruturais” que de forma resumida tinham por pressuposto que a única forma de o Estado ser eficaz – atendendo aos anseios da população – seria por meio da diminuição de seu “tamanho”, tornando-o mais eficiente. O meio para isso ser posto em prática, seria, dentre outras iniciativas, transferir para a iniciativa privada (por meio de concessões ou vendas), parte de sua estrutura e consequentemente de seus serviços e/ou adotando práticas gerenciais da iniciativa privada em seus processos (Algo do tipo: os serviços de saúde funcionam num hospital privado, então vamos conceder ao setor privado a prestação desses serviços, ou vamos fazer gestão conforme ele faz).
Chicletes eu misturo com banana, e o meu samba vai ficar assim…
Bom, todo esse movimento de reformas estruturais do Estado passa a ocorrer em países como Estados Unidos, Reino Unido, Nova Zelândia e Austrália sob a denominação de Nova Gestão Pública, oriunda da expressão inglesa New Public Management e começa a chegar aos poucos ao Brasil até ganhar maior musculatura na década de 1990 com a denominação de Administração Pública Gerencial, em contraponto à Administração Pública Burocrática. É claro que ao dizermos que reformas passaram a ocorrer em diversos países no final do século XX, em função de um contexto mundial comum de transformações estruturais, devemos atentar para o fato de que cada país dado o seu contexto local, as implementou a seu modo… Sendo assim, que tal conhecermos quais as peculiaridades brasileiras dentro dessa conjuntura de transformações estruturais em nível mundial?
Que país é esse?
Na política, estamos falando do chamado período de redemocratização (a partir de 1985): Tancredo Neves é eleito indiretamente Presidente da República, porém José Sarney, seu vice, é quem assume em função de sua morte. Na economia estamos falando de um período conhecido como “década perdida”, tamanha sua instabilidade, principalmente em função da incapacidade do governo em lidar com a hiperinflação (a inflação acumulada na década de 1980 foi de 36.850.000%: não houve erro de digitação é trinta e seis milhões mesmo!!! Só em 1989, foi de 1.764,86%!!! Lembrando que em 2015 fechamos o ano com uma inflação de 10,67%).
No campo da gestão, o Estado brasileiro passa por uma grave crise fiscal que torna inviável continuar arcando com o desenvolvimento econômico. É também neste período, especificamente em 1988, que a nova Constituição em vigor até hoje é promulgada. Denominada de “Constituição Cidadã” a nova constituição tem um foco especial na garantia dos direitos dos cidadãos. Em 1990, pela primeira vez após o Regime Militar, um presidente eleito democraticamente pelo voto direto toma posse: Fernando Collor de Melo. Pode-se dizer que com forte influência dos resultados das reformas estruturais que relativamente deram certo em países como Reino Unido e Estados Unidos, Collor adota uma série de medidas já no início de seu mandato, como por exemplo: extinção e fusão de entidades governamentais, demissão e remanejamento de uma série de funcionários e privatização de estatais. O objetivo? Racionalizar a máquina pública, considerada ineficiente e por isso mesmo incapaz de atender às demandas da população. Vale destacar que Collor venceu as eleições com um discurso de acabar com as regalias de certos funcionários públicos a quem denominava de “marajás” pelo fato de trabalharem pouco e ganharem muito. Resultado: a imagem do serviço público no início da década de 1990 estava desgastada e a administração pública era considerada incapaz de dar conta das necessidades dos cidadãos: “muito burocrática!”. As demissões e privatizações estavam, portanto, mais do que justificadas.
No meio do caminho tinha um Elba
Sabemos que os planos de Collor para dar sequência a implantação de um modelo gerencialista de gestão na administração pública foi interrompida com a cassação de seu mandato pelo Congresso Nacional por meio de um processo de impeachment em 1992. O vice Itamar Franco assume em seu lugar tendo que dar continuidade à luta contra um dos principais males da economia que ainda persistia: a hiperinflação. E isso finalmente se concretiza com o sucesso da implantação do Plano Real, que conseguiu romper com o ciclo inflacionário e trazer estabilidade à economia.
O impacto foi tão significativo que o sucesso do Plano praticamente deu conta de eleger Fernando Henrique Cardoso, Ministro da Fazenda durante a implantação do Real. Com uma economia mais estabilizada, Fernando Henrique assume a Presidência tendo condições de pôr em prática uma Reforma do Estado considerada fundamental para lidar com os problemas com os quais o modelo burocrático de gestão não foi capaz: ineficiência da máquina pública; procedimentos e regras excessivamente rígidas; falta de recursos orçamentários; alocação inadequada de pessoal na máquina pública, com alguns órgãos inchados e outros carentes de funcionários, entre outros aspectos.
Ão ão ão: gestão é a solução?
Já em seu primeiro ano de mandato (1995), Fernando Henrique decide seguir a cartilha das Reformas que aconteciam ao redor do mundo naquele final de século e cria um ministério especialmente para isso: o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE). O MARE teve à frente o ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, que foi o responsável por colocar em prática o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Dentre os principais objetivos desse Plano estavam: a modernização das máquinas estatais nos três níveis da federação (municipal, estadual e federal) para ganhos de eficiência e contribuição para o ajuste fiscal promovido pelo governo, por meio de redução de possível excesso de servidores em determinados órgãos, fixação de tetos de remuneração, bem como alteração em regras de aposentadoria dos servidores.
O meio mais adequado para atingir tais objetivos era usar de práticas consagradas na iniciativa privada na administração pública (daí o termo “gerencialismo” cunhado para esse modelo de administração): uso de indicadores de desempenho para controle de resultados; descentralização administrativa; uso mais racional dos recursos; flexibilização de processos; uso de pressupostos da gestão da qualidade total como: satisfação do “cliente” (cidadão), melhoria contínua, participação dos servidores na tomada de decisão; terceirização de atividades de apoio; reestruturação da máquina pública incluindo o enxugamento de pessoal.
Eu posso vender… Quanto vai pagar?
Além dessas iniciativas, pode-se destacar a privatização de atividades empresariais estatais (exemplo: telefonia e siderurgia) tendo em vista o reconhecimento da incapacidade do Estado em administrar empresas que poderiam ser mais eficientes e consequentemente gerar mais riqueza ao país sendo gerenciadas pela iniciativa privada. Destaca-se ainda a distinção de atividades exclusivas (relacionadas à regulamentação, fiscalização, fomento e definição das políticas públicas) e não exclusivas do Estado (que poderiam também ser executadas pela iniciativa privada, como por exemplo: serviços de saúde, educação, cultura, pesquisa, etc.).
É aqui que são criadas as primeiras agências reguladoras (atividades exclusivas do Estado), bem como se cria a figura das Organizações Sociais (pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde), que podem executar as atividades não exclusivas do Estado. E por fim, já na metade do segundo mandato, há que se destacar a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Próximo!
Fernando Henrique Cardoso, como se sabe, foi reeleito em 1998, ficando na presidência até o ano de 2002, quando foi eleito o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em seu governo, princípios da proposta gerencial foram aproveitados como: os pressupostos da gestão da qualidade, os contratos de gestão e a manutenção e ampliação das agências reguladoras. Cria ainda o Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização (GESPÚBLICA) com o objetivo de avaliar e melhorar continuamente os serviços públicos prestados à população. Por outro lado, deixa de lado a ideia de fomentar a ida de certas atividades classificadas como não exclusivas ao Estado à iniciativa privada, o que fica evidenciado com a expansão das universidades públicas, por exemplo.
Ainda somos os mesmos?
Por estar ainda em andamento, seria incipiente afirmar os limites e aderências do governo Dilma ao modelo gerencialista, porém é perceptível que há convergência quando se analisa, por exemplo, a ampliação das concessões de serviços públicos à iniciativa privada, sem falar no perfil de “gerente” que desde antes de assumir a presidência foi colado à sua imagem para lhe passar credibilidade no ato de administrar o país. É importante destacar também que ao entrarmos em contato com as organizações públicas quando necessitamos de algum serviço, percebemos que o modelo gerencialista, apesar de toda a intenção de ser uma resolução dos problemas de ineficiência, não foi capaz de atender a contento as necessidades da população. Isso fica evidenciado ao olharmos a situação da saúde, da educação, do saneamento básico e da segurança – apenas para dar alguns exemplos, mas que já são tão significativos. Curiosamente, isso se dá porque ainda convivemos com traços do que há de pior dos modelos de administração pública que precederam ao gerencialista e dos próprios limites deste modelo.
No último texto de nossa trilha iremos discutir dois modelos alternativos ao modelo gerencialista que acabamos de apresentar, mostrando até que ponto já se fazem presentes na administração pública brasileira. Até lá!
Referencia:
JUNQUILHO, Gelson Silva. Teorias da administração pública. Florianópolis: Departamento de Ciências da Administração / UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2010. 182p.