Em agosto de 2023, o continente africano presenciou o oitavo golpe de Estado bem sucedido em seu território. Após o presidente do Gabão, Ali Bongo Ondimba, ter sua reeleição anunciada, militares tomaram o controle do país levaram o continente aos oito golpes de Estado realizados.
Antes do Gabão, Níger, Burkina Faso, Mali, Chade, Guiné e Sudão também foram vítimas de movimentos similares apenas nesta década. Até mesmo para um continente com histórico de intervações, este se mostra um número alarmante de golpes de Estado.
A região, com histórico conturbado de regimes autoritários no período pós-imperialista europeu, viu os esforços democráticos ruírem em alguns países. Neste artigo, a Politize! abordará o tema mais a fundo e te ajudará a entender os recentes movimentos na África.
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Como os golpes de Estado ocorreram?
Veja também nosso vídeo sobre golpes de Estado que transformaram o mundo!
Golpe de Estado: Chade
Chade foi o primeiro país africano a testemunhar um golpe de Estado na década. Até abril de 2021, o país era governado por Idriss Déby Itno, político de longa data no governo chadiano.
Com passado militar e participação ativa na definição dos rumos políticos da nação norte-africana, Idriss Deby foi morto em combate. O fato ocorreu após o ex-presidente se envolver em uma ofensiva ocorrida no norte do país, contra o movimento rebelde FACT.
Após a confirmação da morte de Idriss Déby, instaurou-se uma junta militar denominada CMT (Conselho militar de transição. Tradução livre). Seu objetivo era assumir o controle do governo chadiano e dar continuidade aos combates contra o FACT. Para tal, apontaram Mahamat Déby, o filho do ex-presidente, como presidente de transição do Chade.
Em outubro de 2022, a CMT foi dissolvida e um parlamento interino foi instaurado por meio do Conselho Nacional de Transição. Mahamet Déby seguiu como presidente de transição.
Ainda que os movimentos após a morte de Idriss Déby se configurem como uma tomada de poder por parte das forças militares, o contexto no Chade não implica um golpe de Estado que subverteu as forças dominantes no país.
Golpe de Estado: Mali
O povo do Mali observou duas tentativas bem sucedidas de golpes de Estado nos últimos anos, em 2020 e 2021.
Após uma onda de protestos pacíficos da população contra o presidente Ibrahim Boubacar Keïta (IBK), militares tomaram o poder. Keïta era criticado por problemas econômicos, além de casos de corrupção. Por conta disso, o golpe de Estado contou com relativo apoio da população.
Os esforços para o restabelecimento de um governo democrático foram liderados pelo Comitê Nacional para Salvação do Povo (CNSP). O militar Bah Ndaw foi nomeado presidente interino e Assimi Goïta como vice-presidente. Em maio de 2021, entretanto, o próprio Goïta liderou um novo golpe.
Embora o primeiro movimento golpista, em 2020, tenha significado uma alteração na cadeia de comando do país, o golpe de 2021 apenas representou uma troca nas peças que já detinham o poder.
Golpe de Estado: Guiné
Militares também atuaram no ano de 2021 para depor o então presidente da Guiné, Alpha Condé. O golpe ocorreu após insatisfação de determinados grupos militares envolvendo a demissão de um oficial de alta patente por Condé.
Em setembro de 2021, militares anunciaram a dissolução da constituição, além do fechamento do parlamento e das fronteiras do país. O responsável pelos anúncios em questão foi Mamady Doumbouya, membro das forças especiais da Guiné e nomeado presidente interino.
Golpe de Estado: Sudão
Em outubro de 2021, militares liderados por Abdel Fattah al-Burhan destituíram o primeiro-ministro civil em exercício Abdalla Hamdok. Com uma economia em frangalhos e sem conseguir apoio de entidades internacionais e de outros países, acordos entre as partes permitiram o retorno de Hamdok ao poder no fim de 2021.
Os dois principais grupos responsáveis pelo golpe encontravam-se (e ainda encontram-se) com uma relação estremecida, em constante disputa por poder. Os grupos em questão eram o RSF, grupo considerado rebelde e as próprias Forças Armadas do Sudão. Abdalla Hamdok ainda renunciou no início do ano seguinte.
Os crescentes conflitos entre os dois grupos ocasionou um aprofundamento da crise econômica no país e um movimento de êxodo principalmente da capital do Sudão.
Golpe de Estado: Burkina Faso
Em 2022, Burkina Faso foi palco de dois golpes de Estado. Em ambos os casos, a justificativa se deu pelas questões de segurança enfrentadas pelo país.
Em um primeiro momento, o militar Paul-Henri Sandaogo Damiba e seus apoidadores depuseram o então presidente Roch Marc Christian Kaboré. Damiba se manteve no poder apenas entre janeiro e setembro, quando foi deposto pelo oficial Ibrahim Traoré.
Traoré permanece no poder, apoiado pelos militares, e assim como seu antecessor, segue a cartilha proposta pela Cedeao. Espera-se que o governo de transição não concorra às próximas eleições, que devem ocorrer em julho de 2024.
Golpe de Estado: Níger
No Níger, militares tomaram o poder após depor o então presidente Mohamed Bazoum. O sucesso do golpe de Estado provocou reações variadas entre os países do Sahel. A Cedeao, por exemplo, condenou as ações dos militares nigerenses. Os governos militares de Mali e Burkina Faso, por sua vez, declararam apoio ao novo governo do país.
O país do Sahel recebeu também apoio explícito da Rússia, em contrapartida à movimentação da Cedeao ante mais um país membro sofrendo com golpes de Estado. Até o momento, o governo provisório informou que pretende realizar a transição para um governo civil em até 3 anos.
Golpe de Estado: Gabão
O caso mais recente de golpe de Estado bem sucedido no continente africano ocorreu no Gabão, em agosto de 2023. O golpe ocorreu após o resultado das últimas eleições, que indicavam a vitória e reeleição de Ali Bongo Ondimba.
Sob suspeitas de que as eleições tivessem ocorrido em condições de irregularidade, militares encabeçados por Brice Oligui detiveram Bongo e declararam o resultado da eleição como anulado. O Comitê para Transição e Restauração das Instituições (CTRI) foi instaurado para conduzir a transição e tem em Oligui o presidente de transição.
Quais as semelhanças entre os golpes de Estado?
Os golpes de Estado contaram com participação dos militares
Um dos principais fatores em comum aos casos de golpe de Estado aqui mencionados é a participação ativa de militares. Ainda assim, como mencionamos no decorrer deste texto, nem todos os golpes constituíram uma subversão de poderes. De toda forma, a relevância das Forças Armadas nos golpes evidencia a importância que estas ainda possuem no continente africano.
Para muitos especialistas, a propensão à participação de militares neste tipo de movimentação é sustentada por diversos aspectos. A possibilidade de apoio popular é uma delas. A percepção popular sobre corrupção no meio político e economias fragilizadas são fatores que acabam alimentando o apoio ao autoritarismo.
Em um país no qual o povo sofre constantemente com problemas sociais como a pobreza e a fome, e os líderes são percebidos como corruptos, a possibilidade de melhora via governos autoritários passa a ser vista com menos restrições.
Governos corruptos e economias frágeis
Dos sete países abordados neste texto, nenhum figura entre as 10 maiores economias da África em termos de PIB. O melhor colocado dentre eles é o Sudão, na 14ª posição. Economias fragilizadas podem levar a pioras em indicadores econômicos que são sentidos diretamente pela população.
Além disso, governos e governantes corruptos afetam avanços econômicos e sociais. A percepção de que a corrupção cada vez mais aumenta é sentida pela população. Ademais, nenhum governo é percebido como um governo que atue efetivamente contra casos de corrupção.
Proximidade geográfica e fronteiras terrestres
Uma percepção interessante sobre tentativas de golpes de Estado é que estes parecem se espalhar quase que de maneira contagiosa.
Como os motivos, ao menos no contexto africano, para golpes de Estado recentes possuem semelhanças, as Forças Armadas de determinados países podem se sentir motivadas a iniciar um movimento golpista ao perceberem o mesmo movimento ocorrendo de maneira bem sucedida em países vizinhos.
Ao se analisar por esta perspectiva, o fato de a maioria dos países com casos recentes de golpes de Estado compor o chamado Sahel passa a fazer mais sentido.
Um outro fator relevante é que, via de regra, o estabelecimento de ditaduras ou governos de transição militares tende a ser questionado por países estrangeiros e organizações internacionais.
Os recentes casos na África geraram reações fortes da Cedeao, com ameaças de sanções e de intervenção. Por sua vez, os governos provisórios de Burkina Faso, Niger e Mali anunciaram um acordo mútuo de defesa, contrapondo as movimentações contrárias.
Quais os impactos geopolíticos dos golpes de Estado?
A reação da Cedeao
A nível internacional, a reação da Cedeao talvez seja uma das mais relevantes. Cedeao é a sigla para Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, que compreende o bloco econômico criado por diversos países do oeste africano. Dentre estes países estão Mali, Níger e Burkina Faso.
Assim que o golpe de Estado ocorrido no Níger foi anunciado, a Cedeao se manifestou impondo sanções econômicas ao seu país-membro, bem como ameaçando uma ofensiva militar para prevenir o estabelecimento de um governo provisório oriundo do golpe de Estado.
Ao se comprometerem com o auxílio mútuo em caso de intervenções externas, os países da Cedeao que agora lidam com governos provisórios se impõe como antagonistas aos esforços do bloco de manter a unidade entre as nações-membro. Isso tanto potencializa novos movimentos golpistas em outros países como coloca à prova a força da Cedeao enquanto organização.
Reações da França
Um dos países fora do continente africano mais afetados pela onda recente de golpes é a França. Potência colonialista nos séculos XIX e XX, o país europeu viu sete de suas ex-colônias africanas se moverem em direção aos golpes de Estado.
Os franceses também viram o sentimento anti-França aflorar tanto nas populações destes países, quanto nos governos que tomaram o poder. Historicamente com uma forte atuação militar no continente africano, a França também viu muitas de suas tropas deixarem países francófonos a pedidos deles próprios.
Embora ainda possua participação relevante em relações econômicas e diplomáticas no continente, a perda de influência francesa fica explícita com os movimentos recentes e com o aumento de relevância de outros atores globais, como Rússia e China.
Chegada de Rússia e China
A chegada de Rússia e China no continente também impactou o status quo da África como um todo. Os investimentos econômicos de China e a participação militar da Rússia oferecem melhores condições para que os países envolvidos em golpes de Estado se posicionem mais firmemente.
Mesmo antes da morte de Yevgeny Prigozhin, a participação de forças militares russas no continente africano era intensa. A atuação do grupo no combate a forças terroristas atuantes nos países do Sahel fortaleceu militarmente algumas nações africanas.
A presença de mercenários ligados ao grupo Wagner agindo a favor de interesses russos contribuiu para a deterioração da relação de alguns destes países com a França, como são os casos de Mali, Burkina Faso, Níger e Chade.
Esta aproximação proporcionou um apoio extremamente relevante às juntas militares advindo da Rússia. Até porque, o país oriental ainda se posiciona a nível internacional como um agente de grande relevância.
Da mesma forma, a presença de investimento chinês, com foco em recursos naturais e aumento de seu mercado exportador, fez as forças influentes na África aumentarem, e o monopólio ocidental diminuir.
Buscando também expandir boas relações com mais governos ao redor do globo – visando até mesmo explicitar maior reconhecimento e legitimidade ao governo chinês mundo afora -, a maior participação chinesa na África influencia diretamente o posicionamento das juntas militares recentes.
Ao se somar a perda de influência francesa com o aumento da influência oriental – capitalizadas por China e Rússia -, o peso das críticas e potenciais movimentações mais agressivas do Ocidente é colocada em xeque.
O continente africano é repleto de particularidades e ainda enfrenta muitos desafios. Os acontecimentos recentes são reflexos desta complexidade que torna a África uma região única no globo.
E você, o que acha dos últimos acontecimentos na África? Quais serão os próximos movimentos no complexo tabuleiro geopolítico africano? Conta pra gente nos comentários!
Referências:
- Africa Center – China’s United Front Strategy in Africa
- Africa Center – Understanding Burkina Faso’s Latest Coup
- Africa News – Is anti-French sentiment prevailing in Francophone Africa?
- Africa Renewal – THE SAHEL: LAND OF OPPORTUNITIES
- Al-Jazeera – A ‘coup’ in Gabon: Who, what and why?
- Al-Jazeera – Africa’s coup epidemic: Has democracy failed the continent?
- Al-Jazeera – Guinea coup: Military arrests president, dissolves government
- Al-Jazeera – Mali, Niger and Burkina Faso establish Sahel security alliance
- Al-Jazeera – Niger coup: Divisions as ECOWAS military threat fails to play out
- Al-Jazeera – What is happening in Sudan? A simple guide
- AP News – Russia’s Wagner mercenaries face uncertainty after the presumed death of their leader in plane crash
- BBC News – Niger coup: Russia warns Ecowas not to take military action
- Business Day – The root cause of military rule in Africa and pragmatic solutions
- Carnegie Endowment for International Peace – The Niger Coup’s Outsized Global Impact
- Chatcham House – Reversing the military coup in Sudan
- Civicus – MALI’S “MILITARY COUP WITHIN A COUP”: NO ELECTIONS IN FEBRUARY
- 2022; JOURNALIST ABDUCTED
- ECOWAS – About ECOWAS
- France 24 – Burkina Faso, Mali say military intervention in Niger would be ‘declaration of war’
- France 24 – French army officially ends operations in Burkina Faso
- Friedrich Naumann Foundation – Russian influence in the Sahel: Wagner and the support of military juntas
- Poder360 – Países da África tiveram 7 golpes de Estado em 2 anos
- Rand Corporation – China in Africa: Implications of a Deepening Relationship
- Reuters – Sudan’s economy sinks as post-coup leadership searches for support
- Reuters – West Africa threatens force on Niger coup leaders, French embassy attacked
- The Conversation – Civilian support for military coups is rising in parts of Africa: why the reasons matter
- The Washington Post – Chad’s president lived and died by the gun. Will the country shift away from militarized rule?
- Transparency International – Corruption in Africa: 75 million people pay bribes
- United States Institute of Peace – After Two Coups, Mali Needs Regional Support to Bolster Democracy
- United States Institute of Peace – Five Things to Know About Mali’s Coup
- United States Institute of Peace – What to Know About Gabon’s Coup
- Wikipedia – 2021 Northern Chad offensive
- Wikipedia – Abdalla Hamdok
- Wikipedia – Abdel Fattah al-Burhan
- Wikipedia – Ali Bongo Ondimba
- Wikipedia – Assimi Goïta
- Wikipedia – Bah Ndaw
- Wikipedia – Brice Oligui
- Wikipedia – Committee for the Transition and Restoration of Institutions
- Wikipedia – Ibrahim Boubacar Keïta
- Wikipedia – Ibrahim Traoré
- Wikipedia – Front for Change and Concord in Chad
- Wikipedia – Mamady Doumbouya
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- Wikipedia – National Committee for the Salvation of the People
- Wikipedia – Paul-Henri Sandaogo Damiba
- Wikipedia – Rapid Support Forces
- Wikipedia – Roch Marc Christian Kaboré
- Wikipedia – Sudanese Armed Forces
- Wikipedia – Transitional Military Council (Chad)
- VOA News – Coups in Africa
- VOA News – ECOWAS Unity Put to Test as West African Coup Crisis Deepens