Marcha do Orgulho LGBT de Nova York em 2019. Foto: Michael Appleton / Gabinete de Fotografia da Prefeitura/ Fotos Públicas.Quando falamos de representatividade alguns exemplos e bandeiras podem nos vir à cabeça, como o combate ao racismo, as reivindicações indígenas, os debates feministas, a luta pelos direitos LGBTQIA+ e contra a LGBTfobia. Mas o que todos esses grupos e essas lutas tem em comum?
Todos estes são considerados minorias sociais, ou seja, não são minorias em quantidade, mas em representação. Isso significa, na prática, que tais pessoas não estão representadas no espaço público, como na política, na televisão, em novelas, filmes, no jornalismo, nos cargos de maior poder e prestígio social.
Portanto, a seguir vamos juntos pensar mais sobre essa busca por representatividade e a relação com o sistema democrático que a legitima. Entender que além de um direito, essa busca também pode ser vista como uma luta por reconhecimento e reparações de discriminações históricas.
Representatividade: entenda o conceito
A definição de representatividade que consta no dicionário da língua portuguesa vai ao encontro da definição do conceito presente no Dicionário de Política de Noberto Bobbio, em que a representatividade é a expressão dos interesses de um grupo (seja uma partido, uma classe, um movimento, uma nação) na figura do representante. De forma que aquele que fala em nome do coletivo o faz comprometido com as demandas e necessidades dos representados. Portanto, falar de representatividade revela o sentido político e ideológico por trás do termo.
A representatividade tem como fator a construção de subjetividade e identidade dos grupos e indivíduos que integram esse grupo.
O que isso significa? Significa que a representatividade não é apenas a organização de grupos buscando que seus interesses sejam representados e garantidos, mas é sobretudo parte da formação do que é o indivíduo que compõe esse grupo.
Isso mostra que, por exemplo, quando uma mulher alcança o cargo mais alto do governo de um país – a Presidência da República – se permite criar a subjetividade na identidade feminina de que outras mulheres também podem chegar lá. Da mesma forma, quando os programas televisivos alocam as atrizes negras como personagens com funções que servem às pessoas brancas, como empregadas domésticas, também se cria – a partir de como são representadas – a subjetividade na população negra de que seu lugar é aquele com pouco prestígio social e a serviço de outro(s).
Então, afinal, o que é representatividade?
O valor político do termo é muito caro à própria democracia. Afinal, segundo Robert Dahl, cientista político estadunidense, a democracia ideal tem como característica fundamental a responsividade, isto é, o comprometimento do governo às preferências dos cidadãos.
E como se dá a relação entre governo e preferências? De forma que todos cidadãos tenham a oportunidade de formular suas preferências, expressá-las aos demais cidadãos e ao governo por meio de ação individual ou coletiva, e que seus interesses não sejam discriminados. Para isso, é necessário que o pluralismo tenha centralidade na sociedade.
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Ainda, sobre o ponto de vista formal e político da representatividade, a Constituição Federal do Brasil estabelece no Título I – Dos Princípios Fundamentais (artigo 1º) o Estado Democrático de Direito que tem como um de seus fundamentos o pluralismo político.
No parágrafo único de tal artigo está posto que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, ou seja, a representação política se faz por meio de eleição de representantes e também através de referendos, plebiscitos, iniciativa popular ou audiências públicas.
No entanto, apesar do conceito de representatividade ter origem na política e na democracia, o termo é reivindicado pela sociedade civil quando esta se organiza em movimentos identitários.
É difícil entender se esses movimentos em busca de representatividade vieram antes ou depois da formalidade política da representação. Para o cientista político brasileiro Luis Felipe Miguel, as reivindicações coletivas por representatividade tem assumido centralidade como resultado do “desencanto com a democracia liberal”. Isto é, as garantias estabelecidas em leis e na própria constituição acabam por não serem suficientes para garantir que todos os cidadãos e todos os grupos identitários estejam representados, possuam espaço na sociedade e sejam tratados como iguais.
Dessa forma, a igualdade diante das diferenças sociais, identitárias e econômicas resulta em mais desigualdade, pois os diferentes não são vistos com suas diferenças, mas tratados como iguais… o que, por fim, perpetua a desigualdade.
E por que representatividade é importante?
Existem inúmeras razões para justificar a importância que a representatividade possui nas relações sociais. Algumas destas, identificadas pela autora Joan Scott, são o reconhecimento e uma manutenção entre a igualdade e a diferença, entre direitos individuais e identidades grupais. Afinal, é esta tensão que possibilita caminhos mais democráticos e plurais, em que a diversidade é normalizada.
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Mas na prática em que consiste essa tensão? O princípio da igualdade refere-se a indivíduos e não a grupos. De forma que todos são iguais. No entanto, características específicas, como gênero, etnia, idade, sexualidade, criam categorias de pessoas em que estas não são consideradas iguais aos demais.
Em outras palavras, os grupos identitários são fruto das condições e tratamentos desiguais aos quais estão submetidos, devido às suas diferenças enquanto grupo. Como por exemplo, as mulheres são consideradas como desiguais perante aos homens e excluídas da política.
O que estamos dizendo é que: enquanto algumas pessoas identificam que a igualdade não depende dos indivíduos serem julgados como membros de um grupo – mas sim a partir de sua individualidade e subjetividades – outras pessoas defendem que para os indivíduos serem tratados como iguais é necessário que os grupos aos quais eles se identifiquem sejam valorizados, afinal estes indivíduos são discriminados justamente por pertencerem a esses grupos.
Dessa forma, busca-se a representatividade tanto como indivíduos quanto como grupos identitários.
O primeiro já é estabelecido nos termos da lei e da constituição, em que se garante nos termos jurídicos, políticos e civis a representação de suas preferências e vontades.
O segundo é a luta por reconhecimento de seu estatuto de nacionalidade, religião, raça, origem, geração, gênero, sexualidade, que implica em questionar hierarquias sociais, econômicas, políticas, culturais, históricas aos quais esses grupos estão submetidos devidos seus status/características identitárias.
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Como garantir que esta representatividade exista?
A forma mais eficaz de garantir a representatividade exista é através da proteção institucional dos princípios do Estado Democrático de Direito. Isto significa que as instituições governamentais, assim como as privadas, necessitam resguardar os princípios concebidos pela Constituição. Como por exemplo, o princípio da igualdade entre todos os cidadãos, que é desejo da sociedade e também dever dela tratar todos como iguais.
Assim, o republicanismo na forma da democracia indireta, a democracia direta como recurso de maior participação popular (plebiscitos, referendos), o cumprimento da legalidade (das leis aprovadas pelos representantes), dos direitos e das garantias sociais, o constitucionalismo e a supremacia constitucional são todos fatores que contribuem para a busca da representatividade.
No entanto, nem sempre o Estado Democrático de Direito faz valer a representatividade de minorias ou de grupos que tradicionalmente não ocupam cargos de poder, prestígio e representação política social. Nesse sentido, muitas vezes, os representantes que aprovam leis e ocupam cargos de maior poder não representam a todos, sendo assim, não inclusivo quanto aos interesses de minorias.
Para reverter esta situação, é necessário medidas capazes de corrigir essas desigualdades estruturais, que provocaram a falta de representatividade de todos cidadãos.
Então, como reparar a falta de representatividade?
Para além do campo político e voltado para o espaço social, é preciso ter em mente que indivíduos que compõem grupos identitários e classes socioeconômicas distantes da dominante não estão presentes em diversos espaços sociais, como: instituições de ensino superior públicas; protagonizando conteúdo artístico e midiático; em cargos de grande prestígio e de alta hierarquia, etc.
Um exemplo disto é a baixa proporção de mulheres em cargos executivos e representativos nas assembleias legislativa, como CEOs em empresas, ou ainda a histórica ausência da população negra do ensino superior público (revertido apenas em 2019 após anos de políticas de cotas).
Pensando nisso, é necessário buscar formas de reparar o déficit de representatividade, como as ações afirmativas, por exemplo. Estas nada mais são que políticas que visam eliminar a desigualdade, discriminação e marginalização historicamente acumuladas e originadas em questões de gênero, etnia, religiosidade, raça.
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Em outras palavras, essas medidas buscam garantir a igualdade de oportunidades, tratamento e direitos aos indivíduos que estão organizados em grupos identitários – ou seja, que compartilham a característica que foi central para a sua discriminação.
A criação de cotas para garantir a participação de mulheres na política, de negros e pessoas de baixa renda nas universidades públicas são outros exemplos de políticas com objetivos de corrigir desigualdades sociais históricas, fortalecer os princípios do Estado Democrático de Direito, legitimar a representatividade política e tornar a igualdade entre todos de fato.
A representatividade nas lutas e movimentos sociais
Ainda que possa ser dito que tudo é político, existem outras formas de manifestar a representatividade além de quadros políticos. Nesse sentido, a própria organização social – em partidos políticos, sindicatos de classes e setoriais, movimentos sociais como o estudantil, feminista, negro, LGBTQI+ – constitui uma forma de expressar a representação. Essas organizações sociais criam coletividades alinhadas e arranjadas de acordo com as características compartilhadas em comum entre os integrantes. De modo que, assim, se fortaleçam as identidades e subjetividades coletivas.
Por fim, a arte também tem sua contribuição. A representatividade nas artes e mídias tem centralidade na formação e projeção de identidades e subjetividades. De forma que aquele exemplo da mulher negra sendo representada como empregada doméstica na mídia pode ser revertido quando as manifestações artísticas se valem da pluralidade de representações. Portanto, quando mulheres, negros, LGBTQI+ passam a ocupar outros espaços e se apresentarem de forma plural – menos arquetípica – permite-se a criação de um imaginário com mais diversidade.
Assim, a representatividade é produto, mas também fator construtivo de sociedades para garantir as diferenças, diversidade e a pluralidade política, social e cultural.
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REFERÊNCIAS
Noberto Bobbio: Dicionário de Política. Brasília: Editora UnB, 1998.
Ciência e Cultura – “Representação social e representatividade”
Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2015.
Robert Dahl: Poliarquia. São Paulo, EDUSP, 2005, pp. 195-209.
Dicio – Verbete “representatividade”
Nancy Fraser: A justiça social na globalização
Luís Felipe Miguel: Teoria política feminista e liberalismo: o caso das cotas de representação
Joan W. Scott: O enigma da diferença