Segundo levantamento realizado em 2020 pela Confederação Nacional do Comércio, o número de família endividadas por cartões de crédito ultrapassa o percentual de 66%. Para além disso, o endividamento do brasileiro envolve dívidas com carnês de loja, financiamento de carro, financiamento de imóvel e crédito pessoal, sem mencionar o famoso “cheque especial”.
E quando paramos para observar, não é incomum, em nossos círculos de convivência, existirem conhecidos e familiares com dívidas que se tornaram impagáveis em função da incidência de multas e juros, gerando por consequência o envio dos dados do consumidor aos órgãos de proteção de crédito – a famosa “negativação”. Esta situação não é interessante para a Empresa, pois a negativação significa menos um consumidor contratando no mercado de consumo e, para o consumidor significa a redução das opções de crédito disponíveis para a aquisição de produtos e serviços,
Faltava no Brasil, contudo, uma legislação que abordasse sobre a prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores, sobretudo, considerando os efeitos macroeconômicos causados na pandemia da covid-19. Isso mudou com a entrada em vigor, no dia 02/07/2021, da Lei nº 14.181/21, conhecida como Lei do Superendividamento. Ela inclui regras no Código de Defesa do Consumidor (CDC) para prevenção ao superendividamento dos consumidores, a fim de evitar o excesso de dívidas e de criar instrumentos para conter práticas abusivas perpetradas nas ofertas de crédito aos mais vulneráveis na sociedade, como por exemplo os idosos.
Quem pode ser beneficiado pela nova lei?
Pois bem, segundo o parágrafo 1º do artigo 54-A da Lei, as disposições do superendividamento se aplicam às pessoas físicas que contrataram empréstimos de boa-fé e dada as circunstâncias financeiras atuais estão impossibilitadas de manter seu mínimo existencial, caso realize o pagamento de suas dívidas.
Por coerência lógica, a Lei do Superendividamento não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.
Mas o que significa mínimo existencial?
A abrangência do termo mínimo existencial está consagrada na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor e é, talvez, a principal razão para justificar elaboração da Lei do Superendividamento. Isso porque o excesso de dívidas pode comprometer o custeio das necessidades básicas do consumidor, bem como, colocá-lo à margem da sociedade, pois a “negativação” de um nome impede a realização de diversos atos de consumo.
Tem-se por mínimo existencial o conjunto de direitos fundamentais que garante aos indivíduos acesso às necessidades básicas para a sobrevivência de uma pessoa, envolvendo neste conceito os gastos com saúde, moradia, alimentação, transporte, vestuários etc. Ou seja, a lei carrega a sua atenção para o consumidor que manifestamente está impossibilitado de pagar todas as suas dívidas sem comprometer a sua própria sobrevivência.
Assim, o mínimo existencial é o que garante um valor mínimo para subsistência tendo por base o homem médio, logo, a impossibilidade de almoços em restaurantes e viagens internacionais, por exemplo, não se enquadram no conceito de mínimo existencial e por óbvio não tem a guarida da Lei dos Superendividados.
Em síntese, a ideia fundamental de preservar o acesso ao mínimo existencial é manter um valor mínimo de renda disponível para que a pessoa possa utilizar para os custeios de despesas essenciais, impedindo que o consumidor adquira novas dívidas e não consiga arcar com o pagamento de contas básicas de consumo, como água e luz.
Principais medidas trazidas pela lei nº 14.181/21
A lei dos superendividados altera o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso com significativas mudanças na relação entre credores e devedores.
Uma das principais alterações é a obrigação de bancos, financiadoras e empresas de crédito que vendem a prazo, informar com exatidão ao consumidor, no ato da oferta, o valor total das parcelas, dos juros e demais encargos que incidirão ou que vierem a incidir em caso de inadimplemento. Deverá ainda, a instituição bancária apresentar cópia do contrato a ser celebrado e informar a identidade do funcionário que firmar o contrato (art. 54-B e art. 54-D).
Além disso, é prevista a possibilidade de o consumidor antecipar o pagamento de parcelas, obrigando os credores a renegociar a dívida sem acréscimos de novos encargos (art. 54-B, inciso V).
Ademais, para garantir maior transparência na oferta do crédito, fica expressamente proibido o assédio e qualquer tipo de pressão aos consumidores no oferecimento de crédito, produto ou serviço, bem como condicionar a concessão de crédito a renúncia ou desistência de processos judiciais e dificultar a compreensão dos riscos da contratação. principalmente quando envolver idosos, doentes e consumidores em estado de vulnerabilidade (art. 54-C).
Como exemplo do que costuma acontecer, podemos citar as várias ligações a idosos oferecendo empréstimo consignado, celebração de contratos e acordos desfavoráveis, nos quais o banco omite os reais riscos da contratação de empréstimos.
Também está proibido e, portanto, é nula a cláusula que visar impedir o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento após a quitação dos valores atrasados ou após a celebração de acordo para pagamento.
Não obstante, no período da pandemia por covid-19 o número de fraudes com cartão de crédito aumentou significativamente, mas fundamentado na Lei do Superendividamento, havendo contestação, em até 10 dias antes do vencimento da fatura, de compras feitas com cartão de crédito ou similar, enquanto não houver conclusão da reclamação, nenhuma cobrança poderá ser feita ao consumidor.
A Lei tornou ainda como direito básico do consumidor as práticas de crédito responsável e educação financeira, de modo que o consumidor tenha consciência exata dos prós e contras de contratar um empréstimo, estimulando, portanto, o consumo consciente e sustentável, além de proibir propagandas de empréstimos do tipo “sem consulta ao SPC” ou sem avaliação financeira (art. 4º, inciso XI).
Nesse sentido, a prática do crédito responsável envolve o Poder Público quanto a fiscalização e repreensão de atividades que contrariem o estabelecido na Lei, os credores para que não forneçam crédito de forma irresponsável, sem prévia avaliação capacidade financeira do consumidor efetuar o pagamento e o próprio consumidor que tem o dever ético e legal de manter-se prudente ao contrair novas dívidas, com observância a boa-fé e avaliando a real possibilidade de cumprir sua obrigação de pagamento.
Renegociação das dívidas e plano de pagamento
Considerando que no direito há um incentivo cada vez maior para que a resolução de uma situação problema seja feita por acordo entre as partes litigantes, a Lei do Superenvididamento prevê a renegociação das dívidas com todos os credores ao mesmo tempo por meio de audiências conciliatórias.
A ideia aplicada aqui é a mesma que já vigora para empresas quando pedem falência ou recuperação judicial. Não há perdão da dívida, o que existe é a possibilidade de um plano de pagamento objetivando a quitação delas, mas mantendo o mínimo existencial a fim de resgatar a dignidade do consumidor. Ou seja, as parcelas serão renegociadas, para que o consumidor possa arcar com o pagamento, sem custear as suas necessidades básicas.
Na prática, o juiz a pedido do consumidor, instaurará processo de “Repactuação de Dívidas” para revisão e integração dos contratos e o próprio consumidor apresentará um plano de pagamento de 5 anos, os credores serão citados para apresentarem documentos e se manifestarem sobre a renegociação da dívida, observando o processo conciliatório (art. 104-A).
Se os credores não comparecerem a audiência e não apresentarem justificativa para ausência, haverá suspensão da exigibilidade do débito (ou seja, as empresas não poderão cobrar aquela dívida temporariamente, devendo cancelar eventuais anotações de restrição de crédito), a interrupção dos encargos de mora (juros) e a as empresas terão sujeição compulsória, isto é, estarão obrigados a aceitar o plano de pagamento da dívida apresentado pelo consumidor (§ 2º do art. 104-A).
Essa medida compulsória (obrigatória) se justifica, porque no Direito temos um desdobramento do princípio da boa-fé objetiva, por meio do qual o credor tem o dever de cooperar em busca de uma solução, a fim de mitigar o prejuízo do devedor e o seu próprio prejuízo (afinal, de que vale um crédito, se o devedor não pode pagar?!). Ou seja, veda-se o comportamento que estimule o aumento da dívida (no direito norte americano tal medida é chamada de duty to mitigate the loss). E infelizmente, isso é visto com frequência, chegando ao ponto em que o valor da dívida torna-se insustentável e impagável pelo consumidor.
Todavia, cabe salientar que o plano de renegociação não significa insolvência civil, ou seja, não será declarado que o consumidor deve mais do que o patrimônio que possui, assim permanece com seu poder e capacidade de compra. Vale destacar ainda, que o plano de renegociação só poderá ser solicitado novamente após 2 (dois) anos da liquidação dos débitos repactuados no plano anterior (§ 5º do art. 104-A).
Importa ressaltar ainda, que dentro dos ditames trazidos pela Lei, não podem fazer parte da renegociação das dívidas com garantia real (dívidas que foram garantidas com um bem), como financiamento de veículo, imobiliários e os contratos de crédito rural, por serem bens que não são necessariamente exigíveis para manutenção de um mínimo existencial, uma vez que não é preciso ter casa própria ou carro para se manter dignamente.
Referências
[1] Pandemia aumenta número de inadimplentes no Brasil: veja qual conta priorizar. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/05/26/nao-vai-conseguir-pagar-todas-as-contas-veja-multas-e-cortes-no-fornecimento. Acesso em: 23/07/2021
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF). Texto Constitucional promulgado em 05 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10/07/2021.
BRASIL, LEI Nº 8.078, DE 11 DE SETEMBRO DE 1990 (CDC). Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>. Acesso em: 10/07/2021.
BRASIL, Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.181-de-1-de-julho-de-2021-329476499>. Acesso em: 10/07/2021.
BRASIL, Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741compilado.htm>. Acesso em: 10/07/2021.
GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Comentários à “Lei do Superendividamento” (Lei nº 14.181, de 01 de julho de 2021) e o Princípio do Crédito Responsável: uma primeira análise. JusBrasil, 2017. Disponível em <https://direitocivilbrasileiro.jusbrasil.com.br/artigos/1240597511/comentarios-a-lei-do-superendividamento-lei-n-14181-de-01-de-julho-de-2021-e-o-principio-do-credito-responsavel-uma-primeira-analise>. Acesso em: 10/07/2021