Humanização do judiciário: quais os reflexos da importação do direito na cultura de litigância?

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Lima Barreto
Lima Barreto, autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma.

Direito e Literatura possuem características em comum. Ambos se sustentam no momento histórico de uma sociedade; ambos são flexíveis. Flexíveis pelo fato de se moldarem ao costume, a economia e a política de determinada época.

Veja só: o Direito tem por capacidade criar, alterar ou extinguir, parcial ou totalmente, uma norma jurídica de acordo com os valores de uma sociedade. Um exemplo: em 2005, a Lei nº 11.106 revogou o art. 240, do Código Penal, que trata sobre o crime de adultério. Punia-se a infidelidade feminina sob o argumento de defender a honra do homem. Atualmente, isso é algo não mais aceitável em nossa sociedade. E de uma forma o tema não ficou restrito ao direito, também o foi tratado pela literatura: A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos, de Clarice Lispector; A letra escarlate, de Hester Prynne; e outros.

Essa interdisciplinaridade nos facilita a compreender conceitos jurídicos, a entender o momento histórico, ajuda no entendimento e interpretação de uma norma. A Literatura no Direito muito tem a nos ensinar.

A ideia deste texto é compreender a importação do Direito, isto é, de modelos jurídicos – com ênfase para o realismo jurídico americano – para o nosso ordenamento jurídico, e como isso nos garantiu uma busca incessante pelo Poder Judiciário, a chamada cultura de litigância. Para isso vamos nos apoiar na literatura de Lima Barreto, em “O triste fim de Policarpo Quaresma”, e de Aluísio Azevedo, em “O cortiço”. Vamos nessa!

Policarpo Quaresma, um crítico de modelos importados

Lima Barreto, criador de Policarpo Quaresma, deixa em seu personagem princípios e valores seus. O autor, em sua obra, faz questão de criticar uma “sociedade recortada e importada”. Durante a leitura do livro percebemos uma condenação aos modelos políticos, institucionais e culturais europeus importados para o Brasil.

Essa condenação acaba por atingir a Administração Pública brasileira e, paralelamente, ao Direito Administrativo. Em resumo, pode-se dizer que é uma crítica ao princípio da legalidade, importada do direito francês, e como foi sua aplicação ao contexto histórico-social brasileiro.

Para melhor entendermos. Em 1915 é lançada a primeira edição do livro “O triste fim de Policarpo Quaresma”. A história se passa em 1893, apenas quatro anos após o fim da Monarquia no Brasil; ou seja, o Estado brasileiro da época é uma cópia do Estado português, um modelo importado para o outro. A estrutura do Estado brasileiro, ainda em formação, traz enraizado caracteres tradicionais do Estado português.

Em um breve relato da história é fato saber que os países europeus, e Portugal não fica de fora dessa lista, sofreram influências da Revolução Francesa. Esse período ficou marcado pelo fim do absolutismo e o início da república; ficou marcado pelo lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. A Revolução Francesa influenciou o direito público, garantiu uma nova linguagem ao direito. Isso quer dizer que, a partir daquele momento, a ordem pública passa a ser regida pela igualdade e a liberdade, pelas leis e atos, e não por uma superioridade divina.

Como dito anteriormente, o livro “O triste fim de Policarpo Quaresma” faz crítica ao princípio da legalidade, importado da França revolucionária e, ao mesmo tempo, uma crítica à Administração Pública da época,1893. E aqui podemos entender uma pouco mais.

Com o início da república e a nova roupagem do direito público, a França dá luz a um regime administrativo, estruturado por uma separação das funções administrativas e judiciárias. Isso implica em dizer que ao legislativo era incumbida a função de fixar os princípios gerais (liberdade, igualdade e fraternidade), enquanto o executivo devia reger conforme esses princípios.

Saiba mais sobre a separação dos três poderes aqui!

É válido recordar que a monarquia portuguesa se instala no Rio de Janeiro em 1808. Então quando falamos acima sobre ser o Estado brasileiro uma cópia do Estado português, nós nos apoiamos neste momento da história. Isso significa que a influência sofrida por Portugal, em relação a Revolução Francesa, atinge diretamente os costumes brasileiros, especificamente em um ponto. Anteriormente foi dito que há uma separação das funções administrativas: executivo, legislativo e judiciário. Mas nada disse a respeito desse último. Vejamos.

A nova roupagem do direito estabelecido pela Revolução Francesa origina uma nova ideia de legalidade. Para os franceses isso tem a ver com um Estado de Direito com caracteres judicialista, ou seja, tanto o Parlamento quanto a lei, em suas funções, são restringidos e, em contrapartida, os tribunais ganham destaque como protetores dos cidadãos “contra o arbítrio administrativo”, como explica José Manuel Sérvulo Correia.

Assim, o Brasil “importa” o princípio da legalidade da França revolucionária. Para Têmis Limberger (Promotora de Justiça, do Rio Grande do Sul) e Hector Cury Soares (Professor da Universidade Federal do Rio Grande- FURG), em “O triste fim do princípio da legalidade: do règne de la loi ao reino dos Bruzundangas”, essa importação não é vista com bons olhos. O problema dessas importações é não saber adequá-las para a realidade do Brasil. Policarpo Quaresma sabia, assim como argumentava o Professor Celso Antônio de Mello. Este último critica a importação de modelos oriundos de países centrais, sem ter a preocupação de adequá-los às necessidades do Estado brasileiro; o que, segundo ele, se caracteriza como um “Estado periférico”.

Diante disso, fica visível que o Brasil possui um histórico de importações de modelos. Dito isto, tem em sua lista a importação do realismo jurídico, originário nos Estados Unidos da América, e que, igualmente, sofre críticas por não ter sido adaptado à realidade jurídica brasileira.

O realismo jurídico norte americano

Para entendermos o realismo jurídico precisamos saber o que é, entender sua origem e seu funcionamento. A teoria surgiu no século XX como um contraponto a escola da Exegese, originada no século XIX. Esta tinha por concepção a fidelidade da lei na razão; o código era a norma, e a função do juiz era aplicá-lo, única e exclusivamente.

Por sua vez, o realismo jurídico repele essa concepção de aplicar normas pré-estabelecidas, sob o argumento de dificultar a criação de direito. Os adeptos dessa teoria lecionam que o Direito não é lógico, é fato social, é experiência. A norma tem que condizer com o caso concreto, e não se importar com o código pré-estabelecido.

A crise do sistema legal estadunidense no século XX alavanca a teoria realista. A falta de regulação do direito privado, o espaço reduzido do poder legislativo e a inércia do Estado possibilitaram a imersão do realismo jurídico. Mas vocês devem estar se perguntando, o que é de fato esse realismo jurídico?

O realismo jurídico norte americano se pauta na figura do magistrado; estes são capazes de decidirem sob a ótica de diversos fundamentos, até mesmo com respaldo nos códigos, uma vez que se tornam apenas mais um dispositivo legal. Dessa forma, ele garante ao Direito a finalidade de resolução de conflito; ou seja, não há que se falar em direito sem que tenha sua aplicação no poder judiciário, sem a aplicação do Direito pelo magistrado.

Uma norma quando desobedecida, infringida, ganhava importância quando os fatos que a levaram a ser descumpridas, ou seja, quando alguém descumpria uma lei, eram analisadas pelo juiz e, consequentemente, era dada uma decisão judicial à respeito disso. Em outras palavras, o Direito aplicado pelos magistrados se apoia na patologia social, uma vez que a máquina pública só é acionada quando algum direito é violado, ninguém enquanto satisfeito faria esse movimento. Percebe-se assim, uma busca do Poder Judiciário para a solução de conflitos.

Essa ideia do realismo jurídico nos Estados Unidos teve seu auge quando o sistema jurídico não era alimentado com a variedade de casos e jurisprudências que vemos atualmente.  E foi a partir dessa transação que o judiciário norte americano deixa de lado a teoria realista.  Isso significa dizer que o sistema americano deixa de ter como “última palavra” a decisão do juiz, e passa a se utilizar dos casos concretos, precedentes e jurisprudências.

Vale lembrar aos leitores que estamos falando sobre a importação de modelos jurídicos. E o realismo jurídico foi um desses modelos. Mas se lembrarmos de Policarpo Quaresma e da fala do Professor Celso Antônio de Mello, quando trazemos um sistema jurídico de um país central, esquecemos de adaptá-lo para a nossa realidade jurídica. Assim, a  teoria realista foi originada para solucionar uma crise existente no Estados Unidos, em um determinado momento da história, cujo sistema jurídico era advindo do common law (tem suporte na jurisprudência e nos costumes). Portanto, se temos contextos diferentes, por que o Brasil importou o realismo jurídico se o judiciário nacional é derivado do civil law? (pautado pelo conjunto de leis). Vamos entender agora, mas antes uma breve observação.

O que é civil law e common law?

Quando se diz “um sistema jurídico advindo do common law” isso quer dizer um sistema pautado pelos costumes, é o direito compartilhado, os casos concretos servem como fonte do direito, hoje nos referimos como sistema jurisprudencial, baseado nas teses formuladas pelos tribunais brasileiros.

Enquanto isso, ao dizer “judiciário nacional derivado do civil law”, estamos falando de um sistema regido pela legislação escrita. Ou seja, um sistema pautado pelos códigos, normas e leis; aqui, os costumes e a jurisprudência só serão utilizados em última instância, quando não encontrada nenhuma solução pela legislação. No sistema de civil law a Constituição se destaca no topo da hierarquia, e leis complementares, ordinárias, decretos, portaria, ordens de serviços, se encontram “na linha de sucessão”.

Leia também: o que é jurisprudência?

Animalização do brasileiro e humanização do judiciário: a cultura de litigância.

A resposta feita acima se define em dois fatores. Temos uma interação entre o common law e o civil law, ou seja, o sistema judiciário brasileiro conseguiu fundir o uso de jurisprudências, precedentes e costumes com uso das leis pré-estabelecidas, o código. Outro fator se encontra na nova roupagem do Poder Judiciário dada pela Constituição Federal de 1988

O Poder Judiciário antes da Constituição de 88 era pouco utilizado, mas a partir dela passa a ser peça central para a democracia brasileira. Surge um novo processo: a judicialização das relações sociais. E é desse ponto que inserimos a literatura de Aluísio Azevedo, “O Cortiço” e a cultura de litigância.

A obra de Aluísio Azevedo, “O Cortiço”, expressa a miséria, a pobreza, expõe a sexualização e a animalização dos personagens. O autor personifica o cortiço, o coloca como personagem central, todos os outros funcionam em função do ambiente. E o que isso tem a ver com o Poder Judiciário e a cultura de litigância?

Bom, como dito, Aluísio Azevedo retrata a animalização dos personagens quando estes apresentam seus instintos primários, isto é, brigas e discussões originadas pelo convívio social. Ao mesmo passo, temos a personificação, ou melhor dizendo, humanização do cortiço. Assim sendo, é possível fazer a seguinte analogia: o homem continua sendo representado como um animal, e em contrapartida temos a humanização do Poder Judiciário, e, consequentemente, temos a cultura de litigância.

A cultura de litigância é representada muito bem pela animalização do brasileiro e humanização do sistema judiciário, em clara referência a humanização do cortiço e animalização dos moradores na obra “O Cortiço”. Essa cultura é o resultado da preferência em terceirizar os conflitos, não há a crença em uma alternativa; o judiciário é sinônimo de justiça. Dessa forma, toda e qualquer demanda é judicializada, transformada em litígio, e a capacidade individual de resolver as próprias demandas é desacreditada.

O brasileiro evita admitir ter um conflito, mas quando o faz, não o resolve por conta própria, terceiriza, ou seja, delega para o Judiciário. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em seu relatório “Justiça em Número”, de 2016, ficou constatado que houve no Poder Judiciário 74 milhões de processos em tramitação, sendo 17.388 magistrados e 434.159 outros profissionais para analisarem os processos. Em 2018, segundo o mesmo relatório, o número de processos em tramitação chegou a mais de 100 milhões. Ou seja, dos 20 mil magistrados cada um julgou, em média, 1.819 processos, totalizando 7,2 casos por dia útil.

Leia também: o que são os meios alternativos de resolução de conflitos?

Casamento perfeito: o ideal de brasileiro cordial com a cultura de judicialização das questões sociais. O resultado é um ciclo que se autoalimenta, há a intensificação da regulação social. E como isso acontece? À medida que prefere judicializar inúmeros pequenos conflitos que poderiam ser resolvidos de forma autônoma, sem interferência do Estado. Por exemplo, no Código de Processo Civil (CPC), de 2015, em seu artigo 3º, parágrafo 3º,  enaltece os métodos de solução consensual, ou seja, a conciliação e mediação. Casos simples, como briga entre vizinhos, uma colisão entre carros, uma discussão na reunião de condômino, podem ser resolvidos por meio desses métodos de solução consensual, ao invés de movimentar o Poder Judiciário.

Para finalizarmos gostaria de deixar uma dica de um filme. “A história de Qiu Ju”. Trata-se um filme chinês que aborda como funciona o sistema jurídico no país. Conta como antes de ingressar o processo no Poder Judiciário ele passa por uma série de instâncias conciliatórias. Um breve relato apenas de como podemos discutir nossos conflitos de uma forma mais simples. O que vocês acham?

Gostou do conteúdo? Já havia feito alguma vez essa relação entre Direito e Literatura? Comenta aqui!

REFERÊNCIAS

Âmbito Jurídico

Brasil. Código de Processo Civil

Canal Ciências Criminais

CARVALHO, Mayara de; SILVA, Juliana Coelho Tavares da. A insuficiência da compreensão de Direito a partir da regulação: o exemplo do realismo jurídico estadunidense. Filosofia do direito I, v. 1, p. 89-108, 2014.

Gen Jurídico

LUCENA FILHO, Humberto Lima de. A cultura da litigância e o Poder Judiciário: noções sobre as práticas demandistas a partir da justiça brasileira. Anais do XXI Encontro Nacional do Conselho de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito-‘Sistema Jurídico e Direitos fundamentais Individuais e Coletivos’. 56ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, v. 21, p. 34-64, 2012.

NEVES, José Roberto de Castro. Os advogados vão ao cinema: 39 ensaios sobre justiça e direito em filmes inesquecíveis.

PERETTO, Juliano Augusto Mezzari et al. O cortiço em construção: o espaço literário em O homem e O cortiço, de Aluísio Azevedo. 2020. Dissertação de Mestrado. Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

ROSA, MICHELLI; GAMA, William Ricardo Grilli. DA ESCOLA DA EXEGESE À ADOÇÃO DE UM SISTEMA DE FORMAÇÃO DE PRECEDENTES JUDICIAIS DE OBSERVAÇÃO OBRIGATÓRIA: UMA MUDANÇA DE PARADIGMA? REVISTA IURIS NOVARUM, v. 1, n. 01, 2020.

SANTOS, Joana Isabel Monte Pegado dos. O impacto da Revolução Francesa na historiografia portuguesa oitocentista: uma perspectiva comparada. 2018. Tese de Doutorado.

STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam. Direito e literatura. Editora Atlas SA, 2013.

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Conteúdo escrito por:
Graduando em Direito e criador da página @direitoeliteraturajf, onde é possível conciliar literatura, cinema, séries, música e direito. Tudo de um jeito simplificado e intrigante.
Ferreira, Andre. Humanização do judiciário: quais os reflexos da importação do direito na cultura de litigância?. Politize!, 30 de dezembro, 2020
Disponível em: https://www.politize.com.br/humanizacao-do-judiciario/.
Acesso em: 20 de nov, 2024.

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