A colonização no Brasil e o processo de legitimação dos povos yanomami

Publicado em:
Compartilhe este conteúdo!

Talvez você nunca tenha escutado sobre os povos yanomami até a tragédia de janeiro de 2023 e as inconcebíveis imagens nos meios de comunicação, de crianças Yanomami, morrendo de fome, em consequência do garimpo ilegal e da falta de assistencialismo governamental.

Para responder a pergunta: por que devemos legitimar os povos Yanomami, temos que entender não só quem eles são, mas o contexto de sua origem, e ainda, dos primórdios da colonização no Brasil.

Entender a tragédia do presente (pois o acontecimento ainda está bem próximo do tempo atual) requer um esforço não apenas reflexivo e afetivo, para com os Yanomami, porém, ainda mais, demanda uma percepção de como o passado demarca o presente.

Veja também: importância dos povos indígenas para a política brasileira

Uma relação passado-presente na construção dos povos indígenas

A colonização no Brasil é fator chave para iniciarmos este exercício. Em 1500, o português Pedro Álvares Cabral “descobriu” o Brasil e com ele, os indígenas que aqui já estavam e chegaram antes. Não só a terra brasilis foi explorada, mas com ela, os próprios indígenas.

a imagem é uma pintura que mostra portugueses descendo de barcos em uma praia. indígenas aparecem por toda extensão da praia.
Pintura “Desembarque de Cabral” de Oscar Pereira da Silva, 1900. Imagem: WikiMedia Commons.

Sabemos que, logo após os indígenas, viriam mão-de-obra trazida do continente africano. E assim, soma-se o saldo da barbárie. Para os portugueses eram apenas negócios, assim como pensam os garimpeiros já abrasileirados de hoje, financiados por grandes empresários.

A organização da colônia-Brasil e sua administração, tem forte similaridade com o tipo de política que fazemos hoje, apesar de os tempos terem mudado. No entanto, a política e o pensamento sobre a Amazônia e sobre os povos originários ainda está longe de mudar completamente.

Veja também o nosso vídeo sobre o “descobrimento do Brasil”!

A imagem apresenta um mapa. nele estão representados vários animais, árvores e indígenas, que estão realizando trabalhos
Mapa símbolico do descobrimento do Brasil. Nota-se o uso do trabalho dos indígenas, no início da colonização. Imagem: SóHistória

1. Quem são os povos Yanomami?

Os povos Yanomami são considerados parte do que se chama “povos originários”. Esse conceito integra a contextualização temporal de que esses grupos fazem parte da História do Brasil, como grupos que fizeram parte da origem do povo brasileiro, e que, claro, fazem parte do início pré-cabralino.

Ou seja, estavam aqui bem antes de qualquer europeu e bem antes da possível e duvidosa “descoberta” do Brasil. Até porque, a esquadra de Cabral, à mando da Coroa Portuguesa, teve a missão de demarcar e explorar um território já conhecido, do que acidentalmente, “descobrir” o Brasil.

No entanto, estes grupos indígenas têm características próprias, tais como etnias, línguas e costumes próprios. Foi por meio dessas diferenças que os europeus conseguiram determinar sua administração colonial e, por meio de miscigenações e da interiorização territorial, conseguiriam chegar a lugares mais distantes, como a Amazônia e Roraima, descobrindo novos povos e etnias, como as dos Yanomami.

a imagem mostra uma foto em preto e branco de pessoa indígena da etnia yanomami
Membro antigo dos Yanomami. Foto de: Ricardo Stucker. Imagem: IELA/UFSC

Os yanomami tem seus primeiros relatos documentados apenas no século XVII, em 1654. Eles localizam-se, principalmente, no extremo norte brasileiro e são marcados por um isolamento geográfico habitual, porém, muito denso. Isso dificultou as remessas de ajuda governamental, após abandono da assistência humanitária para a priorização da exploração de minérios naquela região.

Porém, apesar do extenso período de habitação, os contatos com o homem branco só foram maiores na metade do século XX, de acordo com a ISA (Instituto Socioambiental). Dessa forma, há aldeias mais concentradas nos estados de Roraima e Amazonas. E foi na região de Roraima que se deu a crise humanitária da falta assistencial por comida.

Por serem povos, que na nossa perspectiva, vivem de forma muito simples, quase apenas com os recursos da natureza, não significa que não possuam um nível um pouco mais complexo de organização social, muito menos uma cultura própria.

Leia mais: heranças e manifestações culturais de povos indígenas

Só para se ter uma ideia, em termos de extensão, a Terra indígena Yanomami, que está situada em Roraima, compõe cerca de 9,5 milhões de hectares e é considerada a maior tribo indígena do Brasil.

Não é à toa, o interesse de garimpeiros, madeireiros e agropecuaristas no território, danificando rios ou territórios indígenas, utilizados para sobrevivência da população.

A imagem apresenta um rio devastado pelos efeitos do garimpo ilegal
Consequências do Garimpo Ilegal. Imagem: National Geographic

Além disso, basicamente, sua organização social é coletivista. São considerados “caçadores-coletores”. Além disso, estima-se cerca de 35 mil pessoas, nessas 665 aldeias espalhadas, no Brasil e Venezuela, de acordo com o mais recente relatório da ISA, ainda em 2014, há quase 10 anos.

As atividades são divididas por gênero. As mulheres, principalmente, são as que cultivam a terra, excluindo-as da atividade de caça e matança de animais.

A missão de preservar a floresta e de a ter como meio de subsistência, ultrapassa nossos limites de entendimento ocidental, uma vez que os Yanomami trata esta missão, não só a nível organizacional da sociedade onde vivem, mas a nível cultural e espiritual.

A imagem mostra várias mulheres sentadas em circulo, no chão, descascando frutas
Mulheres da aldeia Demini em coleta de frutos. Imagem: Site “Aliança para Alimentação Adequada”. Foto: Kristian Bengtson, 2003

Os yanomami chamam a terra-floresta de Uhiri. Para eles, a terra-floresta é considerada uma entidade viva, inserida em uma troca cosmológica entre humanos e não-humanos.

O mais conhecido e recente líder e xamã, Davi Kopenawa Yanomami, declara que, como filhos de Omama (o Criador) eles tem o dever de preservar aquilo que foi deixado, sendo dever de cada geração, fazê-lo.

A imagem é uma foto área que mostra vários indígenas agrupados de modo a formar a seguinte frase: "FORA GARIMPO"
Indígenas do povo Watoriki, reunidos em protesto contra garimpo ilegal. Fonte: Conexão Planeta. Imagem: Victor Moryiama, 2019.

2. Pérpetua colonialidade à brasileira

Obviamente que a colonização não foi uma situação que ocorreu apenas no Brasil. Nos Estados Unidos e em parte da América Central e Andina, temos resultados de uma total dizimação ou massacre de 90% dos indígenas, ao longo da história dessas regiões.

O Brasil é até considerado um dos países em que houve até mais tolerência aos povos originários, não por decisão da Coroa Portuguesa, ou dos colonizadores, mas pela ação da Igreja Católica e das missões jesuíticas, que decidiram, na metade do século XVI, extinguir a prática da escravidão indígena no Brasil.

No entanto, sempre que havia um impasse ou dificuldade, no que se refere às terras e a expansão territorial dos portugueses, os indígenas acabavam perdendo seu espaço. É o que vemos na interiorização destes povos, já que a maioria das tribos vivem longe de regiões litorâneas ou longe das cidades, atualmente.

Além disso, a Igreja Católica acabaria autorizando a escravidão de negros africanos. Contudo, isso não foi algo apenas delegado à Igreja Católica, já que em países anglo-saxônicos, como na Inglaterra, predominantemente protestante, essa medida também iria ser “normalizada”.

Porém, o que devemos entender é que todos os aspectos aqui mencionados, fazem com que essa colonialidade à brasileira, seja contínua. É quase perpétua. Essa conclusão parece óbvia, porém, não é aceita por uma parte da nossa elite intelectual e por alguns dos governantes atuais.

Se essa conclusão fosse aceita, apesar de óbvia, não veríamos o avanço do garimpo ilegal em terras indígenas, muito menos, a continuidade na falta de assistencialismo ao povo Yanomami, apenas para termos um exemplo.

Isto é reforçado, em artigo publicado por Cynthia Castro, à revista “O Tempo”. Em entrevista, o escritor e frade, o Frei Britto, autor do livro “Tom Vermelho e Verde”, da editora Rocco, fortalece a afirmativa central, de uma perpétua colonialidade no estilo tupiniquim.

Por exemplo, em seu livro, Britto revela o massacre das tribos Waimiri-Atroeri, na década de 70. Essa dizimação teve como pano de fundo, a construção da BR-174, na região Norte, no período do regime militar. O autor entende, por análise histórica e social, que a cultura colonialista, ainda muito enraizada na nossa sociedade, vem a partir do que ele chama de “supremacismo”.

“Supremacismo” é a concepção equivocada de que uma raça ou etnia é superior a outra. É o que acontece, citando um exemplo mais amplo, com a supremacia KKK (ou Ku Klux Kan). No caso, a KKK é abertamente supremacista. No entanto, nossa colonização ou forma de pensar as consequências da colonização, não são abertas. São um pouco mais implícitas e ocultas.

Diante disso, na prática, através dessa forma de pensamento (ou de não se pensar no assunto de forma correta) não admitimos ou não aceitamos que ainda há uma exploração inapropriada e desumana das terras indígenas. Ou seja, a ideologia faz a prática. O pensamento, a forma de enxergar, legitima as práticas (ou a omissão delas).

Veja também nosso vídeo sobre direitos étnico-raciais!

A perpétua colonialidade à brasileira ritualiza ou traz uma visão mitológica sobre os indígenas e, claro, uma visão menos humana. O que ocorre não é uma legitimação total dessa prática de invasão de terras indígenas por vias legais, mas uma legitimação implícita desse tipo de pensamento na nossa sociedade e nas práticas econômicas.

Então, como tentar pensar o contrário?

3. Por quê legitimar os povos Yanomami ?

Em cinco pontos-chave podemos entender porquê legitimar os povos Yanomami e a importância disso, para nós brasileiros. São eles:

A) Tempo de estadia e permanência dos povos Yanomami

O primeiro relato dos povos Yanomamis ou o que se refere a sua localização ou forma de habitação foi no século XVII. Um comandante espanhol chamado Apolinar Diez de la Fuente descreve nativos vivendo próximo ao rio Padimo, na antiga Guiana Portuguesa, onde hoje estão os estados do Amapá, Pará e Roraima.

Após isto, um novo contato seria feito por meio da fronteira brasileira, mas na região onde hoje é a Venezuela, no ano de 1950. Um missionário de Novas Tribos Zerries, localizou os indígenas e toda a confirmação e interação foi comunicada e repassada apenas em 1962, através do padre Góis, junto a este grupo missionário.

B) Preservação sustentável das terras brasileiras, através dos Yanomamis

Os indígenas, num geral, são povos que cuidam da floresta de forma sustentável. É inegável o quanto os povos Yanomamis utilizam a terra de forma sustentável. Dessa forma, também é inegável que a ação de garimpeiros, madeireiros e agropecuaristas ilegais vem degradando a região e isolando, cada vez mais, quem precisa da assistência governamental.

É fato ainda que, foi um longo percurso até se criar reservas de preservação ambiental. E são essas reservas ambientais que estão sob ameaça. A primeira delas foi criada em 1978, com o surgimento da Comissão Pró-Yanomâmi (CCPY). A CCPY é uma organização não governamental brasileira sem fins lucrativos e foi por meio dessa comissão que, em 1991, criou-se a Primeira Terra Indígena Yanomami.

Mapa da Reserva Yanomami. Imagem: Estadão

C) Direito à terra, através do Estatuto do Indígena no Brasil, em acordo à Constituição Federal de 1988

Promulgada em 1973, o Estatuto do Indígena no Brasil trata de várias áreas, tais como educação e saúde. Trata ainda, das terras ocupadas, habitadas e das reservas indígenas, sendo responsabilidade da União Federal, realizar a repartição de terras. No caso da CCPY, em 1978 a 1991, foi a União que acatou ao pedido e, apesar da demora, foi-se criada a primeira reserva Yanomami, em Roraima.

Dessa forma, além do reconhecimento histórico das terras indígenas e dos povos originários, temos uma atual legalidade representativa, que justifica a proteção das terras e dos povos Yanomamis. E tudo isso se especifica no capítulo VIII, do artigo 231, da Constituição Federal, onde:

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

D) Algumas ilegalidades da ação garimpeira no Brasil, bem como a existência do Direito Internacional Ambiental, validam a importância da legitimação desses povos

Há terras demarcadas para indígenas e limites territoriais de exploração de minérios para os garimpeiros. Os garimpeiros não podem ultrapassar o que já foi demarcado para os indígenas e para eles mesmos. Dessa forma, há o estatuto do garimpeiro e os limites de terra para exploração de minérios, de 2008, que deve ser respeitado por lei.

Também existe o que se chama de “bens da União Federal”, em convergência com o Estatuto dos Garimpeiros, e que, conforme instituído segundo o art. 20 da Constituição Federal, são bens da União Federal:

[…] XI – as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. […]

De igual modo, as florestas amazônicas também devem seguir os parâmetros internacionais, como por exemplo, na existência dos princípios do Direito Internacional ambiental, na Declaração de Estocolmo, em 1972.

E) A mortalidade dos Yanomami configura genocídio e se diferencia dos assassinatos que vemos nos centros urbanos

Segundo o dicionário Priberam, genocídio é a “destruição metódica de um grupo étnico ou religioso pela exterminação dos seus indivíduos”. E, ainda de acordo com fonte do site UOL, no núcleo temático de conteúdos educativos sobre Sociologia, o artigo nos mostra que há dois métodos de extermínio, sendo: por meios ativos (aplicação de forças que resultem na morte) ou passivos (negligência e negativa de prestação de assistência).

No caso dos povos Yanomamis, o que vimos entre Janeiro e Fevereiro de 2023, foi um misto de ambos os métodos. Sabemos da negligência e negativa de assistência ao longo dos anos anteriores, em que não houve esforço estatal em preservar as terras Yanomamis ou mesmo com os dados de crianças e adultos Yanomamis precisando de alimentos.

Saiba mais: genocídio indígena

E uma vez que algumas esferas governamentais nada fizeram acerca das denúncias de invasão de terras indígenas para exploração de minérios, os avanços dos garimpeiros e extrativistas não eram nem um pouco tímidos ou desconhecidos, apesar de que o entendimento de culpa ou punição deva ficar para a Justiça, e não para os leigos.

Saiba mais: projeto de lei do marco temporal

Concluindo…

A compreensão e a legitimação dos povos Yanomamis se faz através de sua história, cultura, forma sustentável de vida e da preservação de suas terras, além de sua associação com o povo brasileiro. Aliás, mais do que uma simples associação. Os indígenas Yanomamis são também considerados cidadãos brasileiros, com seus direitos garantidos por lei.

Crianças da tribo Yanomami, no norte do Brasil. Imagem: Brasil Escola

E aí, conseguiu entender melhor as questões que envolvem os povos Yanomami? Deixe sua opinião nos comentários!

Referência
WhatsApp Icon

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe este conteúdo!

ASSINE NOSSO BOLETIM SEMANAL

Seus dados estão protegidos de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)

FORTALEÇA A DEMOCRACIA E FIQUE POR DENTRO DE TODOS OS ASSUNTOS SOBRE POLÍTICA!

Capitulino, Gisely. A colonização no Brasil e o processo de legitimação dos povos yanomami. Politize!, 16 de junho, 2023
Disponível em: https://www.politize.com.br/povos-yanomami-colonizacao-legitimacao/.
Acesso em: 21 de nov, 2024.

A Politize! precisa de você. Sua doação será convertida em ações de impacto social positivo para fortalecer a nossa democracia. Seja parte da solução!

Pular para o conteúdo