Você sabe o que é a justiça de transição? Pouco se debate sobre isso, mas, historicamente, inúmeros países passaram por processos de transição de regimes não-democráticos para regimes democráticos.
Ao longo do século XX, diversos modelos políticos considerados totalitários, autoritários ou pós-totalitários empreenderam mudanças de “libertação política”.
Tais transformações buscavam produzir Estados de direito pautados em propósitos reconhecidos pelo sistema internacional. A exemplo da democracia e dos direitos humanos.
Entretanto, para além disso, o que abrange esse tipo específico de justiça? Como o Brasil se coloca diante de tal entendimento? Fique por dentro do assunto aqui com a Politize!. Vamos lá?
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Entendendo o conceito: Justiça transição
De acordo com Marcelo Torelly, denominou-se de “Justiça de Transição” o conjunto de ações e dispositivos que surgem para enfrentar momentos de conflitos internos, violações sistemáticas de direitos humanos e violência massiva contra grupos sociais ou indivíduos.
Isso, no intuito de garantir que suas mudanças de regime político sejam bem sucedidas. Tudo conforme o viés do Estado democrático de direito.
Isto é: a forma como suas sociedades lidam com os casos de abusos e traumas sociais. Como apontado na formação de comissões da verdade, e programas de reparação às vítimas, como formas preventivas às violações.
Objetivos que norteiam a justiça de transição:
- Julgar os infratores de direitos humanos;
- Estabelecer a verdade;
- Reconhecer e dar visibilidade à memória, como construção histórica;
- Oferecer reparações às vítimas;
- Reformar as instituições que participaram das violações cometidas.
A História da transição de regimes
A América Latina foi e ainda é marcada por conflitos políticos e sociais entre setores conservadores e progressistas.
Um desdobramento claro disso se apresenta a partir da década de 1920, com a formação dos “partidos comunistas” pelo continente. Estes, procurando associar setores nacionalistas e reformistas, lutavam pela independência econômica dos seus países.
A Guerra Fria, que já dividia o mundo desde o final dos anos 40, também marca esse momento. O sucesso da Revolução Cubana, em 1959, data isso. Essencialmente pelo seu papel de tomada de poder e alinhamento ao comunismo soviético, que ameaçava a atuação dos Estado Unidos na região.
Assim, a diferença ideológica entre as superpotências resultou na criação de mecanismos de combate à expansão de influências externas. Tal como pauta a produção das doutrinas de “segurança nacional”.
Este mecanismo, por sua vez, orientou ações contra o comunismo e movimentos considerados de esquerda em todo o continente americano. Além de tentativas de justificação de golpes de Estado nos países financiados pelos Estados Unidos.
O Paraguai (1954), Brasil (1964), Chile e Uruguai (1973), e a Argentina (1976), por exemplo, tornaram-se regimes autoritários em função dessas doutrinas de segurança.
Fases da transição
Levando o aparato histórico exposto acima em consideração, apontemos as fases do processo de transição.
A sua primeira fase se estende aproximadamente de 1945 à década de 1970. Muito envolta no caráter punitivo aos transgressores da Segunda Guerra Mundial.
O que torna importante lembrar como as medidas promulgadas por órgãos de direitos humanos, como a Organização dos estados Americanos e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, foram fundamentais para o seu desenvolvimento.
Estas, a título de exemplo, possibilitaram fortemente que novas fases, marcadas pelos ideais de não repetição e concretização dos direitos fundamentais, pudessem ser instaladas.
Tal ponto, segundo o professor Bickford, faz com que o campo vá além do que se pensava sobre o alcance de eleições justas em sistemas democráticos.
Assim, uma segunda fase é criada. Aparecendo como um reflexo da Guerra Fria e apreendendo que o conceito de justiça seria imperfeito e parcial, ela se remete à promoção da legitimidade sobre os princípios das políticas públicas.
Tudo isso com o objetivo de implementar um conjunto de valores que antes dificilmente coincidiriam em um Estado de direito. E como, então, evoluímos para a atual fase dessa ideia?
A justiça de transição moderna, como um desdobramento da segunda fase, conecta-se diretamente às propostas de não repetição de violações aos direitos humanos.
Dessa forma, ela é capaz de eleger tal via como um método eficaz para a resolução de casos em contextos de regimes autoritários. Assim como para a formulação de marcos sociais significativos contra essas medidas.
Justiça de Transição no Brasil: a ditadura militar e os movimentos civis
Inserida no cenário da Guerra Fria, a ascensão e manutenção militar no poder estatal brasileiro se apoiou ideologicamente na doutrina nacionalista de segurança, que tinha por objetivo impedir o “avanço comunista” no país.
Desse modo, a ditadura militar (1964-1985) é apontada por alguns analistas enquanto um tanto paradoxal.
Por exemplo, o período dos chamados “anos-bala” no Brasil (entre 1968 e 1975) promoveu ao Estado um grande movimento de prosperidade econômica. Sendo denominado, inclusive, de “milagre econômico” durante o governo Médici.
Por outro lado, foi um período de alta repressão política, provocando a incitação de diversos atos violentos. Essencialmente com o decreto do AI-5, que suspendia os direitos e garantias fundamentais dos civis e dava aos governantes maior poder de combate aos seus opositores.
Sem falar que foi também nesse período que vários movimentos de luta armada ascenderam, como a Guerrilha do Araguaia . O que torna importante observar as fases dos regimes militares no país, para entendermos como o processo da justiça de transição se desenrolou.
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Fases da Ditadura Militar no Brasil
A primeira fase aparece nos regimes Castello Branco e Costa e Silva, entre 1964 e 1968, como resultado da instalação dos Atos Institucionais (AI).
O AI- nº 01, que lançou os governos ditatoriais ao poder, derrubou a composição dos governos democráticos. Isto, sob a forma de um “movimento revolucionário” contra o comunismo.
Já o AI- nº 02, dissolveu os partidos políticos presentes, estabelecendo eleições indiretas para o cargo de Presidente da República e Governadores.
Em 1968, iniciaram os “anos de chumbo”, através do AI- nº 05. Ali, o Presidente da República passou a ter poderes para suspender os direitos políticos de qualquer cidadão durante o período de 10 anos. Para além de cassar mandatos nos níveis federal, estadual e municipal.
Além disso, as garantias constitucionais e o habeas corpus, foram suspensos. Retirando, dessa maneifa, os meios de defesa legais dos perseguidos políticos e excluindo a apreciação judicial de todos os atos alcançados por ele.
A segunda fase, representada pelo governo Médici (1969 – 1974), também institucionalizou violações sistemáticas aos direitos humanos. Pautadas, principalmente, por uma política de Estado voltada à eliminação dos seus opositores.
Assim, tais prerrogativas, como casos de tortura, homicídio e desaparecimento forçado, tornaram-se comuns aos agentes estatais.
A terceira, vista no mandato de Geisel (1974 -1979), já se apresentou com inúmeros debates sobre a intervenção militar e o retorno à democracia no país.
Foi iniciada com a liberalização “controlada” do regime. Essa, segundo o presidente, deveria se firmar num processo “lento, gradual e de transição segura” para o alcance da democracia. Indicando uma possível abertura para a instalação da justiça de transição.
Dessa forma, o AI-5 foi abolido, o Habeas Corpus restabelecido, e as penas da Lei de Segurança Nacional tornaram-se mais brandas.
Uma conquista extremamente importante nesse âmbito foi a aprovação da Lei da Anistia, em 1979. Ação que permitiu o retorno de muitos exilados políticos ao país, bem como anistiou a maioria dos perseguidos por motivação política.
Isso, embora somente com a Emenda Constitucional de 1985 tenha sido possível torná-la bilateral (atingindo agentes estatais e opositores políticos). Assim desconsiderando conceitos de crime político, conexão criminosa e crime contra a humanidade.
O que marca a quarta fase: o mandato de Figueiredo, entre 1979 e 1985.
A quinta e última fase, por sua vez, nos mostra a transição do regime militar para o regime liberal democrático. Como também o surgimento do campo da Justiça de Transição.
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Primeiros passos da Justiça de transição brasileira
O marco inicial da Justiça de Transição brasileira, então, foi a Lei de Anistia.
Apesar de “lenta, gradual e segura” para o regime militar, e de ter implementado uma “anistia de esquecimento” – sem reconhecer os abusos cometidos -, ela representou a abertura para as discussões sobre os ocorridos ditatoriais.
Como a lei não possibilitava a punição contra crimes de lesa-humanidade ligados à ditadura, os primeiros trabalhos de transição no Brasil começaram no âmbito da verdade e da memória e, posteriormente, da reparação, com a justiça de trasnsição.
A exemplo do visto na Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995) e na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2002). Já quanto à punição dos agentes estatais, alguns pontos se destacam.
Tendo em vista a jurisprudência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre a impossibilidade do Estado anistiar seus agentes, a Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou uma ação federal, questionando a interpretação tradicional de que a Anistia os atingiria.
Entretanto, a maioria dos membros da Corte brasileira decidiu, em 2010, manter essa interpretação tradicional. Assim reafirmando que nenhuma punição poderia ser aplicada aos agentes do Estado e seus adversários. Alegando que a Anistia no Brasil teria sido bilateral e advinda de consulta pública, em prol da garantia dos direitos humanos.
Porém, este ponto viria a ser debatido novamente em novembro daquele mesmo ano. Naquele momento, por exemplo, a CIDH julgou o Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (ou “Guerrilha do Araguaia”) pela prisão arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas. Sendo seu posicionamento contrário ao Supremo Tribunal Federal.
O que nos traz a necessidade de observar a discussão e sua concretude com mais atenção. No entanto, como esse tipo de proposta poderia ser revisada, aplicada em prática? Que tal relembrarmos um pouco sobre o accountability?
Accountability
Diante dos movimentos em prol dos direitos humanos – provocados pela justiça de trasnsição – o governo brasileiro se voltou ao accountability como proposta de governança. Desse modo, tentava trazer eficácia e moralidade à sua administração pública.
Isto porque, de acordo com os parâmetros legais do país, a obrigação e responsabilização estatais se ligam ao seu funcionamento enquanto um Estado Democrático de Direito fortalecido. Trazendo assim consigo: instituições comprometidas com o bem-estar social e seu engajamento político.
Desse modo, através dos incentivos de garantia aos direitos humanos, a justiça de transição fortaleceria a formação de um governo e uma administração pública accountable, efetiva. Numa espécie de gestão que se preocupa e vai além dos quesitos políticos, observando quesitos econômicos, culturais, sociais, entre outros.
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Há futuro na discussão sobre a Justiça de Transição?
A conjugação de valores, sejam eles de paz, justiça ou proteção sociais, num contexto de transição, não segue modelos pré-determinados. Mecanismos apresentados institucionalmente no Brasil demonstram isso, tendo suas razões políticas e históricas em jogo.
Entretanto, ainda apontam a necessidade de que tal discussão seja levada adiante. Isso, tendo em mente as dimensões estratégicas que países como o Brasil, o Chile e a Argentina se predispõem ao longo do tempo.
Tendências recentes apresentam tais questões. A exemplo do reconhecimento oficial de suas responsabilidades em períodos ditatoriais, consideração aos interesses das vítimas e construção das ideias de memória e identidade nacionais.
O que demonstra como o fomento dos debates sobre o passado é importante para construir a consciência histórica de um país. Além de fortalecer os regimes democráticos que ali emergem após períodos de violência política.
Assim, pode-se dizer que percepções como o accountability, a justiça e a reconciliação são iniciativas que se entrelaçam na realização da justiça de transição. Tornando-se primordiais na análise do debate e no ensejo de reflexões sobre a proposta.
E aí, entendeu o que é a justiça de transição? Diz aqui embaixo o que mais te chamou atenção e continue acompanhando a Politize! para não perder os próximos debates sobre o assunto!
Referências:
- BICKFORD, Louis. Transitional Justice. In: The Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity. Volume III. Nova Iorque: MacMillan, 2004, pp. 1045-1047.
- Brasil de Fato – Direito à verdade e à memória: Ditadura militar e justiça de transição no Brasil
- Brasil de Fato – Notas sobre o comunismo do Brasil
- Canal Ciências Criminais – Tribunal Penal Internacional e os Crimes de Lesa Humanidade
- CNV – Relatório da Comissão Nacional da Verdade
- GALINDO, Bruno. Transitional Justice in Brazil and the Jurisprudence of the Inter-American Court of Human Rights: a difficult dialogue with the Brazilian judiciary. Sequência, Florianópolis, p. 27-44, 2018.
- Jusbrasil – Ato Institucional 1/64 | Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964
- Jusbrasil – Ato Institucional 2/65 | Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965
- Jusbrasil – Lei de Segurança Nacional – Lei 7170/83 | Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983
- Jusbrasil – O que foi a “Guerrilha do Araguaia”?
- Politize! – A garantia dos direitos humanos no Brasil
- Politize! – AI-5: qual o seu impacto na democracia brasileira?
- Politize! – Estado Democrático de Direito
- Politize! – Intervenção militar no Brasil
- Politize! – Desvendando os segredos por trás do milagre econômico brasileiro
- Politize! – Habeas Corpus
- Politize! – Emenda Constitucional
- Politize! – O que são crimes contra humanidade?
- SOUZA, Emerson Maione de. Justiça de Transição na Teoria das Relações Internacionais: realismo, construtivismo e as possibilidades de um engajamento crítico. Monções: Revista de Relações Internacionais, Dourados, v. 3, n. 6, p. 91-119, jan. 2015.
- TORELLY, Marcelo D. Justiça Transicional e Estado Constitucional de Direito: perspectiva teórico-comparativa e análise do caso brasileiro. 2010. 355 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2010.