Marcada por crises econômicas e revoltas ocorridas país afora, a década de 1830 foi a mais conturbada da história nacional. Balaiada, Malês, Sabinada, Cabanagem e Farroupilha foram as revoltas provinciais eclodidas durante o Período Regencial (1831-1840). De todas elas, a Guerra dos Farrapos (1835-1845) foi a mais longeva.
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O que foi a Guerra dos Farrapos, quais foram os seus antecedentes e quais os seus desdobramentos? Prepare seu mate (ou tererê) e deixe que a Politize! explica o que você precisa saber sobre esse acontecimento relevante da história nacional.
Antecedentes da Guerra dos Farrapos: a Cisplatina virou Uruguai
Até 1828, o atual território uruguaio pertencia ao Império do Brasil. Muitos gaúchos criadores de gado possuíam estâncias naquela que era conhecida como a Província Cisplatina. Porém, em 1828, o Brasil teve de reconhecer a independência da República do Uruguai. A emancipação do país resultou da intervenção inglesa na Guerra da Cisplatina (1825-1828), entre o Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata. O surgimento da República do Uruguai desagradou esta elite estancieira da Campanha rio-grandense. O motivo? O novo país se tornou um concorrente na produção do charque (carne salgada).
Além da perda do acesso ao Uruguai e a concorrência da carne estrangeira, esta elite regional se queixava dos impostos. O governo brasileiro não cobrava tributos sobre o charque importado de outros países. Porém, o Império impunha impostos sobre a importação do sal, item essencial para a produção da iguaria nas terras sulinas.
Como se não bastasse sentir o órgão mais sensível do corpo ser atingido, o bolso, esta elite regional não se sentia politicamente representada. Os Presidentes de Província (atuais Governadores de Estados) eram nomeados pelo Governo Central, no Rio de Janeiro. Naquela época o Brasil era regido pela Constituição de 1824, considerada centralista e autoritária, pois instituía o Poder Moderador. Foi a nomeação de um Presidente de Província não quisto pela elite local que desencadeou o conflito em 1835.
Quem eram os envolvidos na Guerra dos Farrapos?
Na linguagem do século XIX, “farroupilha” era um termo usado para se referir a políticos considerados radicais em suas ideias. Podiam ser definidos como “farroupilhas” as lideranças que defendiam uma maior autonomia para as províncias (Federalismo) ou os que propugnavam o Republicanismo. Porém, este radicalismo não significa que os farroupilhas defendessem a abolição da escravidão. Aliás, muitos dos farrapos eram proprietários de escravos, como Bento Gonçalves, principal líder rebelde.
Ou seja, os farroupilhas eram indivíduos da elite rural da Campanha do Rio Grande do Sul. Dentre eles, estavam fazendeiros criadores de gado (estancieiros), comerciantes ligados ao charque e militares. Estes indivíduos exerciam o seu poder em cidades do extremo-Sul, como Piratini, Bagé, Caçapava do Sul e Alegrete. Além de Bento Gonçalves, outros líderes do movimento foram Davi Canabarro, Antonio de Souza Netto, Domingos José de Almeida, entre outros.
10 anos de Guerra dos Farrapos
A Guerra dos Farrapos foi a revolta mais duradoura contra o governo brasileiro durante o Período Regencial. No entanto, ela esteve longe de ser uma unanimidade dentro da República Rio-Grandense, proclamada em 1836 por Antônio de Souza Netto. Na verdade, o Rio Grande do Sul se dividiu.
As cidades da Campanha foram favoráveis ao movimento, tais como Piratini, Caçapava do Sul e Alegrete. Em diferentes momentos, estas três cidades foram nomeadas capitais da República Rio-Grandense. Por outro lado, as cidades do Litoral permaneceram leais ao Império, como Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre. A capital gaúcha inclusive leva o título de “Leal e Valerosa Cidade de Porto Alegre”. A honraria foi concedida pelo governo brasileiro após esta resistir a um cerco farroupilha.
Apesar de não ser consenso dentro do próprio Rio Grande do Sul, a revolta dos farroupilhas cruzou o rio Mampituba e chegou às terras catarinenses. Em julho de 1839, após terem tomado a cidade de Laguna, os farroupilhas proclamaram a República Juliana. A conquista da cidade foi possível graças a um ataque naval surpresa liderado pelo revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi. Mas, como os farrapos conseguiram colocar barcos no mar se o porto de Rio Grande era pró-Império?
As embarcações “Seival” e “Farroupilha” foram transportadas por 60 km por duas grandes carretas puxadas por centenas de bois. O pisódio ficou conhecido como Expedição a Laguna. Apesar de todo esse esforço empreendido pela conquista da cidade catarinense, poucos meses depois a região foi retomada pelas tropas imperiais.
A longa duração do conflito pode ser explicada por um conjunto de fatores. A Guerra dos Farrapos foi uma guerra de guerrilhas. Neste tipo de conflito não ocorrem decisivos enfrentamentos entre os exércitos, mas ataques rápidos e surpresas. Além disso, a grande extensão do território e as intempéries clima contribuíram para prolongar a contenda.
O principal fator, no entanto, está relacionado com o Uruguai. O território vizinho era usado pelos rebeldes para se reabastecer de animais e armamentos e exportar charque via Montevidéu. Isso era necessário pois o único porto gaúcho, de Rio Grande, sempre esteve sob posse imperial. Estas transações eram facilitadas pelos contatos que os líderes farroupilhas possuíam no Uruguai. Inclusive, muitos deles possuíam terras, negócios e familiares no país vizinho.
Nas outras revoltas do Período Regencial, as tropas imperiais cercavam e derrotavam os rebeldes. No Sul do Brasil, porém esta tática não pôde ser usada e os farrapos souberam usar a fronteira a seu favor.
Fim da Guerra dos Farrapos: uma “Pacificação” permeada por polêmicas
Em 1845, os farroupilhas estavam enfraquecidos devido a derrotas militares e a divisões internas. Importantes personagens já haviam abandonado a causa, como o líder Bento Gonçalves. Outra perda foi a do revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi, que partiu para o Uruguai junto de sua esposa Anita Garibaldi. No entanto, as tropas farroupilhas seguiram resistindo pelas coxilhas da Campanha gaúcha.
O encarregado de pôr fim à Guerra dos Farrapos já tinha um histórico de “pacificação” de outras revoltas provinciais. Em 1840, o Conde de Caxias (futuro Duque de Caxias) derrotou a Balaiada, no Maranhão, por meio de uma feroz repressão ao movimento de caráter popular. Não seria diferente no Sul do Brasil. Em 1845, as tropas imperiais realizaram o Massacre dos Porongos, em que dizimaram os lanceiros negros do exército farroupilha. Ao invés da prometida liberdade, os escravizados que participaram do conflito receberam a morte em uma emboscada.
No entanto, ao negociar com os oficiais farrapos, Caxias usou a pena em vez da espada. O Acordo de Paz do Poncho Verde, de 1845, selou o fim do conflito e concedeu benefícios aos farroupilhas. Eles foram incorporados ao exército brasileiro, mantendo patentes e soldos. Por qual motivo Caxias foi tão bondoso com aqueles que lutaram contra o Império por dez anos?
Acontece que o Império do Brasil via com preocupação a ascensão de uma liderança na Bacia do Rio da Prata. Como governador da província de Buenos Aires, o estancieiro Juan Manuel de Rosas ameaçava a hegemonia e os interesses brasileiros na região. O líder argentino tinha pretensões de reunificar o antigo Vice-Reino do Rio da Prata. Aquele território abrangeria regiões que atualmente pertencem ao Uruguai e ao Paraguai. Embora difíceis de serem concretizadas, estas ambições geravam preocupação no governo brasileiro. Para derrotar o inimigo em potencial, o Império precisava dos militares farroupilhas ao seu lado.
Desdobramentos e usos políticos da Guerra dos Farrapos
A estratégia do governo central deu certo. Os farroupilhas ajudaram a derrotar Rosas em 1852 e alguns deles ainda atuaram nos primeiros anos de guerra contra o Paraguai, em 1864. Ou seja, várias lideranças farroupilhas defenderam os interesses do governo Imperial após o término do conflito. Apesar disso, com o passar dos anos a Farroupilha e os farrapos caíram em um relativo esquecimento.
Foi nos anos 1930, durante a Era Vargas (1930-1945), que a Guerra dos Farrapos foi resgatada. Em 1935, por exemplo, ela foi relembrada por escritores, jornalistas e historiadores durante o Centenário da Revolução Farroupilha, no Parque Farroupilha de Porto Alegre. A partir de então, a Guerra dos Farrapos se tornou um “mito fundacional” da identidade gaúcha. Uma grande estátua equestre em homenagem a Bento Gonçalves, por exemplo, foi erigida em 1936, em Porto Alegre.
Saiba mais: Era Vargas
A Guerra dos Farrapos inspirou não só músicas, pinturas, poesias e lendas, mas também os símbolos do Estado: a bandeira, o brasão e o hino foram elaborados durante o conflito. Além disso, o 20 de setembro é o principal feriado estadual, marcado por desfiles e festividades. Porém, a Guerra dos Farrapos segue dividindo a população do estado, tal como um Gre-Nal.
De um lado, estão aqueles que defendem que ela foi uma revolução, pois implicou na separação de uma parte do território do Império do Brasil e na adoção da República, ainda que por um breve período. Do outro lado estão os que questionam o caráter revolucionário de um movimento liderado pela elite pecuarista e escravista da Campanha. Para estes, a farroupilha não passou de uma revolta de elite que desencadeou uma guerra civil dentro do próprio estado.
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A cada 20 de setembro, estas polêmicas ressurgem tão acaloradas quanto a água do chimarrão. Em 2021, o vereador portoalegrense Matheus Gomes (PSOL) se recusou a cantar o hino rio-grandense devido a um trecho que afirma que “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. O vereador também mencionou em suas manifestações o Massacre de Porongos para justificar sua ação. Em 2023, a polêmica voltou, mas desta vez na Assembleia Legislativa, que aprovou a imutabilidade dos símbolos do estado como forma de impedir que ele venha a ser alterado no futuro.
Os defensores da letra do hino sustentam que o trecho em questão não é racista ou escravista. Segundo eles, a letra faz referência à “injusta” submissão da então província do Rio Grande do Sul ao Império do Brasil antes do conflito acontecer.
Revolução ou revolta? A polêmica continua da mesma forma como a Farroupilha continuará suscitando novas temáticas conforme a sociedade sul-riograndese se defronta com novas problemáticas. Apesar das divergências, é provável que os gaúchos concordem com Osvaldo Aranha, que teria dito que não se pode escrever a história do Brasil sem mergulhar a tinta da caneta no sangue derramado no Rio Grande do Sul.
E para você, a Farroupilha foi uma revolução ou uma revolta? Deixe sua resposta nos comentários abaixo.
Referências
- CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. O negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
- FLORES, Moacyr. Modelo político dos farrapos. As ideias políticas da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1978.
- KUHN, Fabio. Breve história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007.
- PADOIN, Maria Medianeira. Federalismo gaúcho. Fronteira platina, direito e revolução. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.
- Jornal Tradição – Piratini: museu histórico farroupilha guarda história da revolução de 1835
- UOL Notícias – Vereadores se recusam a cantar hino do Rio Grande do Sul por trecho racista
- BBC Brasil – Massacre dos Porongos: a história da chacina dos soldados negros no Rio Grande do Sul
- Gaúcha ZH – Giuseppe Garibaldi e seus lanchões
- Gaúcha ZH – Ponche Verde celebra a paz
- Gaúcha ZH – A revolução farroupilha como mito fundador da identidade gaúcha
- G1 – Por 38 votos a 13, Assembleia Legislativa aprova proposta que impede alteração no hino do RS