A Revolução dos Pinguins, já ouviu falar? O movimento estudantil secundarista chileno de 2006 foi chamado assim devido à semelhança dos uniformes dos estudantes chilenos com a aparência de um pinguim.
Neste texto da Politize!, conheça os detalhes desse movimento que surgiu do descontentamento dos estudantes como resposta ao modelo educacional daquele país.
Conheça as demandas, reivindicações e estratégias utilizadas em prol da garantia do direito à educação que marcaram a história recente do Chile.
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O contexto que precede a revolta
O golpe de Estado que derrubou o governo de Salvador Allende no Chile ocorreu em 11 de setembro de 1973. Este acontecimento marcou o fim do governo democraticamente eleito de Allende e deu início à ditadura militar liderada pelo General Augusto Pinochet, que durou 17 anos.
Salvador Allende, médico e político socialista, foi eleito presidente do Chile em 1970, o primeiro marxista a assumir a presidência através de eleições num país da América Latina.
O seu governo promoveu uma série de reformas estruturais, incluindo a nacionalização de setores estratégicos como a exploração do cobre, a reforma agrária e a expansão dos serviços de saúde e educação. Estas reformas tinham como objetivo distribuir e reduzir as desigualdades sociais no país.
Antes do golpe de 1973, o sistema educativo chileno era predominantemente público e estava orientado para satisfazer as necessidades de uma grande parte da população.
O setor privado da educação chilena era bastante reduzido, representando menos de 20% das matrículas. As escolas privadas, com grande presença de instituições católicas, não só eram em número reduzido, como também se destinavam à elite.
Após o golpe militar, uma das primeiras medidas da junta militar foi implementar o que chamaram de “depuração ideológica”. Os militares foram nomeados reitores de universidades e diretores de escolas públicas, enquanto os professores e os trabalhadores da educação foram perseguidos.
O objetivo era excluir do contexto educativo temas como a luta de classes, a democratização da cultura, os movimentos sociais e o sindicalismo.
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A partir da década de 1980, o governo Pinochet iniciou a privatização do ensino. As escolas e liceus foram entregues através de concessões de 99 anos, que podiam ser renovadas por mais 99 anos.
Em 1981, o governo introduziu o modelo de “subsídio por demanda”, que consistia em financiar a educação através de vouchers distribuídos pelo Estado às famílias. Estes vouchers permitiam que as famílias custeassem a educação dos seus filhos em escolas privadas ou de ensino público.
Dentro dessa lógica e para justificá-la, o governo destacava a perspectiva de aumentar a eficiência do sistema educacional chileno.
Entretanto, a Lei Orgânica Constitucional da Educação (LOCE), promulgada em 10 de março de 1990, um dia antes do fim do regime militar de Pinochet, determinou que o governo deveria financiar as escolas privadas, enquanto as escolas e universidades públicas deveriam ser pagas.
Assim, a solução encontrada pelas famílias dos estudantes foi contrair empréstimos em bancos privados para financiar os estudos de seus filhos. O resultado desse processo foi o endividamento das famílias e até mesmo de alguns jovens para garantir a educação.
O que foi a Revolução dos Pinguins e quais as suas principais reivindicações?
Em resposta a esta realidade anteriormente descrita, surgiram várias manifestações de massas lideradas pelo movimento estudantil. O Chile assistiu ao aparecimento e amadurecimento do movimento de estudantes secundaristas que se mobilizaram para exigir melhorias no sistema educativo do país e outras reivindicações.
Em 2006, mais de uma centena de escolas foram ocupadas e estima-se que cerca de 600.000 estudantes tenham participado na greve nacional realizada em 30 de maio daquele ano.
Para De Vuono, Mineiro e Ramos (2023), o movimento dos pinguins foi resultado de uma articulação política entre estudantes secundaristas chilenos de todo o país. Esse movimento promoveu ocupações em escolas e espaços públicos, bem como a participação no debate público fomentado pela mídia.
Para eles, para entender o contexto da revolta estudantil de 2006, é essencial destacar os protagonistas do movimento: jovens que cresceram em um período de forte crescimento econômico na década de 1990. No entanto, esse crescimento não foi distribuído entre os setores populares da sociedade chilena.
Os autores acreditam que os jovens chilenos entenderam que a mercantilização da educação era uma das causas do agravamento da desigualdade social e constituía uma barreira à mobilidade social através do sistema educacional chileno.
Se no início das ocupações o movimento causou estranheza na população chilena, por ser algo novo, com o passar do tempo, destacou-se pela sua originalidade, tomando decisões em assembleia, realizando protestos de rua e ocupando escolas para exigir não só melhorias na educação, mas também mudanças estruturais no país.
Os “pinguins” dissociaram o movimento estudantil dos partidos políticos e rapidamente se tornaram uma força mobilizadora importante na luta por uma educação mais justa e igualitária no Chile.
O documentário “Revolta dos Pinguins”, de Carlos Pronzato, mostra imagens da luta dos estudantes por essas mudanças, que constituíram um autêntico processo de luta, com mais de um milhão de estudantes mobilizados em todo o Chile. As reivindicações dos estudantes eram:
- Reforma legislativa: a revisão ou revogação da Lei Orgânica Constitucional da Educação (LOCE), com o objetivo de devolver o sistema educativo à responsabilidade do Estado e garantir um ensino público de qualidade para todos;
- Reforma da Jornada Escolar Completa (JEC): os estudantes argumentaram que a jornada escolar era excessivamente longa e pediram uma revisão do modelo para melhor atender às necessidades educacionais e ao bem-estar dos alunos;
- Transportes e Alimentação: transportes públicos gratuitos e melhorias nos programas de alimentação escolar gratuita, uma vez que muitos estudantes de famílias com baixos rendimentos tinham dificuldade em aceder a estes serviços essenciais;
- Revisão do Sistema de Avaliação: gratuidade do Teste de Seleção Universitária (PSU), que favorecia os alunos de escolas públicas, dificultando o acesso dos alunos de escolas públicas às universidades;
- Fim da municipalização da educação: os municípios com mais recursos tinham escolas públicas de melhor qualidade, enquanto nas localidades mais pobres, as escolas públicas eram precárias e sem recursos, o que aprofundava as condições de desigualdade;
- Maior participação: os estudantes também reivindicaram maior participação nos processos decisórios das políticas educacionais, demonstrando um desejo mais amplo de democratização do sistema de ensino.
A Jornada Escolar Completa (JEC) foi estabelecida em todo o sistema escolar chileno. Com ela, o tempo escolar diário, para todos os alunos, estendia-se em geral das 8 horas da manhã até às 16h. O objetivo principal era aumentar o tempo que crianças e adolescentes passavam na escola, de forma a melhorar o aprendizado.
É importante destacar que, na prática, a JEC tornou-se um pesadelo para os estudantes, como aponta Zibas (2008). Não havia atividades diferenciadas em todas as escolas. Os dois períodos na escola tornaram-se pesados, monótonos e desinteressantes. Além disso, havia a questão da merenda, que era escassa.
No seu auge, o movimento juntou estudantes em protestos e ocupações por todo o Chile. Mas foi para além disso. Estudantes universitários, trabalhadores de diferentes áreas, sindicatos e organizações sociais paralisaram as suas atividades para apoiar os pinguins.
A mobilização provocou a queda do Ministro da Educação do então governo de Michelle Bachelet, que estava em seu primeiro mandato.
Entretanto, o movimento que protagonizou episódios considerados inusitados nas últimas três décadas da história do Chile recebeu críticas. Essas críticas eram relacionadas ao conjunto das mudanças efetivas das políticas educacionais chilenas. O movimento não conseguiu impor suas principais reivindicações, devido muitas divisões internas que geraram o seu próprio enfraquecimento.
Impactos, ganhos e influência da Revolução dos Pinguins
Os estudantes e os setores sociais que os apoiavam não foram bem recebidos pelo governo chileno da Concertación de Bachelet. A Concertación de Partidos por la Democracia foi um bloco composto por várias frentes políticas que nasceu no final da ditadura de Pinochet para se opor ao regime.
Um dos principais objetivos da coligação de partidos da Concertación era a reforma da educação chilena; no entanto, contraditoriamente, a Lei Orgânica Constitucional da Educação (LOCE) não foi reformulada em 16 anos de governo (1990-2006).
Embora o governo tenha inicialmente adotado uma postura de diálogo e negociação, houve episódios de violência e repressão. Esses episódios foram marcados por intensos confrontos entre estudantes e autoridades, com relatos de prisões e intervenções violentas em algumas escolas e manifestações.
Com o tempo, e devido à permanência, legitimidade e pressão do movimento, o governo de Bachelet desenvolveu tentativas de resolver as questões levantadas pelos estudantes através de negociações e propostas de reforma.
O governo chileno criou o Conselho Consultivo Presidencial para a Qualidade da Educação, que incluía representantes de vários setores, incluindo os estudantes, para discutir reformas mais profundas no sistema educativo.
Este conselho recomendou algumas mudanças importantes, mas as reformas estruturais que os estudantes exigiam, como a revogação da LOCE, não foram imediatamente implementadas. Embora nem todas as exigências dos estudantes tenham sido totalmente satisfeitas, destacam-se algumas das conquistas dos pinguins:
- Aumento do orçamento para a educação: o governo de Bachelet aumentou o orçamento para a educação, melhorando o financiamento das escolas públicas e dos programas educativos;
- Melhorias na alimentação escolar e no transporte escolar: foram feitas melhorias nos programas de alimentação escolar e foram implementadas medidas para aumentar o acesso ao transporte público gratuito para estudantes com baixos rendimentos;
- Reformas na Jornada Escolar (JEC): apesar de não ter sido atendida toda a demanda de alteração da JEC, houve discussões e ajustes no modelo de jornada escolar, com algumas melhorias nas condições de ensino e no equilíbrio entre tempo de aula e atividades extracurriculares;
- Reconhecimento do Papel dos Estudantes: o movimento contribuiu para um maior reconhecimento da importância do papel dos estudantes na definição das políticas educativas e na luta por uma educação mais justa e acessível.
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O legado atual da Revolução
A Revolução dos Pinguins não só marcou a história recente do Chile, como também inspirou manifestações semelhantes noutros países da América Latina, sobretudo na Argentina e no Brasil.
Na Argentina, as mobilizações estudantis inspiradas no movimento chileno ocorreram principalmente em 2010 e 2011. Estes protestos, denominados “Movimento Nacional de Estudantes Secundários”, visavam melhorar as condições de ensino e implementar reformas no sistema educativo argentino, inspirando-se nas táticas e reivindicações do movimento chileno.
No Brasil, a influência do movimento chileno ficou evidente a partir de 2015, quando os estudantes passaram a adotar táticas semelhantes. Na ocasião o governo de São Paulo tinha como proposta reorganizar a rede estadual de ensino. Nessa proposta, quase 100 escolas seriam fechadas, forçando a transferência de milhares de alunos.
Em resposta à “Reorganização Escolar”, os estudantes se uniram e ocuparam os escolas para pressionar o governo a recuar. A ocupação também foi para protestar contra cortes no orçamento da educação e questões relacionadas à qualidade do ensino.
Nas manifestações estudantis, uma das canções entoadas era: ‘Acabou a paz, isto aqui vai virar o Chile’. Essa frase é o título do documentário de Carlos Pronzato (2016), que analisa o movimento de ocupação de cerca de 200 escolas da rede estadual de São Paulo.
Durante as ocupações nas escolas brasileiras, foram criados comitês de limpeza, oficinas pedagógicas, segurança e alimentação, refletindo a abordagem chilena de autogestão, com decisões tomadas por meio de assembléias, uso de tecnologia para organização – como as redes sociais – e, principalmente, solidariedade.
E aí, gostou de conhecer mais sobre a Revolução dos Pinguins? Deixe seus comentários! Agora que você sabe mais dessa história de mobilização estudantil divulgue a amigos/as e familiares.
Referências:
DE VUONO, G. D. D.; MINEIRO , P. F. S.; CARDOZO FIDALGO RAMOS , J. . Revolução dos Pinguins no Chile: contexto e repercussões do movimento secundarista de 2006. Mundo Livre: Revista Multidisciplinar, v. 9, n. 1, p. 66-88, 16 out. 2023.
Esquerda Diário – Isso aqui virou ou já superou o Chile? Mais de 1000 ocupações pelo país
Youtube – Acabou a paz, isto aqui vai virar o Chile
Youtube – Revolta dos Pinguins
Outras Palavras – Para entender os porquês da revolta chilena
ZIBAS, D. M.L .A Revolta dos Pinguins e o novo pacto educacional chileno . Revista Brasileira de Educação, 13 (38), Ago 2008. https://doi.org/10/S1413 -247820080002000