O dia 06 de fevereiro foi intitulado pela Organização das Nações Unidas como o Dia de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, destacando um fato que ainda não possui a visibilidade necessária para ser abolido: até 2030, 68 milhões de mulheres e meninas poderão ter suas genitálias mutiladas.
A mutilação da genitália feminina é um ritual de passagem da infância à vida adulta praticado em 28 países africanos e em grupos na Ásia e no Oriente Médio. Devido à migração, a prática também é encontrada em países como Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia e Austrália, mesmo com restrições legais. Ao violar o direito humano de integridade física e emocional, o rito expõe meninas e mulheres a situações traumáticas ainda na infância, submetendo-as a uma série de complicações que vão desde o risco à saúde até o abandono escolar. Vem saber um pouco mais sobre!
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Para começar: a mutilação, seus tipos e ocorrências
A mutilação genital feminina (MGF) consiste na remoção de parte ou da totalidade dos órgãos sexuais externos do corpo da mulher. Em metade dos países em que é praticada, as meninas são mutiladas antes dos 5 anos de idade e, nos demais, ocorre entre os 5 e os 14 anos, sendo feita, em quase todos, por praticantes tradicionais – moradores que veem na prática uma “obrigação moral com seus antepassados”. Dessa forma, sem o amparo médico necessário, a mutilação acontece sem anestesia, medicação ou higiene – o mesmo objeto cortante é utilizado em várias garotas.
Os três principais tipos de mutilação genital feminina são clitoridectomia, excisão e infibulação.
- Clitoridectomia: remoção de parte ou de todo o clitóris;
- Excisão: remoção de parte ou de todo o clitóris e dos pequenos lábios;
- Infibulação: costura da vulva, deixando um pequeno espaço somente para a passagem da urina e da menstruação.
Segundo a professora de Stanford Anne Furth Murray, 90% dos casos são dos dois primeiros tipos e os 10% restantes são de mulheres que passam pela forma mais agressiva da MGF: a infibulação. Ainda, em países como Djibouti, Somália e Sudão, mais de 65% de todos os casos consiste na costura da vulva feminina, certificando-se de que as mulheres permanecerão virgens até o casamento, após o qual a costura é rasgada para permitir as relações sexuais.
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A prática de mutilação genital é prevalente em 28 países africanos e em alguns grupos na Ásia e no Oriente Médio – segundo relatório publicado pelo Unicef em 2013, mais de 27 milhões de meninas e mulheres foram mutiladas somente no Egito, além de 23.8 milhões na Etiópia e 19.9 milhões na Nigéria. A migração acaba fazendo com que a prática seja observada em países como Canadá, Nova Zelândia, Austrália e Estados Unidos – neste, em 2012, segundo o CDC (Centro para o Controle e Prevenção de Doenças), aproximadamente 513 mil mulheres haviam passado pela mutilação ou corriam o risco de ainda passar.
UNICEF, 2013. Child protection from violence, exploitation and abuse.
O relatório Child protection from violence, exploitation and abuse, do Unicef, mostra que o reconhecimento da invasão à integridade do corpo humano está em crescimento, retratado na adesão dos países a legislações que condenam o ato. Nos Estados Unidos, 27 dos 50 estados têm leis que condenam. A prática também é ilegal em pelo menos 17 dos 28 países africanos em que ocorre – no Sudão, por exemplo, em que 9 em cada 10 mulheres eram mutiladas, a prática se tornou ilegal em maio de 2020.
Mesmo ainda não sendo condenada em todos os países, o relatório do Unicef mostra que a maioria das meninas e mulheres que passaram ou podem passar pela prática não querem que ela continue, variando de 83 a 93% em países como Gana, Burkina Faso, Nigéria, Iraque e Quênia. Entretanto, como a MGF é tomada como uma prática já enraizada nestas sociedades, as mulheres são pressionadas a se submeterem a ela, correndo o risco de serem excluídas e até mesmo de não se casarem pois passam a ser consideradas sujas e impuras.
Tradição, controle sexual e pressão social
Segundo Anika Rahman e Nahid Toubia, a persistência da mutilação genital feminina pode ser identificada por três motivações principais: costume, sexualidade e pressão social.
- Costume: a prática é um ritual de passagem da infância à vida adulta, o que a torna, para os mais velhos, como parte dos valores tradicionais da sociedade;
- Sexualidade da mulher: em muitas comunidades, é sinal de honra para a família as meninas permanecerem virgens até o casamento. Dessa forma, a mutilação é tomada como uma forma de controlar a vida sexual das mulheres – manterem-nas virgens (nos casos do Egito, Sudão e Somália) ou inibir o prazer sexual feminino após o casamento para que, assim, o homem possa manter relações com outras mulheres (em países como Quênia e Uganda);
- Pressão social: como é uma prática tradicional, realizada na maior parte das mulheres das comunidades, a MGF é tida como uma obrigação social para que as meninas possam, então, ser reconhecidas como mulheres adultas e integrantes do grupo.
Além dos três fatores, a OMS acrescenta o fator da higiene e estética, visto que a parte externa da genitália da mulher é vista como suja e não agradável.
As consequências vão além da esfera da saúde…
As meninas, ao passarem pelo ritual, entendem que atingiram a idade adulta e que, portanto, estão prontas para outras atividades – que não incluem a ida à escola.
O respeito e admiração que as jovens meninas ganham nas comunidades as estimula ao casamento ainda na infância, o que torna o abandono escolar uma realidade que perpetua a desigualdade educacional e econômica entre homens e mulheres. Dessa forma, em baixas perspectivas econômicas, o ciclo de submissão ao marido é retroalimentado, fazendo com que as crianças e adolescentes vivam situações não condizentes com a idade que possuem – casamentos prematuros, relações sexuais precoces e o rasgo da costura em suas genitálias.
Segundo o Unicef, o casamento infantil, intimamente relacionado com a MGF, já obrigou mais de 700 milhões de mulheres a casarem ainda crianças e, destas, 250 milhões se casaram antes dos 15 anos. Ainda, as meninas possuem maior chance de vivenciar violência doméstica e de terem filhos na juventude, sem as condições físicas e psicológicas que esta responsabilidade exige, frequentemente apresentando complicações durante a gravidez que comprometem a saúde da mãe e do filho.
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Como apresentado pela Organização das Nações Unidas, a mutilação genital feminina não apresenta nenhum benefício para a saúde. Aliás, em vez disso, apresenta graves consequências, sendo, a primeira de todas, o trauma: a prática não inclui anestesia, medicamentos, profissionais da área médica e nem a higiene necessária para evitar a transmissão de doenças. Dessa forma, assim como explicado por Murray, de imediato há dor, choque, retenção de urina e possíveis hemorragia e infecção, além de lesões e úlceras na região mutilada – a infecção e hemorragia podem, inclusive, levar as crianças à morte.
Soma-se, também, as complicações que a MGF traz às meninas quando engravidam – fora as já relacionadas à gravidez precoce -, aumentando em 50% o risco de morte materna e infantil. Segundo a OMS, além da maior incidência de hemorragia pós-parto nas mães, a taxa de mortalidade dos filhos durante a gestação e logo após o nascimento é 15% maior para mães de mutilação tipo I, 32% para mães de tipo II e 55% para mães que passaram pelo tipo III da prática.
Uma violação aos direitos humanos
A perigosa prática, sem nenhum benefício à saúde apresentado e com graves consequências para meninas, mulheres e seus filhos, é reconhecida por tratados internacionais, regionais e documentos consensuais como uma violação aos direitos inerentes à vida. Os tratados reconhecem que as mulheres, assim como qualquer ser humano, devem possuir respeito, integridade física e mental, educação, acesso à saúde e participação ativa na sociedade – todos violados pela mutilação genital feminina. Dentre eles, há a Declaração de Beijing, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de violência contra a Mulher.
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“Direitos das mulheres são direitos humanos”, segundo a Declaração de Beijing, demonstrando o reconhecimento de que garantir os direitos básicos à vida e ao desenvolvimento das mulheres não é uma excepcionalidade, e sim a aplicação do que é negligenciado pelo simples fator do gênero. Da mesma forma que os homens, as mulheres não devem ser submetidas a situações que colocam suas vidas em risco.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece a necessidade de todos as pessoas serem livres e iguais em dignidade e direitos, além de frisar, em seu artigo V, que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.
A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de violência contra a Mulher declara que “a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade”.
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Conclusão
A Organização Mundial da Saúde reconhece a gravidade que a mutilação genital feminina traz à vida das meninas, mulheres adultas e seus filhos, tanto no âmbito da saúde quanto na esfera social. Ao perpetuar um ciclo de subdesenvolvimento feminino e subordinação, vinculado aos valores tradicionais, a OMS destaca a necessidade de que se desenvolvam projetos multissetoriais, permanentes e que contenham a presença de líderes das comunidades para combatê-la.
Assim, agindo de forma local e global, unindo perspectivas de justiça, saúde, educacional e econômica, com a constância necessária e a influência de lideranças locais, a mutilação genital feminina poderá ser vista, nas comunidades, como uma violência à vida digna das mulheres, já que “direitos das mulheres são direitos humanos” (Declaração de Beijing).
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REFERÊNCIAS
Child protection from violence, exploitation and abuse. Unicef
Anne Firth Murray: From outrage to courage: The unjust and unhealthy situation of women in poorer countries and what they are doing about it. Common Courage Press, 2013.
Anika Rahman e Nahid Toubia. Female genital mutilation: A practical guide to worldwide laws & policies. Zed Books, 2000.
WORLD HEALTH ORGANIZATION et al. Eliminating female genital mutilation: an interagency statement-OHCHR, UNAIDS, UNDP, UNECA, UNESCO, UNFPA, UNHCR, UNICEF, UNIFEM, WHO. World Health Organization, 2008.
1 comentário em “Mutilação genital feminina e a violação dos direitos das mulheres: entenda!”
Más não entendi, oque de fato é eficaz, a OMS está fazendo para impedir estas mutilações, de meninos e meninas