O Chile é tido como o país mais próspero da América do Sul. Exportações em alta, crescimento acima da média dos demais países da América Latina, na casa do 4% ao ano, e participação em grandes acordos comerciais internacionais indicam a aparente pujança econômica projetada em relação ao resto do continente. Somado à essa imagem, sua capital ordenada e atrativa, as paisagens naturais estonteantes e a proximidade cultural e geográfica com o Brasil colocaram o Chile como um dos destinos turísticos internacionais mais desejados pelos brasileiros.
Em contraste com essa imagem eclodiram os protestos sociais das últimas semanas, o que surpreendeu a muitas pessoas que até então viam o país andino como o mais estável da região. Medidas como o estabelecimento de estado de emergência, de toque de recolher em diversas cidades do país e a convocação do exército nas ruas foram tomadas para o restabelecimento da ordem pública.
Parece contraditório, não? Neste texto vamos buscar esclarecer isso e desvendar melhor as motivações dos manifestantes, entender como o desenho institucional chileno impacta na situação e as ferramentas utilizadas pelo Estado para restabelecer a ordem pública.
O despontar da crise
O pontapé inicial para o movimento foi o aumento de 3,75% na tarifa do transporte público de Santiago, isso equivaleria a um aumento, em reais, de 15 centavos. A passagem passaria então de R$4,35 para R$4,50, o que levou a manifestações de estudantes secundaristas, nos dias 17 e 18 de outubro, as chamadas “evasiones”, nas quais grupos gigantescos de estudantes reuniram-se para pular a catraca do metrô como forma de protesto.
Com a repressão aplicada ao movimento dos secundaristas e a falta de recuo destes, as manifestações tomaram um volume muito maior e mais generalizado, incluindo novas pautas, mas também a depredação de bens públicos e privados. Mesmo depois de o aumento ter sido revogado, os protestos em massa seguiram, assim como as medidas de emergência tomadas pelo governo: o Estado de Emergência no dia 18 de outubro e o Toque de Recolher na maior parte do país nas noites da semana seguinte a esse dia (ambos serão explicados mais abaixo).
O movimento pode lembrar o que aconteceu no Brasil em 2013, o que ficou conhecido como #vemprarua, mas será que é possível estabelecer um paralelo tão direto entre os dois eventos? O que de fato desencadeou a revolta no caso chileno? Para responder a essas perguntas é preciso voltar um pouco no tempo e entender o modelo econômico aplicado no Chile.
O modelo chileno e as origens do descontentamento
O país é conhecido por ser o primeiro onde o modelo neoliberal foi implementado e o onde ele melhor se consolidou no decorrer das décadas. Isso quer dizer que as obrigações do Estado foram reduzidas. A partir das reformas realizadas durante o regime militar de Augusto Pinochet (1973-1989) a educação, a saúde e o sistema de aposentadorias passaram a funcionar a partir do mercado privado, ainda que contando com alguns subsídios públicos. Assim, a máxima desde então é realizar uma gestão eficiente a partir dos governos, deixando a cargo de empresas desde o sistema de rodovias até o fornecimento de água.
Somado à esse desenho institucional, a pujança econômica projetada para fora não garantiu uma distribuição eficiente da riqueza internamente. Apesar de ser o país latinoamericano com a renda per capita mais alta (13.481 euros em 2018) e com o mais elevado Índice de Desenvolvimento Humano (0,843, em 2017), ele possui um nível elevado no Coeficiente de Gini (0,45). Ainda que esteja longe do Brasil (0,54), que é o país mais desigual do continente segundo esse mesmo indicador, no chile outras questões geram um sentimento maior de injustiça social, como a falta de garantias sociais, a segregação social na cidade de Santiago e um custo de vida alto em relação ao salário mínimo.
Para que se tenha idéia, apesar de o salário mínimo ser alto em relação ao continente: US$414,00; o custo de vida por pessoa é calculado em média em US$684,00; no Brasil, o custo de vida médio está na casa dos US$383,00. No caso dos aposentados essa diferença é ainda mais dramática, já que a pensão média é de US$286,00.
Ou seja, o grande plano de fundo para as manifestações atuais é a contradição de viver em um país que vai bem economicamente e se destaca em relação aos vizinhos, mas sem necessariamente ter acesso a melhores condições de vida por conta disso.
O próprio presidente Sebastian Piñera reconheceu que seu governo foi pouco sensível às necessidades da população e, como resposta aos protestos, sugeriu uma agenda social cuja principal medida é o aumento do salário mínimo de 300.000 pesos para 350.000 mil pesos, um aumento relativo de em torno de 300 reais. Contudo, essa agenda não deu conta de acalmar os ânimos, e os protestos com casos de violência de ambas as partes envolvidas seguiram.
As principais demandas que foram feitas pelos manifestantes são:
- a revogação do aumento da passagem do transporte público;
- a renúncia de Andrés Chadwick (Ministro do Interior e de Segurança Pública);
- e mudanças nas questões sociais estruturais a partir de uma nova Constituição que substitua o texto atual, redatado durante a ditadura militar.
As medidas do governo para garantia da ordem
A grande virada para a escalada da violência aconteceu na noite do dia de 18 de outubro, quando foi queimado um edifício de mais de 20 andares que sediava a maior companhia de energia do país, além de incêndios provocados em estações de metrô. A primeira reação do governo foi decretar Estado de Emergência.
Essa é uma medida excepcional que está prevista no artigo 40 da Constituição do Chile e na Lei N°18.415 (Lei orgânica de Estado de Exceção Constitucional). Ele deve ser convocado através de decreto presidencial em caso de alteração grave da ordem pública ou de perigo à segurança da nação. A medida pode servir para parte ou para a totalidade do território e não pode durar mais do que 15 dias.
Durante o período em que esteja vigente, é o Chefe de Defesa Nacional, designado pelo presidente da república, quem assume o comando das zonas circunscritas à medida. Sua figura é responsável pelo comando das Forças Armadas e de Segurança Pública que se encontrem na zona, assim como o controle de entrada e saída dela e também possui a autoridade constitucional de limitar os direitos de trânsito e reunião, como colocar o Toque de Recolher, por exemplo. Foi a primeira vez desde a redemocratização (1990) que ambos os mecanismos foram utilizados.
O desfecho da crise até então
Após dias de embates com manifestantes, mais de 3.000 pessoas foram presas, houve uma escalada da violência e inúmeros casos de abusos por parte de agentes de estado foram relatados pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos; as medidas de ordem militarizadas demonstraram-se ineficazes para conter a insatisfação popular. O governo buscou, então, ceder com algumas reivindicações do movimento e mudar o discurso empregado até então.
Na sexta-feira, dia 25 de outubro, foi convocada a “maior manifestação da história” do Chile, na qual mais de 1,2 milhão de pessoas se reuniram ao redor da Plaza Italia, principal palco de manifestações da cidade. Isso marcou uma virada na correlação de forças e o governo fortaleceu a busca de um diálogo com as reivindicações da rua.
Um esforço feito pelo presidente Piñera nesse sentido foi pedir a renúncia de todo o seu gabinete de ministros, realizando uma reforma e mudando oito nomes, incluindo a saída do ministro do interior e de segurança pública, o que era pedido por muitos manifestantes.
O estado de emergência foi revogado no domingo dia 27 de outubro, porém Santiago ainda não conseguiu recuperar a vida cotidiana e as manifestações seguem acontecendo, ainda que com menor força que na semana passada.
Afinal, ainda não é possível extrair um saldo final de todo o movimento. O que já é possível afirmar é que a busca de uma saída conjunta para isso exigirá um grande esforço de diálogo entre governo, oposição e sociedade civil na busca de um novo pacto social que traga dias mais tranquilos.
Conseguiu entender as razões para os protestos no Chile? Deixe suas dúvidas e sugestões nos comentários!
REFERÊNCIAS
Country Economy – Indicadores econômicos
InfoMoney – Chile é o maior sucesso econômico da América Latina