Nos últimos dias, as notícias internacionais não falaram de outra coisa: o ataque comandado por Donald Trump que matou o principal líder militar iraniano, Qasem Soleimani e a “Terceira Guerra Mundial” que se conjectura decorrer desse fato. Mas… como assim, “Guerra Mundial”?! O que exatamente está acontecendo entre Irã e Estados Unidos? Bora tentar entender melhor esse cenário e desmistificar esse imbróglio todo?
A primeira coisa que precisamos compreender são as relações entre EUA e Irã: você sabia que durante boa parte do século XX, os dois Estados eram próximos aliados? O que fez então com que eles, de repente, se tornassem inimigos tão fervorosos?
O Irã no Oriente Médio
A República Islâmica do Irã é um país que se encontra na porção asiática do Oriente Médio. Como pode-se perceber pelo mapa acima, faz fronteiras com Iraque, Turquia, Azerbaijão, Turcomenistão, Afeganistão e Paquistão, e possui grandes ligações marítimas. Sua posição estratégica no mapa, contudo, não é recente: as raízes do país traçam a grandes impérios que dominaram e exerceram grande influência na região. Em seu auge, o antigo Império Persa alcançou territórios na África, Ásia e Europa.
Hoje, a hegemonia iraniana na região se dá em especial por três elementos:
- A Liderança Xiita (o país conta com a maior população xiita da região) e – em debate com a Arábia Saudita – islâmica regional (uma vez que é o único Estado democraticamente islâmico do Oriente Médio, após a Revolução Islâmica popular de 1979 – onde o povo foi às ruas pedir pela oficialização dessa representação político-religiosa, como explicamos neste post);
- Sua forte indústria petrolífera, com 13% das reservas mundiais de petróleo, atrás apenas da Venezuela e da Arábia Saudita – segundo dados da OPEP (ainda sem contar as descobertas de novas imensas jazidas em 2019);
- Sua aliança não-convencional a grupos e atores contrários ao status quo regional – em outras palavras, atores estatais e não-estatais que desafiam as lideranças do Oriente Médio como elas são hoje, com forte influência da Arábia Saudita, Israel e demais governos apoiados pelo Ocidente.
A Revolução Iraniana de 1979 e as relações do país com os EUA
Agora que já conseguimos criar um panorama do Irã atual, vamos a uma breve história de suas relações com os EUA, que se dividem em 2 partes: antes de 1979 e depois de 1979.
Entre 1925 e 1979, o Irã viveu sob uma monarquia secularizada e ocidentalizada, conhecida como a Dinastia do Xá. Dentre os principais elementos sócio-políticos daquele momento estavam:
- Uma forte aproximação e alinhamento com o Ocidente (em especial, com os EUA), social, cultural e politicamente – e a consequente perda da milenar identidade persa nacional;
- E uma modernização secularizada – um Estado sem fortes características religiosas, apesar da identificação islâmica e xiita da maior parte da população;
- Um período de monarquia e ausência da democracia – chegando ao ápice de um silenciamento da imprensa e intensificação da política secreta (Savak) contra cidadãos que se opusessem ao regime;
- Aumento nas receitas do petróleo, em especial durante a Revolução Branca: de U$555 milhões em 1964, para $20 bilhões em 1976 – com o apoio do Ocidente, o Irã prosperava economicamente, ainda que o sistema democrático estivesse em grave falência.
Mas, em 1979, a conjuntura do país foi mais uma vez radicalmente transformada: A Revolução Islâmica Iraniana foi uma revolução popular dirigida por uma elite religiosa, que visava independência do ocidente e defesa da identidade nacional. Dentre as principais mudanças, estavam:
- Retomada das raízes religiosas e ideológicas. Conforme a Constituição da República Islâmica do Irã, de 1979: a característica definitiva desta revolução, a propósito de outras revoltas do Irã durante este século, é sua natureza ideológica e islâmica;
- Afastamento brusco em relação ao Ocidente, em especial aos EUA. Conforme a Constituição: a política externa da República Islâmica do Irã baseia-se na rejeição de qualquer tipo de dominação, tanto do exercício quanto da submissão a ela; (…) a defesa dos direitos de todos os muçulmanos; desalinhamento em relação aos poderes dominadores; relações pacíficas mútuas com Estados não agressivos. Vale lembrar que aqui, iniciava-se o processo de “vilanização” e “satanização” do Irã por parte de um Ocidente indignado;
- Completa alteração no sistema político do país, agora com maior abertura democrática – finalmente, a voz do povo (eleitorado) seria ouvida e representada;
- A oficialização de um Líder Religioso Supremo, tornando o país uma República Teocrática Islâmica.
Explicada a guinada brusca que afastou os aliados Irã e Estados Unidos, voltemos a 2020.
O fato: a morte do general
Na madrugada do dia 03 de janeiro de 2020, dois carros foram atingidos por um drone estadunidense no aeroporto de Bagdá (Iraque). Dentre os 9 mortos, estava o general iraniano Qasem Soleimani: o principal comandante militar do Irã, segunda figura mais importante do país(na frente do presidente, e atrás apenas do líder supremo Ali Khamenei) e um homem considerado mártir e herói nacional.
Não levou muitas horas para que os Estados Unidos se pronunciassem: o Pentágono logo confirmou que a ordem para matar havia vindo de Donald Trump em discurso no dia seguinte ao ataque.
Eventos que antecederam o acontecimento
Como explicamos acima, as tensões entre EUA e Irã não vem de hoje. E, como você pode conferir neste outro post, o escalonamento mais atual do conflito pode ser traçado especialmente a 2018, quando os EUA se retiraram do Acordo Nuclear internacional com o Irã e lhe impuseram uma série de sanções que derrubou fortemente sua economia – vale ressaltar que esse evento também é circundado por uma série de elementos complexos e multifacetados.
Em 2019, contudo, o Irã se envolveu em uma série de ataques a seus inimigos no Oriente Médio, numa tentativa de retomar sua posição de influência na região. Vale lembrar que os aliados iranianos são, majoritariamente, grupos contrários aos governos atuais (como Hezbollah, Hamas, Houthis, Curdos iraquianos, etc.) e que recebem constante apoio financeiro do país há anos.
Finalmente, chegamos aos principais eventos que antecederam o ataque do dia 03/jan:
- 27/12/2019: Ataque a uma base estadunidense no Iraque deixa morto um funcionário terceirizado das forças armadas norte-americanas. Os EUA apontaram o Hezbollah como autor.
- 29/12/2019: Alegando resposta, os EUA proferiram ataques que mataram 24 pessoas em bases de milícias no Iraque e na Síria.
- 31/12/2019: Milicianos iraquianos da mesma “aliança” invadiram a embaixada estadunidense em Bagdá, durante 24h – não houve mortes.
Desta forma, existem, de fato, 4 atores nesse cenário:
- EUA, representados em especial pelas tomadas de decisão do presidente Donald Trump;
- Irã, representados não apenas pelo presidente Hassan Rohani e o aiatolá Ali Khamenei, em sua promessa por vingança, como também pelo seu grupo de aliados regional;
- Iraque, não apenas por estar ao lado do governo iraniano, como também pelo fato de os ataques estarem acontecendo majoritariamente em seu solo nacional;
- Atores estatais e não-estatais que fazem parte da aliança liderada pelo Irã, como o Hezbollah e o Hamas.
Contudo, há outros elementos comumente ignorados:
1. Aumento das ações financeiras internacionais da indústria armamentista nos últimos dias:
É um fato que guerras são terríveis: incontáveis mortes de civis e militares, destruição e caos, tudo em nome de justificativas geopolíticas – muitas vezes vindas de governistas que sequer compreendem o quadro completo. Ainda assim, há uma série de indústrias que lucram (e muito!) com esses cenários: em especial, os fabricantes e exportadores de armas – que compõem um dos maiores grupos do mercado financeiro global.
2. Preço do petróleo atingindo seu maior nível desde abril de 2019:
Com esse cenário de conflitos e incertezas geopolíticas, as principais commodities e produtos produzidos e exportados por aqueles países/grupos envolvidos também sofrem. Como Irã e Iraque são responsáveis por cerca de 25% das reservas mundiais de petróleo, enquanto sua atenção está dirigida à contenda, o setor petrolífero perde foco e fica defasado. E se há menos oferta de um produto no mercado internacional (com a mesma quantidade de consumidores), seu preço tende a subir.
3. O desvio inegável de atenção do impeachment de Trump:
Há ainda quem afirme que todo esse contexto não passa de um pretexto de Donald Trump para desviar o foco de seu processo de impeachment – em especial, com a aproximação das próximas eleições presidenciais. O que justificaria esse argumento é o fato curioso de que Trump havia usado como uma de suas principais promessas de campanha a retirada das tropas estadunidenses do Oriente Médio… Convenhamos que travar uma possível guerra com um grande ator na região não é exatamente a melhor forma de se manter suas forças armadas longe, né?
As consequências decorridas até o momento
- 04/01: Foguetes atingiram três locais no Iraque, incluindo uma base com forças estadunidenses, mas sem causar mortes. Não houve confirmação dos responsáveis pelo ato;
- 05/01: O governo iraniano anunciou que pretende oficialmente descumprir o acordo nuclear de 2015, enriquecendo mais urânio do que havia sido acordado;
- 05/01: Parlamento Iraquiano aprova resolução para expulsar tropas estadunidenses de seu território – uma vez que são aliados iranianos e seguem em contexto de guerra com os EUA há quase duas décadas;
- 07/01: O Irã, conforme prometido após o ataque, retaliou a morte de Soleimani, em um ataque com mísseis a bases americanas no Iraque – que segue sendo palco do conflito –, sem mortos nem feridos.
Até o presente momento, tanto Irã quanto EUA já afirmaram oficialmente que não querem guerra, apenas se defender de ataques inimigos:
Segundo o site de notícias Exame
O ministro iraniano das Relações Exteriores, Mohamad Javad Zarif, declarou que seu país “adotou e concluiu” medidas de represálias “proporcionais” diante do assassinato do general Soleimani, mas destacou que seu país “não busca a guerra” com os Estados Unidos.
E, de acordo com esta reportagem do site Sputnik
O presidente dos EUA, Donald Trump, não quer uma guerra com o Irã e espera uma solução diplomática para o conflito, mas Washington retaliará se os cidadãos dos EUA forem mortos como resultado das ações de Teerã, disse nesta quarta-feira [08/01] um diplomata estadunidense.
Compreende-se, portanto, que após ataques vindos de ambas partes, algumas dezenas de mortes e violações diplomáticas nos mais diversos níveis, o próximo ator a atacar a partir de agora, o fará muito mais por ego do que por “autodefesa”.
A “Terceira Guerra Mundial” e a participação brasileira no conflito
Apesar dos rumores sobre uma “Terceira Guerra Mundial”, é pouquíssimo provável que o conflito venha a compreender mais atores do que aqueles envolvidos até agora. Em verdade, diversos líderes políticos pelo mundo já fizeram apelos para que a solução seja resolvida de forma pacífica.
Até o presente momento, apenas dois países expressaram oficialmente seu apoio ao conflito e aos EUA: Israel – aliado imaculado de Trump no Oriente Médio; e Brasil – com o presidente Jair Bolsonaro tendo inclusive transmitido um vídeo ao filme dele mesmo assistindo ao discurso ao vivo do presidente Trump, em 08/01.
Após nota oficial do Itamaraty (03/01), declarando o apoio brasileiro aos EUA, o governo iraniano – que até o governo Lula havia fortalecido vínculos comerciais e diplomáticos entre os países – exigiu respostas e explicações pela “traição”. O silêncio brasileiro até agora aparenta apenas indicar o desconforto da complexa situação em que nos colocamos.
Bom, e agora?
Em discurso no dia 08/01, o presidente Donald Trump afirmou que “O Irã parece estar recuando e ninguém ficou ferido em ataques” e prometeu novas sanções econômicas durante fala sobre o ataque a duas bases militares americanas no Iraque.
Vale destacar a análise feita pelo prof. Tanguy Baghdadi, na edição de 07/01/20 do podcast Petit Journal, na qual compreende que os estadunidenses parecem agora ter duas alternativas:
A primeira delas seria ignorar o pedido do Parlamento iraquiano e se manter no país a partir de agora como uma potência ocupante, com todas as consequências que isso traz para a sua legitimidade e para a segurança de suas tropas. Essa alternativa levaria necessariamente os EUA a aumentar o seu engajamento militar no Oriente Médio, enviando mais soldados, lidando com mais baixas militares e gastando muito dinheiro com uma guerra que já é absolutamente impopular há alguns anos.
E a segunda alternativa, seria cumprir o sonho dourado de Donald Trump, a promessa de campanha de Donald Trump e aceitar aquilo que pediu o parlamento iraquiano e se retirar do Iraque. Isso significaria, no entanto, entregar o Iraque e, por que não, o Oriente Médio, de ‘bandeja’ para o Irã; o que traria enormes consequências, não apenas para uma estratégia mais global dos EUA, com uma demonstração de fraqueza, e como aceitando uma derrota para um de seus maiores inimigos no mundo (Irã), e trazendo ainda consequências graves para enormes aliados norte-americanos na política mundial, como Israel e Arábia Saudita, que teriam que lidar regionalmente com um Irã ainda mais fortalecido.”
Em relação ao futuro das relações Brasil-EUA e Brasil-Irã, mais uma vez o presidente Bolsonaro vocaliza sua estratégia oposta às décadas de governistas mais diplomáticos que tivemos no Brasil, assim como à nossa bem-estruturada “política de boa vizinhança”: reforçar o Estado brasileiro como forte aliado estadunidense e opor-se àqueles que se opuserem ao governo Trump.
Sugestões de mais material para aprofundamento
Podcasts em português:
- Petit Journal – episódio A geopolítica da crise (07/jan);
- Café da Manhã – episódio O ataque dos EUA que matou um general do Irã (06/jan);
- Petit Journal – episódio O xadrez iraniano (05/jul/2019).
Podcasts em inglês:
- The Intelligence (The Economist) – episódio The general and specific threats: Iran (06/jan);
- The Intelligence (The Economist) – episódio Hawks, stocks and peril: Iran-America brinkmanship (20/jun/2019).
Conseguiu entender a tensão entre Irã e Estados Unidos que todo mundo está comentando? E qual a sua opinião sobre o posicionamento do Brasil nessa situação? Compartilha com a gente nos comentários.
REFERÊNCIAS
AXWORTHY, Michael. Revolutionary Iran: A History of the Islamic Republic. Londres: Oxford University Press, 2016.
CHEREM, Helena. A GUERRA-FRIA DO ORIENTE MÉDIO: Irã e Arábia Saudita na balança de poder regional no Oriente Médio após a Primavera Árabe. 2019. 103 f. TCC (Graduação) – Curso de Relações Internacionais, Departamento de Economia e Relações Internacionais, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019
SANTO, Murillo; BALDASSO, Tiago. A Revolução Iraniana: Rupturas e Continuidades na Política Externa do Irã. Porto Alegre: Revista Perspectiva: Edição Revoluções, v. 10, n. 18, pp.70-85, mar/2017. Disponível em: . Acesso em: 25 mar/2019.
VISENTINI, Paulo G. O Grande Oriente Médio: da Descolonização à Primavera Árabe. Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2a tiragem, 2014