Palavras de origem africana estão sempre presentes na fala cotidiana dos brasileiros, mas passam despercebido. Tenho certeza que você já escutou ou disse algumas das palavras abaixo:
Bunda, cachimbo, caçula, cafuné, capanga, carimbo, dengue, fubá, marimbondo, miçanga, moleque, quilombo, quitanda, senzala…
A influência africana na cultura brasileira, assim como se manifesta na culinária, em algumas religiões do país e de inúmeras outras maneiras, também se manifesta na nossa língua.
Como essas palavras constituem o vocabulário do português brasileiro é o que nós trataremos a seguir. Vem com a gente!
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De volta à história
Você já deve saber que houve um período de regime escravocrata na história brasileira − período longo, de mais de três séculos, cujas consequências ainda vivemos no Brasil de hoje.
Se não sabe do que estou falando, você pode ler aqui na Politize! sobre o racismo, a abolição da escravatura e o trabalho escravo.
De todo modo, como nos lembram as linguistas brasileiras Margarida Petter e Ana Stela Cunha, no livro Introdução à Linguística Africana (p. 221), as pessoas negras vindas à força do continente africano entre os séculos 16 e 19, por meio do tráfico negreiro, não apenas trouxeram sua força de trabalho, como também suas culturas, estando aí incluídas suas línguas.
Essas pessoas escravizadas não vinham de um único lugar, mas de diferentes países e regiões do continente africano, como Angola e Moçambique.
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Se com essa última informação você logo pensou que as milhões de pessoas negras traficadas para o Brasil, por virem de lugares diferentes, falavam línguas diferentes, você acertou.
Aliás, sobre se o mais correto nesse caso é falarmos língua ou dialeto, já te adianto que “do ponto de vista linguístico [ou seja, científico!], não se estabelece nenhuma distinção de valor entre língua e dialeto. É por isso que se pode afirmar que há 2.146 línguas na África” (Introdução à Linguística Africana, p. 15).
Essas pessoas negras que eram traficadas de diferentes lugares da África e enviadas para o Brasil, conseguiam se comunicar entre si normalmente durante a viagem forçada para cá e já estando aqui? − Não era bem assim.
Os negros escravizados vendidos nos portos à beira do mar eram de diferentes etnias, e eram mantidos reunidos como cativos enquanto não partiam para o Brasil e ao longo da viagem marítima, que durava muitos dias. Essa situação se caracterizou:
“por uma concentração forçada e prolongada de falantes de línguas africanas diferentes, mas tipologicamente próximas, o que pôde conduzir, no caso de Angola, à adoção do quimbundo como língua veicular […]; no mesmo período, deu-se um contato igualmente forçado e prolongado com a língua portuguesa” (África no Brasil…, p. 32).
A língua veicular mencionada é “uma língua utilizada para a comunicação entre grupos que não têm a mesma primeira língua [ou língua materna]” (Sociolinguística…, p. 48).
Ela pode ser ou a língua de um dos grupos presentes, ou uma língua criada a partir de diferentes códigos presentes. No caso acima, a língua veicular pela qual os cativos tentavam se comunicar era o quimbundo.
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Línguas em contato: o empréstimo das palavras de origem africana
O contato entre línguas é um dos assuntos preferidos dos linguistas (cientistas que investigam a linguagem), porque é a partir do contato linguístico, por exemplo, que palavras são tomadas de empréstimo de uma língua por outra.
Esse foi o caso das palavras de origem africana listadas no início do texto: elas foram emprestadas e adaptadas pelo português brasileiro das línguas africanas trazidas para cá, como o quimbundo (falado na Angola) e o iorubá (falado na Nigéria).
Nesse sentido, o linguista francês Emílio Bonvini afirma que “trocas de termos entre falantes de línguas africanas e falantes da língua portuguesa multiplicaram-se porque as exigências de trabalho ligadas à escravidão obrigavam uns e outros a uma constante relação de interdependência em função das numerosas facetas da vida cotidiana”.
Além disso, continua o linguista, essa troca de palavras entre línguas acontece por conta da “capacidade corrente e normal de toda língua de apropriar-se dos termos necessários a sua própria expressividade, qualquer que seja sua origem, quando o contexto discursivo novo o exigir” (África no Brasil…, p. 103).
Um outro ponto muito importante sobre o contato de línguas é que dele não decorre apenas o empréstimo de palavras entre línguas diferentes. Mas como assim? − Continue com a gente!
Para além das palavras de origem africana
Entre os linguistas, há um intenso debate sobre a constituição histórica do português brasileiro, havendo no mínimo três grandes hipóteses sustentadas por eles ao longo do tempo.
Sem entrar na questão, o que nos interessa aqui é que, mesmo com a existência de hipóteses divergentes, nenhum linguista nega que houve contribuições de línguas africanas (e de línguas indígenas, como trataremos em outra ocasião) no português brasileiro.
O linguista Marcos Bagno, por exemplo, em um artigo sobre o impacto de algumas línguas africanas na nossa língua, afirma que “para o estudo da formação do português brasileiro, o conhecimento da história da escravidão é fundamental e incontornável. O elemento africano sem dúvida é responsável por muitas das características gramaticais específicas do português brasileiro” (p. 23 de seu artigo).
Veja também nosso vídeo sobre abolição da escravidão!
No mesmo artigo, o linguista recupera de outros estudiosos uma série de características da nossa língua que podem ter sido resultantes da influência de línguas africanas.
Como quando muitos de nós dizemos palavras como dia [dzia] e tia [tchia], em vez de dia [dia] e tia [tia], o que, segundo Marcos Bagno, também ocorre no português de Angola e de São Tomé e Príncipe.
Ou como quando, em variedades rurais e rurbanas (intermediária entre rural e urbana) do português brasileiro, tende-se a eliminar na pronúncia (não na escrita!) as consoantes em final de palavra: fazer [fazê], cantar [cantá], amor [amô] etc.
E aí, percebeu quão interessante podem ser as palavras de origem africana que constituem a nossa língua? Para saber mais, você pode consultar os materiais nas referências abaixo. Ah, e deixe suas impressões nos comentários!
Referências
- Alex Batista Lins. Três hipóteses e alguns caminhos para melhor compreender o processo constitutivo do português brasileiro. Salvador: Editora UFBA, 2009.
- Louis-Jean Calvet. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Editora Parábola, 2002.
- Marcos Bagno. O impacto das línguas bantas na formação do português brasileiro. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 16, 2016.
- Margarida Petter (org.). Introdução à Linguística africana. São Paulo: Editora Contexto, 2015.
- Margarida Petter; José Luiz Fiorin (org.). África no Brasil: a formação da língua portuguesa. São Paulo: Editora Contexto, 2008.
- Rodolfo Ilari; Renato Basso. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Editora Contexto, 2006.