Com o avanço das tecnologias de comunicação e a consequente chance de perpetuidade dos dados e notícias divulgados, uma discussão tem retornado aos maiores tribunais do país: o direito ao esquecimento. Esse direito trata da possibilidade de que determinados fatos, mesmo que verídicos, ocorridos na vida de um indivíduo não venham a ser de conhecimento público, em razão do período de tempo decorrido, por meio de veículos de comunicação social.
Nesse artigo, vamos aprofundar sobre o direito ao esquecimento no Brasil, sua origem histórica e seu conflito de interesse entre diferentes direitos constitucionais. Abordaremos também a forma como esse direito vem sendo interpretado e aplicado pelas maiores cortes do país e o porquê, de fato, as decisões judiciais sobre o assunto são tão importantes em um mundo tomado pela internet e pela possibilidade de eternização dos fatos referentes às nossas vidas privadas na rede.
Onde surgiu o direito ao esquecimento?
Apesar de configurar uma discussão recente no mundo jurídico brasileiro, o direito ao esquecimento, também conhecido como o “direito de ser deixado em paz” ou o “direito de estar só”, aparece já há décadas nos casos e decisões judiciais de outros países.
Um dos primeiros casos de que se tem notícia ocorreu no ano de 1918, nos Estados Unidos: Melvin versus Reid. Nesse conflito judicial específico, a parte Gabrielle Darley era envolvida com prostituição e havia sido acusada por um homicídio, em seu passado – ocorreu que Gabrielle acabou sendo inocentada de tal crime, tendo mudado sua vida pela ressocialização. A discussão sobre o direito ao esquecimento deu-se no Tribunal da Califórnia, quando Doroty Davenport Reid resolveu produzir um filme, anos após a absolvição, sobre a vida privada e passada de Gabrielle. Gabrielle, então, recorreu à justiça e obteve uma reparação aos danos ocorridos por uma exposição indevida de sua vida privada.
Em outras palavras, no caso de Gabrielle, o Tribunal da Califórnia entendeu que ela tinha o direito de ser esquecida por fatos de sua vida passada que, naquela atualidade, lhe trariam sofrimento e exposição.
Outro caso conhecido pela luta judicial pelo reconhecimento do direito de ser esquecido ocorreu na Alemanha em 1969: o caso “Lebach”. Similar ao que ocorreu com Gabrielle, um dos acusados pelo assassinato dos soldados Lebach tomou conhecimento de que um filme contando a história do caso seria exibido na televisão alemã dias antes de sua saída do sistema prisional. No caso Lebach, o acusado já havia cumprido sua pena e, segundo seus argumentos na ação judicial, tal exibição do filme prejudicaria sua ressocialização e o colocaria em uma exposição abusiva.
O tribunal constitucional alemão acatou o pedido do acusado e proibiu a exibição do filme com os nomes e dados pessoais do autor, alegando que os meios de comunicação não podem ocupar-se dos crimes e dos condenados por tempo ilimitado, recontando suas histórias e empreitadas criminosas eternamente.
O direito ao esquecimento no Brasil
Diferentemente do que ocorreu em outros países, como nos casos mencionados dos Estados Unidos e da Alemanha, a discussão pelo reconhecimento do direito ao esquecimento é mais recente no Brasil. Tal direito ganhou grande notoriedade no país pelo conflito entre direitos constitucionais que acarreta, pela divergência entre os entendimentos de diferentes tribunais e pelos famosos casos que discutiram a possibilidade ou não de ser esquecido.
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É importante salientar que o direito ao esquecimento não possui previsão legal expressa, ou seja, não existe uma lei que verse especificamente sobre ele ou o reconheça, inclusive, por isso seu reconhecimento, ou não, foi muito discutido.
Para os que acreditam na existência e na concretização desse direito pela legislação brasileira, ele estaria assegurado pela própria Constituição Federal de 1988. Os adeptos da corrente que reconhecem o direito de “ser deixado só” argumentam no sentido de que esse direito seria um desdobramento dos direitos constitucionais de respeito à vida privada, à honra e até mesmo à própria dignidade humana, sendo que o desrespeito ao direito ao esquecimento configuraria uma afronta a esses direitos básicos.
Por outro lado, para aqueles que são contrários ao reconhecimento do direito ao esquecimento no Brasil, a existência de tal direito caracterizaria uma agressão à liberdade de imprensa e de expressão em geral, uma perda de história e memória do país e abalaria a lógica constitucional de que quando algum fato privado torna-se de interesse público, o último ultrapassa o direito à intimidade e a vida privada.
Nesse sentido, como os tribunais brasileiros estavam reféns de entendimentos diversos, os quais em um momento reconheciam o direito ao esquecimento como direito legal e constitucional e em outro decidiam pela impossibilidade de sua existência pela colisão com a liberdade de expressão, em 2013, foi redigido e aprovado o Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil do CJF/STJ, o qual possuía a seguinte redação: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.”
Explica-se: um Enunciado, no âmbito jurídico brasileiro, não possui poder de lei. Na verdade, ele serve para divulgar a orientação de determinados juízes sobre um referido tema, objetivando criar diretrizes mais certas e concretas para temas controvertidos. A aplicação dos Enunciados não é obrigatória, comportando-se os mesmos como uma orientação, uma convenção de determinado tribunal – no caso do referido Enunciado, o Superior Tribunal de Justiça.
Desse modo, o Enunciado acabou por consolidar uma vertente de interpretação, pelo menos por alguns anos, do tema nos tribunais brasileiros, tendo reconhecido o direito ao esquecimento como uma decorrência do direito à dignidade humana, previsto na Constituição.
Todavia, como se verá mais adiante, o tema passou por reformas judiciais, recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, as quais acabaram culminando em um entendimento diverso.
Os casos mais famosos
Embora o tema tenha ganhado mais destaque na atualidade devido às novas interpretações judiciais e consolidações advindas dos maiores tribunais do país, os casos mais famosos do Brasil já possuem alguns anos de história.
No quesito da internet como meio de propagação eterna de algumas informações, dados e imagens, uma das mais comentadas decisões diz respeito ao caso da Xuxa Meneghel. A ação judicial foi movida pela apresentadora contra o Google Brasil e tinha como intuito a retirada da plataforma de resultados de pesquisa online baseadas em palavras-chaves que vinculassem sua imagem com a prática da pedofilia.
A decisão do juiz de primeiro grau foi favorável à apresentadora e determinou que o Google não apresentasse mais os resultados que vinculavam Xuxa a prática delitiva referida. No entanto, a decisão foi reformada pelo STJ, o qual argumentou que “os provedores de pesquisa não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico”(STJ, REsp. Nº 1.316.921 – RJ, 2012, p. 1).
Isto posto, percebe-se que a apresentadora buscava o reconhecimento de seu direito a ser esquecida por um fato ocorrido há décadas atrás, no qual atuou em um filme possuindo envolvimento com um adolescente. No caso, a demanda de Xuxa e seu interesse não configuraram, segundo o Superior Tribunal de Justiça, motivação suficiente para barrar o interesse coletivo e o direito ao acesso à informação, não sendo aplicável ao episódio o direito ao esquecimento.
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Outro caso de grande repercussão no país e com resolução diferente do da apresentadora Xuxa diz respeito a Chacina da Candelária – um crime que ocorreu na noite de 23 de julho de 1993, nas proximidades da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, culminando no assassinato de oito jovens. No episódio, um dos acusados respondeu a ação penal e, ao final, foi absolvido. A questão englobou o direito ao esquecimento quando, anos depois do ocorrido, a Rede Globo elaborou um programa televisivo denominado “Linha Direta” e apontou o nome do acusado como um dos envolvidos que havia sido absolvido. Diante da situação, esse indivíduo ajuizou uma ação contra a emissora exigindo uma indenização pela exposição que havia sofrido, argumentando dano a sua intimidade, vida pessoal e anonimato.
O STJ entendeu que, no caso em tela, a exibição do programa poderia ter ocorrido sem os dados e a imagem do indivíduo absolvido, sem que isso acarretasse prejuízo à liberdade de imprensa e de informação. Como a exibição já havia ocorrido, a Rede Globo foi condenada ao pagamento de indenização e o indivíduo teve seu direito ao esquecimento reconhecido – decisão que firmou a tese já mencionada do Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil do CJF/STJ de que o sistema jurídico brasileiro protege o direito ao esquecimento.
A importância desse caso está na ratificação do entendimento, por uma das maiores cortes do país, de que os condenados após cumprirem sua pena ou os absolvidos após o término da ação penal possuem o direito a serem esquecidos, de modo a não permanecerem estigmatizados e a não terem sua ressocialização prejudicada.
Além do caso da Chacina da Candelária, a Rede Globo também respondeu por outro processo de natureza similar: o de Aída Curi. Aída foi vítima de um crime sexual seguido de morte no Rio de Janeiro, em 1958. Assim como na Chacina, a emissora fez a exibição da história do crime que vitimou Aída no programa “Linha Direta”, fazendo com isso a divulgação do nome da vítima e fotos da ocorrência.
Com a exibição do programa, os familiares de Aída ingressaram com uma ação na justiça, buscando uma indenização por danos materiais, morais e à imagem da vítima, alegando que o programa teria relembrado na família todo o sofrimento já vivenciado.
Entretanto, diferentemente do que ocorreu na ação perpetrada pelo absolvido pela Chacina da Candelária, o STJ negou provimento à ação e consequentemente considerou indevida a indenização. O argumento utilizado pela Corte para não reconhecer o direito ao esquecimento no caso de Aída pautou-se pela importância do crime, o qual constitui verdadeiro fato histórico de interesse público, sendo impossível retratá-lo sem a divulgação da imagem da vítima. Além disso, a quantidade de tempo decorrido entre o crime e a exibição do programa – cerca de sessenta anos – foi ponto importante para os Ministros ponderarem por esse entendimento.
O caso de Aída Curi teve decisão proferida no Superior Tribunal de Justiça, como mencionado, mas, por meio de recurso, chegou ao Supremo Tribunal Federal para uma discussão final. O STF negou provimento ao referido recurso, mantendo a decisão do STJ, e firmando um importante entendimento sobre a incompatibilidade do direito ao esquecimento no Brasil com a Constituição Federal.
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Afinal, o que está valendo atualmente no Brasil?
Em que pese a existência de diversas decisões judiciais que reconhecem o direito ao esquecimento no país e de grande parte dos doutrinadores do direito serem a favor de seu reconhecimento como existente, hoje, o que vigora no Brasil, é o recente entendimento do Supremo Tribunal Federal pela inconstitucionalidade do mesmo.
No dia 11 de fevereiro de 2021, o STF encerrou as discussões do referido caso Aída Curi, negando o recurso interposto pelos familiares da vítima e, consequentemente, negando o pedido de indenização realizado por eles. O placar do julgamento do recurso foi amplo e contou com nove ministros votando contra o reconhecimento do direito ao esquecimento na legislação brasileira e apenas um ministro divergindo do voto majoritário pela possibilidade do reconhecimento.
No caso, os ministros entenderam que é incompatível com a Constituição Federal reconhecer como direito fundamental proveniente da mesma um direito que afronta a liberdade de imprensa, o direito à informação da sociedade e o direito à memória coletiva, principalmente, no que tange a fatos históricos. Para a Corte, tal afronta constituiria verdadeira agressão aos princípios democráticos brasileiros.
Contudo, apesar de votarem pela rejeição do recurso interposto pelos familiares de Aída Curi, ou seja, contra o reconhecimento do direito ao esquecimento no caso, os ministros firmaram entendimento com interpretação mais ampla do que a mera negação da existência do referido direito:
“É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social – analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral, e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.
De outro modo: a Suprema Corte firmou um entendimento que permite a análise de cada caso, individualmente, tendo os julgadores o dever de sempre analisar as circunstâncias específicas de cada ação e calcular se os danos ocorridos aos direitos constitucionais individuais da pessoa (honra, vida privada, intimidade) são, ou não, devidamente justificados pelo direito à liberdade de expressão e à informação da sociedade.
O que você achou da decisão mais recente do STF? Acha que o direito ao esquecimento deveria ser reconhecido no Brasil ou não?
REFERÊNCIAS
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13.ed, São Paulo: Saraiva, 2018;
Constituição Federal (BRASIL, 1988);
Artigo: DA SILVA GUEDES, Luiza Helena. Direito ao esquecimento, Âmbito Jurídico, São Paulo, 01 de jun. de 2017;
Constitucional 1: O caso Lebach: o sopesamento
Jusbrasil: O que consiste o direito ao esquecimento?
STF conclui que direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal
O Antagonista: 9 x 1 – Supremo rejeita direito ao esquecimento
Conjur: Google não terá que apagar resultado de buscas para a expressão “Xuxa pedófila”
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